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    — Está desapontado?

    Marcus estava sentado em um caixote de madeira bruta. A faca em sua mão trabalhava devagar, arrancando tiras finas da casca da maçã, cada uma enrolando-se em espirais perfeitas antes de cair no chão de pedra fria. Quando Clara se aproximou, ele sequer ergueu o olhar.

    — Estou tentando entender o que você quer fazer, mas deve ser por causa do inverno. Sempre deixa as pessoas inquietas.

    Clara cruzou os braços, descontente pela resposta, mas não surpresa. O frio fazia isso: endurecia os ossos e roubava a paciência. Quantos se tornavam vulneráveis quando os ventos sacudiam as mantas pelo alto dos prédios? Ali, nas alturas, as bandeiras esfarrapadas do povo tremulavam como se lutassem para resistir, e Clara não podia evitar o pensamento de que fazia o mesmo.

    — Não necessariamente seria o inverno que deixa as pessoas assim. Já viu quantas pessoas temos para alimentar? — Ela o viu mastigar a maçã com força e cuspir um caroço prédio abaixo. — E o que eu sei sobre você, Marcus, é que prefere que não tenhamos tantas responsabilidades se não tivermos como alimentar todas elas.

    As palavras pairaram no ar entre eles, afiadas como facas. Marcus ergueu os olhos para ela, mas não disse nada. Ele não precisava; Clara conhecia aquele olhar. Era o olhar de alguém que sabia que ela tinha razão, mas que não se dobraria facilmente a essa verdade.

    — E o que decidiu, então?

    — Vim conversar sobre isso, se quiser me escutar.

    Marcus mastigou com vigor a maça, deixando Clara angustiada como seus dentes pareciam quebrar a polpa.

    — Nunca fui contra você falar — disse, finalmente, com a voz baixa, mas firme. — Só não acho justo com o que todos passaram.

    Clara se aproximou mais e o empurrou para a ponta do caixote. Os dois encarando a cidade, num amplo aspecto de que a solidão era somente uma pequena chama exercida no meio do frio, porque mesmo quando estavam com os demais, ela tinha certeza de que o mundo ainda era gélido demais para se relacionar sem desconfiar.

    — É justiça o que quer, Marcus?

    — É o que eu esperaria ser oferecido. — Ele não hesitava nas respostas, como se já esperava a pergunta feita. — O que recebi foi apenas o trabalho de ver aqueles dois vindo até aqui com outros dez sem nada para oferecer. Duas semanas atrás, eles tentaram roubar nossa bateria. Agora, quer hospedar eles num lugar sendo que não temos metade dos suprimentos que tinha na lista.

    Sempre preocupado com os moradores, sempre preocupado com sua casa, sempre preocupado com o que suas mãos não podiam controlar. Assim ele cresceu, e assim se tornou homem.

    Para respondê-lo, Clara colocou a mão no bolso de seu longo casaco e entregou a ele um papel dobrado em quatro partes. Esperou que desdobrasse, para então, ela falar:

    — Os itens que Dante trouxe nessa semana — esclareceu para ele de forma mais leviana. — Jix disse para não elogiar Dante pessoalmente, mas eu precisava fazer isso com alguém. O seu medo, Marcus, Dante ligou com ele em apenas duas semanas.

    O atirador ainda lia, item por item. Era um pouco impressionante, ela sabia. Dante havia corrido pela cidade tantas vezes, coletando cobertores, roupas, garrafas e galões. Marcus ficou de pé, dando para ouvir seus lábios sibilando.

    — Todo começo de manhã, eu faço uma lista — disse Clara. — E no final da tarde, ele tem dez vezes mais do que eu pedi. Ele teve acesso a um lugar aqui perto, um prédio que eu pedi para Clerk remodelar por dentro, mas pediu que tudo fosse colocado no andar debaixo.

    Marcus a fitou, sem acreditar.

    — Temos um estoque?

    — Ainda está incompleto, como pode ver. Tem mais uma semana para o inverno, mas pelo que Simone disse, nossa preocupação maior agora vai ser o frio. O que pedi para Dante procurar agora é uma fornalha, não é algo que nós podemos ter o luxo, mas se colocarmos com o carvão que ele achou nos mercados, vamos ter uma chance de passar o inverno sem problemas.

