Quando Kino abriu os olhos, começou a tossir desesperadamente, cuspindo água como se tivesse engolido um oceano.

    — Cof, cof, cof…

    Sua testa latejava, parecia que tinha sido esmagada por um martelo.

    “ Que dor…”

    O frio do chão castigava suas costas, drenando o pouco calor que ainda restava em seu corpo. Com esforço, conseguiu se levantar. Tudo ao redor era um borrão de sombras, os contornos ondulando como fumaça. A única coisa visível era a neblina densa e cinzenta.

    “ Que lugar é esse? ”

    Ele ficou intrigado com isso. O jovem não sabia o que fazer se ficava ali parado, se corria ou gritava.

    Ele conseguia sentir o piso firme sob seus pés e sentia até mesmo uma brisa fresca em seu rosto. “Não pareço estar morto… Se fosse arriscar um palpite, diria que é um sonho lúcido.”

    Essa ideia logo veio à sua mente. Algo tinha de ter explicação. De repente sentiu sua nuca arrepiar.

    “Que sensação é essa?”

    Não ousou virar seu corpo, mas tinha certeza de uma coisa: havia algo atrás dele. Ele prendeu a respiração. Nenhum barulho a não ser o som do vento chiando.

    “ É agora que me viro e dou de cara com um monstro… Aí eu acordo, certo? ”

    Ele se virou dando de cara com uma mulher de costas para ele.

    Seu vestido preto se fundia com a escuridão ao redor, enquanto os cabelos, negros como carvão, caíam em cachos sobre os ombros.

    Sua pele era tão pálida que brilhava no meio da penumbra. Um calafrio percorreu a espinha dele. Seus instintos gritavam para que corresse dali.

    Antes que pudesse reagir, a mulher começou a se virar.

    O movimento foi lento, e assim que seu rosto ficou visível, o corpo de Kino congelou. Uma paralisia tomou conta de seus músculos, como se estivesse sob um feitiço. Nem mesmo um dedo conseguia mover.

    “ Droga!”

    A mulher começou a se aproximar. A expressão dela era pura raiva—uma fúria tão intensa que parecia capaz de reduzir o mundo a cinzas se quisesse.

    — Não estou feliz em ver você agora!

    Se ao menos ele conseguisse perguntar o que estava acontecendo… Mas, por mais que tentasse, era incapaz de emitir qualquer som.

    A mulher pareceu entender sua súplica silenciosa. Revirou os olhos e, com um simples estalar de dedos, lançou-o para trás.

    Assim que sentiu seu corpo livre da paralisia, moveu as mãos e apertou o próprio pulso, certificando-se de que realmente podia se mexer. Então, ergueu os olhos para os dela—um verde igual ao dele.

    — Não é legal sair paralisando as pessoas, sabia?

    Por um instante, ela pareceu surpresa, mas logo sua expressão severa voltou.

    — Você cometeu o pecado mais grave do submundo: Suicídio.

    Ele ficou em silêncio, encarando-a, enquanto o vento bagunçava os cabelos negros dele.

    — Então… eu estou morto? — Assim que as palavras saíram de sua boca, Kino desejou não ter feito uma pergunta tão óbvia.

    — Sim, isso nos coloca em uma situação… complicada. Não podemos julgá-lo como os outros. — Havia uma ponta de irritação em sua voz; ela nem sequer tentava disfarçar.

    — O que isso significa?

    — Você está morto. Ou melhor, se matou. Interrompeu seu curso natural, me chamou antes da data prevista. Entendeu ou quer que eu desenhe?

    Kino levou a mão ao queixo.

    — Qual é a diferença?

    Ela inclinou a cabeça e suspirou.

    — A vida é sua, mas você não tem o direito de decidir quando ela acaba. Só eu posso fazer isso. — Com um movimento lento, tirou uma espada negra do bolso, algo impossível pelo tamanho e peso da lâmina.

    — Quem diabos é você? — deu um passo para trás com os olhos prestes a sair da caixa.

    Ela não respondeu de imediato. Apenas observou a lâmina por um instante, até que, diante dos olhos dele, a espada se transformou em uma foice.

    — Você é a Morte!— disse Kino de queixo caído.

    — Pensei que fosse óbvio.

    ” Tão óbvio…”

    — Então… o que vai acontecer comigo? — Kino tentou esconder qualquer sinal de medo ou inquietação, porém suas mãos estavam tremendo.

    — Você tem duas opções. — Ela se virou e, com um gesto, o ambiente ao redor mudou. O ar tornou-se denso, sufocante, como se estivesse respirando fogo.

    O chão sob seus pés começou a esquentar cada vez mais, a ponto de parecer que estava sendo cozido vivo. Caiu de joelhos, lutando inutilmente para encher os pulmões.

    — N-não… consigo… respirar… — O jovem pálido conseguiu sussurrar, cada palavra exigindo um esforço colossal. O calor era insuportável. Seus joelhos ardiam, e a dor se intensificava a cada segundo.

