Capítulo 72: Retornando de Mãos Cheias (II)
O terraço também teve uma bela reformulação. Uma lona nova tinha sido posta cobrindo a escada, e estendendo por quase dez metros. Uma nova parede foi erguida de cada lado, assegurando melhor contra a tempestade que tentava a qualquer custo penetrar na conversa deles dois.
Clara tinha puxado Dante para um canto, onde entregou uma cuba com o cozido. Ela também tinha uma, segurado com delicadeza. Ainda usava aquelas luvas desgastadas.
— Você tem muito culhão, Dante. Isso eu admito. — Clara pegou um garfo, apontando a batata com sua ponta. — Trouxe a pessoa que possivelmente machucou Degol para cá e ainda tratou como se fosse sua filha.
Dante estava mastigando a carne de porco quando ela agarrou em sua garganta. Ele tossiu duas vezes, fazendo Clara rir.
— Não achei que isso fosse te deixar tão abalado. — Um pano foi esticado, e ele limpou a boca e o resquício de saliva que tinha voado em sua perna. — Bom, foi o que todo mundo estava dizendo. Ela parece um pouco tímida, o que impede de questionarem o que fez antes.
— Primeiro, ela não é minha filha. E sim, eu tenho culhão. Se não tivesse, eu nem estaria aqui.
Clara ergueu as sobrancelhas, ignorando a soberba brincalhona dele.
— Claro, claro. O homem que pulou dentro de um portal para salvar seus amigos, e agora, está aqui conosco, salvando desabrigados e trazendo comida para uma mulher desesperada. — De forma zombeteira, ela levou a mão ao peito. — Estou emocionada em ouvir sua belíssima história. Mas, eu não tenho tempo.
Dante deu risadas, continuando a comer.
— Quer um relatório.
— Claro que sim. — O garfo foi apontado para ele. — Vamos, pode começar.
Os dois compartilhavam uma caixa maior, trocando de lugar e cruzando as pernas, próximos somente um metro. Dante gostava dessa proximidade. Por alguma razão, a mulher estava radiante. Mesmo sendo mais velha, ela tinha uma aura serena que o tirava do caos do mundo ao redor.
Seria uma interessante…
Não. Dante tirou isso da cabeça na mesma hora. Tinha muita coisa em jogo para pensar em um romance, ainda mais com Clara Silver. Ele era novo, tinha seus 29 anos, e ela… bom, era uma mulher mais madura, cheia de experiências.
Era hora de deixar os sentimentos de lado e concentrar-se nos fatos.
Desde sua conversa com Marcus na porta do Centro de Pesquisa, até sua entrada e luta, cada uma das suas ações foram descritas para que Clara entendesse sua forma de agir. Ele não deixou de lado o que falou para o atirador, e nem que o abraçou.
Clara pareceu mais emocionada à medida que ouvia, mas quando narrou a luta com Juno, ela ficou concentrada, fixando seus olhos no dele. Perguntava sobre a posição do homem que estava com Juno, e sobre como ele tinha morrido. Ele não ocultou.
Quando a morte de Sebastian foi descrita, esperou que viesse uma repressão pelas suas ações. Pelo contrário, Clara esticou o braço e segurou sua mão com delicadeza.
— Você fez o que tinha que fazer. Isso é importante. Não sou a pessoa certa para julgar, mas aquelas pessoas teriam um fim terrível se você não interviesse. — E seu dedo indicador arrastou sobre o de Dante. — O que fez por Marcus ali, eu respeito mais do que qualquer outro já tenha feito por nós.
— Tirar uma vida ainda é um pecado bem grande. — Não ocultou a desaprovação dos seus atos. — Eu podia ter derrubado ou até mesmo deixado ele dormindo. Escolhi o caminho mais fácil, o mais rápido.
Clara não largou sua mão e pressionou os lábios para dentro, numa expressão que dizia ‘Está tudo bem’.
— Fez o que precisou ser feito. E isso é o mais importante, voltou com as mãos cheias. Bom, foi com pessoas e sem a Pedra Lunar que Meliah queria, mas voltou.
Dante deu uma risada. Ele permaneceu sua mão na dela, sem querer puxar. Com a outra mão, ele mergulhou nos recessos do casaco, seus dedos buscando algo no fundo do bolso interno. Quando voltou a tirá-la, uma pedra amarelada repousava em sua palma, cintilando de forma quase tímida.
A luz suave dançava entre os sulcos de seus dedos, revelando algo mais profundo — uma pulsação, um sussurro de Energia Cósmica que parecia vibrar no ar ao redor.
— É isso que você queria ver? — murmurou ele, a voz baixa, quase desafiadora, enquanto o brilho refletia em seus olhos, tornando-os ainda mais intensos.
