Índice de Capítulo

    Azrael se sentava em um canto escuro de um bar decadente, o capuz de sua vestimenta pesada ocultando suas feições. Se passaram dois anos desde que ele resgatou Naara, e, desde então, evitava a presença de qualquer um que não fosse ela. Naara era a única a quem permitia estar por perto, mesmo em seus momentos de maior isolamento.

    O bar estava movimentado, com criaturas de diferentes origens e intenções reunidas em meio à penumbra e ao cheiro forte de álcool e ferrugem. Azrael estava ali para relaxar, ou pelo menos tentar. Sua bebida descansava intocada sobre a mesa enquanto ele observava o ambiente, os olhos atentos por trás da sombra do capuz. Contudo, sua tentativa de descanso foi abruptamente interrompida.

    Um demônio robusto, de pele escamosa e olhos brilhantes, estava importunando uma garota demônio que não parecia ter mais que a aparência de uma criança. Ela estava acuada, os olhos grandes cheios de medo, enquanto o demônio ria e a encurralava contra a parede.

    Azrael suspirou, irritado. Não consigo ter um momento de paz nem aqui. Ele se levantou, a longa capa roçando o chão, e caminhou em direção à confusão. As conversas ao redor cessaram gradualmente enquanto os frequentadores do bar notavam a figura imponente se aproximando.

    “Deixe-a em paz”, disse Azrael, sua voz grave e firme. O demônio virou-se, avaliando Azrael com um sorriso desdenhoso.

    “E quem é você para me dar ordens?” retrucou o agressor, aproximando-se ameaçadoramente.

    Azrael não respondeu. Em vez disso, em um movimento rápido e preciso, agarrou o demônio pela gola e o jogou contra uma mesa, que se partiu com o impacto. Antes que o agressor pudesse reagir, Azrael desferiu uma série de golpes com uma frieza calculada. O demônio caiu inconsciente no chão, deixando um silêncio pesado no ar.

    Sem dizer uma palavra, Azrael voltou para sua mesa e retomou sua bebida, ignorando os olhares surpresos que o seguiam. Os murmúrios começaram a circular pelo bar enquanto os frequentadores tentavam adivinhar quem era o homem encapuzado que acabara de subjugar o demônio com tanta facilidade.

    Azrael estava prestes a se perder novamente em seus pensamentos quando notou um movimento ao seu lado. A garotinha demônio, que ele acabara de salvar, estava ali. Seu corpo tremia levemente, e ela segurava uma pequena pedra brilhante nas mãos.

    “Obrigada”, disse ela, com a voz baixa e hesitante. “Por favor, aceite isso.”

    Azrael olhou para a pedra por um momento antes de balançar a cabeça. “Não preciso disso.”

    A garota hesitou, mas continuou. “Qual é o seu nome?”

    Azrael bufou, impaciente. Em vez de responder, puxou o capuz para trás, revelando seu rosto apenas para a garota. Os olhos da garota se arregalaram em reconhecimento.

    “Você é… o príncipe dos demônios”, sussurrou ela, com a voz cheia de admiração e temor.

    “Sim”, disse Azrael, sua voz fria. “E se você contar isso a alguém, eu mesmo acabarei com você. Entendeu?”

    A garota assentiu rapidamente, o medo claro em seus olhos. No entanto, havia também algo mais — um brilho de felicidade por ter descoberto quem era seu salvador. Ela deu um passo para trás, apertando a pequena pedra contra o peito.

    “Obrigada, senhor”, disse ela antes de sair apressada, o semblante visivelmente mais leve.

    Azrael suspirou novamente, voltando sua atenção para a bebida. Não importa o que eu faça, o mundo nunca me deixa em paz.

    Cinco meses haviam se passado desde aquele evento. Azrael caminhava pelas ruas, dirigindo-se ao castelo, sua presença envolta em uma aura de tensão. Seu pedido havia sido negado por sua majestade Belial, seu pai, e ele não conseguia conter a irritação que o consumia. Contudo, algo interrompeu seus pensamentos: ele sentiu um olhar o observando das sombras de um beco escuro.

    Ele parou abruptamente, os olhos se estreitando enquanto examinava o local. O que é agora? Movendo-se rapidamente, ele contornou a presença que o observava, aparecendo por trás da figura antes que ela percebesse. A pessoa parecia preocupada, procurando por ele de forma ansiosa.

    “Está me procurando?” Azrael perguntou, a voz grave e carregada de irritação.

    A figura se virou rapidamente, surpresa. Era uma jovem com cabelos negros e olhos da mesma cor, sua aparência trazendo à tona memórias que Azrael não esperava revisitar. Ele suspirou, irritado.