    A tortura fez sua visão escurecer. A Morte o observou, um sorriso satisfeito surgindo em seu rosto, antes de estalar os dedos.

    Ele arfou, tentando recuperar o fôlego.

    — O que… foi… isso? — kino perguntou, esforçando-se para se manter de pé. Ele acrescentaria à sua lista mental de coisas a evitar: jamais irritar um ser poderoso.

    A Morte apontou para um campo plano, cercado por árvores de troncos retorcidos. As copas estavam carregadas de frutos escuros que pareciam pulsar, como se estivessem vivos.

    Mas o mais perturbador eram os gritos—altos, desesperados—vindo de algum lugar.— Arranque um galho daquela árvore. Sem questionar, ele obedeceu. Assim que tocou o tronco e quebrou um galho, um líquido vermelho jorrou da madeira, acompanhado de um grito agudo e angustiante. Seu sangue gelou.

    — São… pessoas? — murmurou, incrédulo, dando um passo para trás. No mesmo instante, enormes pássaros desceram do céu, rasgando os frutos com seus bicos. O ar se encheu de mais gritos de dor.

    — Aqui é onde os suicidas deveriam permanecer por toda a eternidade. — A voz dela era indiferente. — Esses frutos crescem dolorosamente, e as aves do submundo vêm se banquetear, trazendo ainda mais sofrimento.

    Ele tentou organizar os pensamentos. Tudo girava em sua mente—confusão, desespero, uma sensação de irrealidade que não conseguia explicar.

    ” Acho que vou enlouquecer…”

    — Tá, deixa eu ver se entendi. A vida pós-morte é real. A Morte é real. Eu morri e deveria estar ali, como uma dessas árvores… mas, por que não estou?

    A Morte arqueou uma sobrancelha.

    — Você pode aceitar seu destino, transformar-se em uma árvore e sofrer eternamente enquanto dá frutos… ou pode escolher participar de um jogo.

    — Um jogo?

    — Sim, um jogo. Nada demais. — Com os dedos, deslizou pela lâmina da foice, como se estivesse se preparando para algo importante.— Você competirá contra outras pessoas que, bem… decidiram chamar a Morte antes da hora.

    — Quantas?

    — Seis. Contando com você. — A resposta foi fria e direta. Kino se perguntou se aquelas outras pessoas também haviam feito a mesma escolha naquele exato momento.

    Kino olhou novamente para as árvores retorcidas, sem saber o que esperar desse jogo, mas qualquer coisa parecia melhor do que aquela eternidade de sofrimento.

    Por um instante, ele refletiu sobre tudo que o levara até ali.

    Havia acreditado que seus problemas terminariam com a morte, mas agora via que estava enganado.

    — Eu aceito.

    Ele não tinha muitas opções. Se houvesse uma chance, por menor que fosse, de escapar desse destino, ele a agarraria. A Morte assentiu.

    O ambiente ao redor pareceu se transformar com sua aprovação.

    — Ótimo, vou cuidar de tudo.

    — Posso fazer uma pergunta?

    Ela manteve a expressão neutra sem falar nada. Então ele imaginou que seria um “sim”.

    — Essas pessoas… se mataram no mesmo dia que eu?

    — Na mesma hora. No mesmo segundo. — A voz dela carregava desprezo. — Como eu odeio pessoas como vocês. Acham que, ao morrer, todos os problemas desaparecem. Esquecem dos que ficam para trás.

    — Nem todo mundo tem alguém para deixar neste mundo. — Ele apertou os punhos. — Eu, por exemplo, não tinha ninguém que sentisse minha falta.

    A Morte riu.

    — Me pergunto se isso é mesmo verdade. Antes que Kino pudesse responder, tudo mudou novamente. Agora, ele estava em um quarto, deitado em uma cama, mais velho, talvez com trinta anos. Ao seu lado, uma mulher de cabelos castanhos, assim como os dele, dormia com um sorriso suave nos lábios.

    Ele observou, paralisado, enquanto seu “eu” mais velho despertava e a beijava. A porta se abriu, e duas crianças pequenas entraram, carregando uma bandeja. O menino, animado, gritou:

    — Feliz Dia dos Pais! A garotinha pulou na cama, seguida pelo irmão, enquanto a mulher ria com ternura. O coração dele disparou. Aquilo não podia ser real.

    — Uma linda esposa, dois filhos que o amam, uma casa acolhedora… — A voz dela surgiu em sua mente. — Você teria tudo isso em alguns anos. As mãos dele tremeram. Caiu de joelhos, batendo o punho no chão.

    — Não! — O sangue escorreu de seus dedos, mas a dor física era insignificante naquele momento. A Morte se abaixou diante dele, os olhos fixos nos seus.

    — E adivinha? Sua futura esposa não o conhecerá. Casará com outro homem, um homem cruel que a tratará como um objeto. No fim, ele a matará. — o sorriso dela se alargou — Seus filhos… nunca existirão. Você os apagou da história. E adivinhe de quem é a culpa?

    Ela se inclinou, sussurrando junto ao ouvido dele:— Sua!

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