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    O abrigo finalmente surgiu diante deles, a silhueta do prédio contra o branco infinito que agora dominava a região. Dante o avistou primeiro, os olhos semicerrados para enfrentar o vento gelado que cortava seu rosto como pequenas lâminas invisíveis.

    A neve, até poucas horas sendo branda, tinha se tornado uma tempestade mais intensa, envolvendo tudo ao redor em uma cortina de gelo e silêncio.

    Ele ergueu o braço instintivamente, protegendo o rosto contra o frio que penetrava bastante pela sua vestimenta. Mesmo sendo um tecido dado por Freto e Crish, ele não suportava tanto, ficando bem úmido e aumentando seu peso.

    Encarou os demais atrás de si. Ele afundava seus pés na neve acumulada, criando um caminho melhor e menos cansativo. Queria poder ter uma previsão daquela tempestade, mas por sorte, já estavam se aproximando.

    Não havia mais ninguém pelas ruas. O silêncio era quase absoluto. Os carros foram soterrados pela neve com cobertores brancos cobrindo tanto por dentro quanto por fora. E os buracos no asfalto haviam desaparecido. O chão era mais uma armadilha do que uma via.

    Não tinha visto muitas neves quando era mais novo. Claramente, montanhas mais afastadas tinham seu topo recheados de neve, mas jamais tinha tocado uma diretamente. Seu pai costumava dizer que o inverno era sempre rigoroso, mas que nunca deveria ser comparado nos lugares que nevava.

    — Agora entendo o porquê.

    Jix o escutou e questionou, mas Dante apenas alegou estar pensando alto.

    Eles se aproximaram finalmente do prédio. A porta havia sido fechada por dentro, com a madeira cheia de cristas. Ele bateu três vezes, cada pancada ecoando como um trovão.

    Houve movimentação do lado de dentro, mas ninguém abriu a porta. Dante encarou as pessoas atrás de si, tremiam quase congeladas. Marcus também se aproximou pela lateral, e chegou a eles.

    — Pode abrir, Clara parece que está no último andar.

    Dante confirmou com a cabeça, segurou a maçaneta e a empurrou. A porta rangeu com a força dele, emperrando por dentro. Largou a maçaneta, com um pouco de insatisfação, e abriu a palma, pondo bem no centro da madeira.

    Em um segundo, o ar foi enviado e as cristas todas quebraram ao mesmo tempo, caindo pedaço a pedaço. E então, com um gesto mais leve, empurrou a porta completamente para trás.

    Dante se surpreendeu quando entrou. Antes, o primeiro andar era um cenário de desolação absoluta — apenas pilhas de entulho, lixo acumulado, lama espessa e raízes de plantas invasoras que se entrelaçavam pelas rachaduras do concreto.

    Agora, porém, o trabalho meticuloso de Clerk havia trazido uma nova vida ao lugar. Ele recuperou o chão, limpando cada centímetro até revelar as marcas desgastadas do antigo revestimento. As pilastras, antes inclinadas e cobertas de musgo, foram restauradas, erguidas.

    E o hall, mesmo modesto em tamanho, tinha um charme resiliente, um refúgio simples, mas suficiente para acolher quem precisasse de abrigo.

    — Dante — o próprio Clerk tinha um pedaço de ferro na mão, esperando um intruso. Assim que o viu, jogou no chão e abriu os braços, numa chama de amistosidade. — Eu não esperava que retornasse no meio da tempestade.

    — Tive um problema, mas agora, estamos todos aqui.

    Dante recuou, abrindo passagem para o grupo que entrou quase tropeçando na pressa. Tremiam de frio, os dentes batendo em um ritmo frenético, suas roupas encharcadas, o cabelo e os braços congelados. Alguns abraçavam a si mesmos, tentando roubar um calor inexistente, enquanto olhares desesperados buscavam qualquer sinal de conforto no ambiente.

    A expressão de Clerk se distorceu em uma preocupação genuína.

    — Meu Deus. Isso é… horrível. — E brandiu o braço para todos do primeiro andar. — Vão e peguem roupas e cobertores. Temos que manter essas pessoas aquecidas. E chamem Clara e Meliah.

    Marcus adentrou e retirou o óculos térmico. Dante também colocou Jix no chão, que saiu caminhando para perto de algumas pessoas conhecidas. A única pessoa que ele não via era… Juno.

    Ao virar de costas, ela ainda estava do lado de fora do prédio, tremendo e batendo os dentes. Mas seus olhos estavam fixos nele. Ela tinha uma expectativa silenciosa, aguardando um gesto, uma palavra, um convite. A coitada da garota simplesmente não aceitava estar em um lugar onde não era convidada a estar.

    — Vai morrer de frio se ficar ai, idiota. — Dante esticou sua mão. — Venha, se você morrer, do que adianta me pedir para te treinar.

    Juno abriu a boca, querendo dizer algo, mas não o fez. Simplesmente deu mais um passo e adentrou a porta. Dante usou essa chance para fechar tudo, lacrando o calor de volta ao primeiro andar.

    Finalmente, depois de dois dias, tinha voltado.

    — Lar doce lar — disse a Juno lhe dando um tapa nas costas. — Agora, está vendo aquele cara ali ajudando? O nome dele é Clerk. Ele vai te ajudar com roupa.

    Juno o ignorou. Na verdade, os novos moradores da Ilha Predial ignoravam Clerk também. Alguns falavam em murmúrios baixos, gesticulando com as mãos enquanto tentavam entender onde estavam, como se as palavras ainda não tivessem encontrado um lugar em suas mentes. Seus olhos se fixavam nas lâmpadas acesas no teto, como se a luz fosse uma promessa de algo que não podiam alcançar há muito tempo. Eles não notavam Clerk, nem a presença dele, absorvidos pela novidade de ter energia elétrica.

    Dante não os julgava, até porque quando eles instalaram a placa solar e a bateria, os antigos moradores tiveram expressões idênticas.

    — Pare de me fazer perder tempo. — E a empurrou de leve, se divertindo. — Até parece que isso te deixa impressionada, você atira raios das mãos.

    Juno, então, pareceu ligar uma coisa na outra, concordando com a cabeça várias vezes em silêncio. Ela foi e se sentou em um banco de pedra, esperando sua vez de ser atendida. Ela ficou ali por um momento, os olhos se movendo lentamente pelo ambiente. Dante se moveu para a outra ponta, mas sendo chamado por Jix, que também fitava a garota de longe.

    — Temos dois problemas. Primeiro, largue de ser burro. Mesmo que possa treiná-la, deve ter em mente como vai fazer isso. Não é só sair batendo nela.

    Dante retirou o casaco pesado do ombro, e depois os suspensórios.

    — Sei disso. E a segunda?

    — Não pode deixar Meliah saber que essa menina foi quem quase fez o irmão ir encontrar Deus. E sabe bem o porquê.

    — Sei disso — disse Dante passando a mão no cabelo e tirando o excesso de neve. — Mas, sendo bem sincero, mesmo se ele quisesse, acredito que não conseguiria. E mais, Marcus já deve estar lá em cima falando com Clara.

    Jix não estava satisfeito. Meliah Jones podia ter negociado a Pedra Lunar, mas nunca admitiria que Juno ficasse no abrigo enquanto o irmão se recuperasse. Na verdade, o que deixava ainda mais estranho era que Degol Jones tinha sido derrotado por ela muito rápido.

    Não. Dante tinha certeza de que ela podia fazer aquilo. A capacidade de luta dela, sua destreza e precisão, além da maestria em ter conjurado aquelas lâminas feitas de eletricidade eram a prova clara de que o mais novo dos irmãos Jones foi humilhado.