    “Você… é a garota do bar”, disse ele, visivelmente irritado. “O que está fazendo aqui?”

    A jovem segurava um pequeno livro em suas mãos, apertando-o contra o peito como se fosse um tesouro. “Eu… estava escrevendo um conto”, respondeu ela timidamente, desviando o olhar.

    Azrael arqueou uma sobrancelha, o humor já curto se desgastando ainda mais. “Me entregue isso”, exigiu ele, apontando para o livro.

    “Ainda não terminei”, respondeu ela, a voz trêmula, mas sem soltar o livro.

    Azrael não recuou, a irritação em seus olhos vermelhos deixando claro que não aceitava recusas. Relutante, a jovem entregou o pequeno volume a ele. Azrael abriu o livro, folheando as páginas com desinteresse aparente até que algo chamou sua atenção. As palavras contavam a história do príncipe dos demônios, Azrael, e de alguns de seus feitos de quando era mais jovem.

    “O que é isso?” perguntou ele, a voz tingida de desconfiança.

    “É sobre você”, respondeu a jovem, os olhos abaixados. “Eu… eu admiro você.”

    Azrael permaneceu em silêncio por um momento antes de fechar o livro com um movimento brusco. “Qual é o seu nome?” perguntou ele finalmente.

    “Lyria”, disse ela, levantando o olhar brevemente antes de desviar novamente.

    Ele devolveu o livro para ela, os olhos fixos em sua figura diminuta. “Não me siga”, disse ele, a voz fria. “E não escreva sobre mim. Eu só trago mal para aqueles ao meu redor.”

    Sem esperar uma resposta, Azrael virou-se e continuou seu caminho, deixando Lyria sozinha no beco. Ela ficou parada ali por um momento, segurando o livro contra o peito, enquanto ele desaparecia na escuridão da noite.

    Azrael havia notado. Não importava o quão discreta Lyria tentasse ser, ele sempre sentia sua presença nos arredores. Às vezes ela estava escondida entre as multidões, outras vezes à espreita em um beco distante. Embora ele nunca tenha enfrentado diretamente, sua paciência estava sendo testada.

    “Por que ela insiste nisso?” murmurou para si mesmo, enquanto caminhava pelos corredores abandonados de uma antiga ruína, onde treinava com Naara.

    Naara, que havia parado para recuperar o fôlego, notou o humor sombrio de Azrael. Com olhos serenos, ela limpou o suor da testa.

    “Você tem andado mais irritado que o normal”, disse ela, sua voz calma contrastando com a intensidade do ambiente. “É por causa daquela garota, não é?”

    Azrael parou de ajustar suas manoplas, lançando um olhar refinado para Naara. “Não é da sua conta.”

    Naara deu um leve sorriso. “Se não fosse, você não estaria falando sozinho. Vai atrás dela ou continue ignorando. Esse meio-termo está te distraindo.”

    Azrael bufou, desviando o olhar. Ele sabia que Naara tinha razão. A insegurança que sentia não era apenas pela insistência de Lyria, mas também por uma curiosidade incômoda sobre o que ela continuava escrevendo.

    Dois dias depois, durante uma noite particularmente silenciosa, Azrael finalmente cedeu. Ele encontrou Lyria em um campo aberto, sentada sob a luz pálida da lua. A jovem parecia absorta, escrevendo em seu pequeno livro com um cuidado quase reverente.

    Sem fazer barulho, ele se moveu, a capa pesada balançando levemente com o vento. Quando parou à sua frente, ela levantou os olhos, assustada, mas não surpresa.

    “Você não entende o significado de ‘não me siga’?” disse ele, com voz baixa.

    Lyria segurou o livro com firmeza, sem se levantar. Apesar do medo evidente, havia determinação em seus olhos. “Eu não posso evitar.”

    Azrael arqueou uma sobrancelha, impaciente. “Por quê?”

    Ela hesitou por um momento, como se estivesse escolhendo cuidadosamente as palavras. “Porque… você é a pessoa mais fascinante que já conheci. Mesmo que não queira, suas ações salvam vidas e inspiram. Não importa o quanto tente afastar as pessoas, você ainda é alguém que elas admiram.”

    Azrael ficou em silêncio, as palavras dela o atingem mais profundamente do que gostaria de admitir. Ele respirou fundo, tentando controlar a raiva crescente.

    “Você não sabe nada sobre mim”, disse ele, a voz fria. “Eu não sou alguém para ser admirado.”

    “Talvez você pense isso, mas não é verdade.” Lyria segurou o livro ainda mais forte, como se fosse um escudo. “Você diz que só traz mal às pessoas, mas salvou minha vida. E não foi só isso. Você também me deu coragem. Coragem para enfrentar o mundo, mesmo sendo fraca.”