    A maior dificuldade que sentiam desde que o prédio se mantinha sendo reforçado dia a dia era o frio. Mesmo com todas as janelas consertadas, Cler havia dito que o vidro consumia muito da sua Energia Cósmica. Clara não o faria ir além do que aguentava, por isso aceitou os termos de fazer somente as paredes, chão e teto.

    O que na verdade já poderia ser considerado muito.

    Por isso, a fornalha teria um papel fundamental que ela conversou com Simone e Jix para fortalecer o calor para o inverno que viria.

    — Meliah disse que vai mandar os recursos para criarmos uma — disse Clara, completamente os pensamentos que tinha. — É por isso que aceitei negociar. Ele pode ficar com Degol pelo inverno inteiro, mas precisará nos doar todos os recursos que precisarmos. Essa foi a oferta, e ele não pode recusar.

    — Luma teria comida e abrigo para oferecer também.

    Clara negou.

    — Dante me disse que temos água e energia, e entendi que isso é o suficiente. Luma e Antton não tem nada disso, então, eles vieram até nós. E isso aí — apontou para o papel que ele segurava. — Agora temos comida em reserva por mais de três meses. Jix me disse que Dante vai ficar mais uma semana pegando recursos, mas ele está indo mais e mais longe. Não vou arriscar uma luta com ele sozinho.

    Marcus soltou um sorriso meio debochado.

    — O velho sabe se cuidar mais do que a gente. Ele carrega outro velhote e sempre traz aquelas mochilas cheias, mas… — ainda fitava o papel. Era claro que estava impressionado pela quantidade. — Ele tem feito tanto e parece que não o agradecemos o suficiente.

    Clara concordava. Dante não parava nenhum momento, se isolando e ficando mais com Jix do que com os dois. Desde que Degol sofreu o acidente, ele tomou a responsabilidade de procurar comida e remédio. Não era atoa que os enfermos melhoraram consideravelmente. Ferimentos antigos se curaram, havia uma ala completa somente para eles.

    Clerk já tinha planos para melhorar até mesmo os armários e bancadas, para que Simone pudesse trabalhar melhor.

    — E onde Dante está agora? — perguntou Marcus devolvendo a lista. — Não o vejo desde cedo.

    — Pelo que parece, ele saiu para fazer mais uma ronda. Queria poder expressar mais o que sinto em relação ao que ele tem feito. Mas, parece que ele não quer conversar muito.

    Marcus concordou, abrindo a boca para falar. Então, uma explosão soou vindo do meio das ruas, fumaça e chamas se elevaram, não muito longe dali, e um rugido agudo ecoou com um tom raivoso e desesperado.

    Quando os dois chegaram perto da beirada, viram as pessoas lá embaixo correndo da explosão. Eles olhavam para trás, tropeçavam e continuavam.

    — Merda. — Marcus tateou o próprio peito. — Deixei minha arma na bancada. Merda.

    — Temos que tirar todo mundo lá de baixo. Volte e…

    Um zunido passou por eles, na mesma altura do prédio. Clara pôde ver, em pequenos segundos, um sorriso divertido de um velho homem. Em suas costas, outro homem que apontava a bengala na direção do caos.

    Dante e Jix passaram por eles dois como uma bala. O rastro do ar se deformou, e desceu até onde a fumaça lambia os carros. Clara e Marcus começaram a voltar pela ponte de madeira quando outro berro soou, dessa vez, cheio de dor.

    E um Felroz apareceu subindo, parando no meio do ar. Antes de fazer o giro para começar a cair, Dante surgiu no meio do ar, o segurou pelo braço e jogou contra o chão. A rua inteira estalou com o impacto. O Felroz rugia mais baixo, tentando se livrar da pequena cratera que se formou, mas antes de sair, os pés de Dante colidiram contra seu peito, afundando ainda mais.

    O impacto resultou na perfuração da criatura. Dante deu um soco apenas, e o rosto do Felroz estalou, enviando uma onda de ar para trás. Aqueles dois movimentos finais foram suficientes para que apenas o humano estivesse respirando.

    Clara e Marcus observavam de cima. Por mais estranho que fosse os pensamentos de Clara, ela tinha quase certeza de que Dante se divertia lutando daquela maneira. E quando a tensão sumia, ele perdia o sorriso da cara no mesmo instante.

    — Ainda quer agradecer ele? — perguntou Marcus a olhando de lado. — Deveria fazer uma carta pra ele.

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