    Pior ainda, Dante tinha total e completa certeza de que Juno sequer usava sua habilidade em total capacidade. Não a julgava, claramente. Ele também não podia fazer por questões físicas.

    — Agora, Jix. — Dante bateu duas palmas. — Vou subir para comer e vou levar a garota junto. Quer se juntar a mim?

    O velhinho o encarou, ainda rabugento.

    — Claro que quero, me carregue.

    Dante pegou Jix e o colocou no ombro. Assim que pisou no primeiro degrau para subir, sentiu um aperto em seu casaco, vindo de trás. Virou-se, ambos velhos encararam Juno com um casaco novo, de cor vermelha, e bem pesado.

    Ela tinha um rosto inocente, mas não o largou depois falar.

    — Eu… gostaria de comer algo, por… favor.

    — Ra, claro que sim. — Dante a puxou para as escadas, bem animado, a colocando em sua frente. — Lá em cima tem uma moça que cozinha bem. Ela sempre reclama que eu almoço umas três vezes, sabia? Mas eu costumo comer muito. E gostei da roupa, o vermelho é bom.

    O casaco fechado de cor vermelha era idêntico ao de Dante. Juno passava a mão no tecido, como se apreciasse estar quente e confortável.

    Era doloroso se lembrar de que sempre teve tudo, e essas pessoas, nada além de medo, fome e desesperança.

    Quando chegaram no segundo andar, quem esperava eles era Clara. Ela tinha trocado de vestimenta, assumindo um robe pesado branco, combinando com seu cabelo, mas dessa vez, tinha deixado preso em um rabo de cavalo, caindo até o final das costas.

    Dante e Juno pararam imediatamente ao vê-la, estupefatos pela beleza. A garota parecia hipnotizada, sua respiração presa por um instante, enquanto Dante, por um segundo, se viu sem palavras, como se tivesse sido arrancado de sua realidade e transportado para algo distante.

    Nunca precisou ditar elogios sinceros aos outros, mas à Clara, ele sempre encontrava um novo.

    — Ah, vocês chegaram.

    Juno recuou um passo quando Clara se aproximou, batendo as costas em Dante. Clara sorriu para ela e esticou a mão, acariciando os cabelos negros da garota.

    — Eu ouvi um boato do Marcus, sabia? Ele disse que você deu trabalho para Dante. É verdade mesmo?

    — Não… eu…

    Juno simplesmente não tinha palavras para responder. Estava ficando bem desconfortável com aquela mulher tão serena em sua frente.

    — Está tudo bem. — A mão larga de Dante repousou em seu ombro. — Na verdade, ela deu um trabalho. Até me fez suar. Foi estranho, não acontece geralmente.

    Clara deu uma risada. Dante esperava que ela o repreendesse por ter saído sem avisar, ou por ter levado Marcus, ou por ter ido contra Simone, ou ter dito coisas inapropriadas para Meliah. Mas, Clara apenas sorria, como se aquilo realmente não tivesse importância agora.

    — Bom, a gente tem uma regra, mocinha. — Clara segurou as mãos de Juno. — Quem consegue impressionar Dante pode repetir o almoço. E então, quer comer duas vezes? Temos ensopado, e carne.

    A boca de Juno salivou só de ouvir. Dante também.

    — Carne.

    Clara assentiu e apontou com a mão.

    — Aquela lá é Juliane. Só pedir a ela.

    Juno rapidamente saiu correndo na direção do ensopado, sem ao menos olhar para trás. Dante se sentiu um pouco traído. Ele deixou Jix ir também, apontando e dando direções para Juno de onde pegar pratos e talheres.

    Assim, ficou sozinho com Clara naquele pequeno espaço de tempo. Ela fez um gesto discreto com a cabeça, um aceno sutil, mas firme, indicando a escada que levava ao andar superior. Clara queria conversar, mas não ali, não com todos ao redor. A solicitação estava clara em sua expressão serena: ela queria algo mais privado, mais íntimo.

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