    Ele estreitou os olhos, sentindo uma pontada incômoda de algo que não queria considerar. “O que você está escrevendo?”

    Ela hesitou, mas entregou o livro sem protestar. Azrael o abriu e começou a ler, folheando as páginas lentamente. Cada palavra era um reflexo de suas ações, mas descrita com uma clareza de que ele nunca havia permitido a si mesmo. Os detalhes, mesmo os pequenos, eram retratados com uma sinceridade quase dolorosa.

    “Você tem assistido muito mais do que deveria”, disse ele finalmente, fechando o livro e devolvendo-o.

    “Eu só quero que as pessoas vejam o que eu vejo”, respondeu ela, os olhos fixos nos dele.

    Azrael suspirou, massageando as têmporas. “Se quiser se arriscar escrevendo sobre mim, faça o que quiser. Mas não espere que eu te proteja se isso trouxer problemas.”

    Lyria assentiu, com um sorriso tímido surgindo em seus lábios.

    Ele virou-se para ir embora, mas parou após alguns passos. Sem olhar para trás, ele acrescentou: “Você não sabe o que está pedindo ao tentar se aproximar de mim. Se insistir, vai acabar se arrependendo.”

    Ela não respondeu, mas continuou segurando o livro com cuidado, enquanto observava Azrael desaparecer na escuridão mais uma vez.

    A partir daquele momento, ele parou de ignorá-la completamente. Embora continuasse impassível e irritado, Azrael não se afastou mais com a mesma firmeza de antes. Em vez disso, um fio de curiosidade começou a crescer, lentamente. O que aquela garota via nele que ele mesmo não consegue enxergar?

    O tempo passou, e os Quatro Cavaleiros do Apocalipse se tornaram uma lenda viva, conhecidos e temidos em todos os cantos do universo. Cada missão que realizavam deixava um rastro de destruição e consolidava ainda mais a reputação de Azrael como o “Anjo da Morte”. Seu nome era um sussurro de pavor entre os  mortais, uma marca de impiedade que ecoava por todo lugar.

    Mesmo assim, a garota, agora mais velha, continuava a segui-lo. Observava-o de longe, como uma sombra que nunca desaparecia. Seus olhos, mais determinados do que nunca, acompanhavam cada movimento de Azrael, absorvendo cada detalhe. Ele parecia indiferente à presença dela, mas nunca a afastava de fato.

    Certa tarde, após uma batalha feroz, Azrael limpava a lâmina de sua espada enquanto Zenith o observava com um sorriso irônico.
    “Então, chefe, não vai falar nada sobre sua pequena ‘admiradora’?” perguntou Zenith, inclinando a cabeça na direção da garota, que estava sentada em uma rocha próxima, rabiscando algo em um caderno.

    Azrael não respondeu imediatamente, apenas continuou limpando a espada com calma.

    “É estranho”, comentou Naara, franzindo o cenho. “Você, que não deixa ninguém se aproximar, permite que ela fique. Por quê?”

    “Ela é persistente, só isso”, respondeu Azrael, a voz grave e fria. “Já disse a ela para ir embora. Se ainda está aqui, o problema é dela.”

    Zenith riu. “Ah, claro, porque você é tão sentimental. Aposto que se ela realmente fosse embora, você sentiria falta.”

    “Cuidado, Zenith”, disse Azrael, levantando os olhos para ela com um olhar penetrante. “Eu não tenho paciência para piadas.”

    Enquanto Zenith gargalhava e Naara revirava os olhos, Nain apareceu mastigando algo que parecia ser pão. Ele apontou para a garota com um sorriso divertido.
    “Acho que ela só quer escrever sobre você, Chefinho. Quem sabe um dia publique um livro chamado O Diário do Anjo da Morte.”

    Zenith riu ainda mais alto, e até Naara esboçou um sorriso. Azrael, no entanto, permaneceu inexpressivo.

    “Se ela quiser escrever, que escreva”, disse ele finalmente. “Mas eu não serei responsável pelo que acontecer com ela.”

    Naquela noite, enquanto os outros descansavam, Lyria se aproximou novamente. Desta vez, ela parou bem diante de Azrael, que estava sentado à beira de um penhasco, observando o céu estrelado.

    “Você ainda não foi embora”, disse ele, sem desviar o olhar do horizonte.

    “Não vou”, respondeu ela com firmeza.

    Azrael finalmente a olhou, os olhos vermelhos brilhando na penumbra. “Por quê? Não percebe que eu sou um monstro? Que só trago destruição e morte?”

    “Você é mais do que isso”, respondeu ela, apertando o caderno contra o peito. “Você é poderoso, mas também é alguém que protege os outros, mesmo que não admita. Eu sei disso.”