Clara não puxou sua mão de volta, e também usou a outra para tocar a pedra. Assim que seus dedos a roçaram, um arrepio percorreu sua pele. Ela parecia hipnotizada. Agora, Meliah claramente lhe devia uma vida. O objeto salvaria seu irmão, e melhor ainda, garantiria todos os suprimentos do Inverno.
Ela finalmente ergueu o olhar para Dante, os olhos brilhando com uma mistura de gratidão e reverência.
— Isso… isso vai funcionar? — perguntou, a voz mal saindo, como se temesse quebrar o encanto.
Dante deu de ombros, um sorriso irônico surgindo em seus lábios.
— Se não funcionar, vou ter que xingar os dois irmãos de novo.
Ela avançou de repente, o abraçando. Dante esticou os dois braços para o lado, sem reação. Aquele abraço o desarmou completamente. Ele não esperava algo tão direto, tão intenso. Clara enterrou o rosto no ombro dele, enquanto ele olhava para o vazio à sua frente, sem palavras, tentando processar o momento. Por mais que quisesse reagir, seus pensamentos da Capital o impediam.
Dante afrouxou a mentalidade. Um portal para casa demoraria quantos anos? E onde ficava a Capital? Nem mesmo sabia onde estava. Nem mesmo tinha noção de quanto tempo tudo iria se manter instável.
É errado desejar que demore um pouco para chegar o dia que eu for embora?
Dante se sentiu culpado pela pergunta, mas não podia evitar. Ele não queria admitir, mas algo em sua alma ansiava por mais tempo ali. Sem pensar muito, foi fechando os braços, até que tocou as costas de Clara.
Ela soltou uma risadinha suave, a cabeça afundando mais no ombro dele, como se se entregasse ao momento, sem pressa de se afastar. A risada foi leve, mas carregada de uma ternura inesperada.
— Achei que não iria me devolver o abraço. O poderoso Dante não abraça as pessoas que agradecem?
Com a mão livre, ele fechou o punho ao redor do robe branco dela, os dedos roçando suavemente os fios de cabelo que caíam sobre seu ombro. O toque foi quase instintivo, como se sua mão quisesse manter a proximidade, sem querer quebrar a conexão que, de algum modo, se formava entre eles.
— Acho que só se a pessoa for você — murmurou, a voz baixa, mais suave do que ele esperava.
Havia algo na forma como ele disse aquilo que deixava claro: não era uma simples resposta, mas uma confissão disfarçada. Aquelas palavras carregavam um significado que ele não sabia como lidar, mas que, de algum modo, fazia todo o sentido.
Sempre fez sentido, ele só não queria negar.
— Fico lisonjeada, Dante. Espero que possa ser a única a fazer isso.
— Precisa me convencer a querer te abraçar, e não me pegar de surpresa igual agora — brincou, fazendo cócegas nela. — Tá vendo? Você não aguenta nem cinco minutos de trocação franca comigo.
Clara lhe empurrou para trás, arfando com uma risada. Ela tinha ficado vermelha, mas seu rosto era iluminado como se a própria lua estivesse presente. Dante não podia deixar de admirá-la.
— Aqui. — Ele esticou a mão com a Pedra Lunar. — Entregue ao Meliah e diga que foi bem difícil, e que se ele for uma boa pessoa, como diz ser pra todo mundo, que mande mais coisas pra gente. Ele tem que deixar de ser pão-duro, Clara.
— Já falei com ele sobre isso. Eles se despedem de mão fechada. Assim, olha. — A mão fechada balançando de um lado pro outro. — Não sei nem como eles conseguiram gente para trabalhar com eles.
Clara pegou os dois pratos e colocou ao lado. Antes de se levantar, ela novamente segurou a mão de Dante.
— Antes de ir entregar isso. Aqui, eu também tenho algo pra você. Aqui.
Do bolso do robe, algo chamou a atenção de Dante. Um papel. Não, ao olhar melhor, ele percebeu que não era apenas um papel qualquer, mas uma carta. Ela estava lacrada com um selo verde, delicadamente estampado, como se tivesse sido selada com um propósito especial. Dante a observou com um olhar confuso, sentindo uma curiosidade crescente.
Ainda admirado, Dante levantou os olhos, mas Clara já estava se afastando, tocando suavemente seu ombro antes de partir. O gesto foi simples, mas cheio de significado. Ela não olhou para trás, mas suas palavras foram claras e diretas.
— Obrigado por tudo. Acho que nunca agradeci de um jeito certo.
Ela saiu caminhando. E Dante, com cuidado, abriu a carta.
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