    Azrael soltou uma risada amarga. “Protejo? Não seja ingênua. Tudo o que eu toco acaba destruído.”

    Ela deu um passo à frente, encarando-o com determinação. “Se fosse verdade, você já teria me matado.”

    Azrael ficou em silêncio, analisando as palavras dela. Depois de um momento, ele se levantou, sua figura imponente a encarando de cima.

    “Você é ousada”, disse ele, a voz mais suave, mas ainda carregada de exasperação. “Mas se insistir em me seguir, esteja preparada. Meu caminho é repleto de sangue e sombras.”

    “Eu estou preparada”, respondeu ela, sem hesitar.

    Azrael ficou em silêncio por um momento, observando a garota à sua frente. Seus olhos escarlates brilhavam sob a luz da lua, como duas brasas intensas que queimavam lentamente. Então, ele estendeu a mão.

    “Me dê esse livro”, disse ele, com um tom firme, mas sem raiva.

    Lyria hesitou por um segundo, mas logo entregou. Suas mãos tremiam levemente, mas havia um brilho de determinação em seus olhos. Azrael pegou o caderno e começou a folheá-lo, seus movimentos cuidadosos, quase reverentes.

    Enquanto lia, sua expressão mudou. As páginas estavam repletas de descrições detalhadas, mas era a maneira como ela o retratava que o intrigava. A última batalha estava descrita em nuances vívidas: o caos, os gritos, o som das lâminas se cruzando. Mas, nas palavras dela, ele não era apenas um guerreiro implacável. Ela o havia descrito como alguém que carregava o peso de cada morte.

    “Seus olhos brilhavam com fúria, mas, no fundo, havia algo mais. Uma tristeza latente, uma dor que nunca desaparecia. Ele lutava como se quisesse acabar logo, como se desejasse que o sofrimento terminasse não apenas para ele, mas para todos ao redor. Ele era cruel quando precisava ser, mas, em sua essência, era alguém que queria paz.”

    Azrael apertou o caderno entre os dedos, a mandíbula tensa.

    “Por que você escreveu isso?” perguntou ele, a voz mais baixa, quase um sussurro.

    Lyria o encarou, sem desviar o olhar. “Porque é assim que eu te vejo.”

    Ele fechou o caderno com um movimento brusco. “Você está errada. Sou um monstro, uma arma. Só trago destruição, e você está tentando me transformar em algo que eu não sou.”

    “Você quer parecer um monstro”, respondeu ela, dando um passo à frente. “Mas eu vejo além disso. Eu vi a maneira como você hesitou antes de matar aquele soldado ferido. Vi como você olhou para as cinzas daquela vila. Você sente tudo isso, mesmo que tente esconder.”

    Azrael deu um passo para trás, como se suas palavras o tivessem atingido como uma lâmina. Ele respirou fundo, tentando se recompor, mas memórias começaram a invadir sua mente.

    “Você me lembra alguém”, disse ele, a voz carregada de algo que parecia dor. “Eisheth. Minha esposa. Ela também me via assim. Também acreditava que eu era algo mais do que uma ferramenta de guerra.”

    Lyria inclinou a cabeça, surpresa com a vulnerabilidade inesperada. 

    “E o que aconteceu com ela?” Azrael perguntou, mas não deu tempo para respostas. “Ela morreu”, respondeu Azrael, e, pela primeira vez, sua voz tremeu levemente. “Morreu porque estava ao meu lado. Porque acreditava em algo que nunca existiu.”

    Ele devolveu o caderno a ela, os olhos agora mais frios, endurecidos pelo peso de suas próprias palavras.

    “Não cometa o mesmo erro que ela. Não me trate como um salvador. Eu sou o que todos dizem que sou. Um monstro. Um destruidor.”

    Mas Lyria não recuou. Seus olhos brilhavam com uma mistura de tristeza e teimosia.

    “Isso é o que você quer que todos vejam, Azrael. Mas eu não vejo isso. Nunca vi.”

    O silêncio que se seguiu parecia interminável. Azrael a encarou, o olhar fixo nela como se tentasse decifrar algo que nunca entenderia. Finalmente, ele se virou, cruzando os braços e encarando o horizonte.

    “Você é mais teimosa do que deveria ser”, murmurou ele, quase para si mesmo.

    “Talvez”, disse Lyria, suavemente. “Mas vou continuar escrevendo, porque é assim que eu vejo você. E nada do que você disser vai mudar isso.”

    Azrael não respondeu. Apenas permaneceu ali, encarando a escuridão, enquanto o som suave das páginas sendo viradas preenchia o vazio entre eles.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota