Capítulo 90: Nada de Acordos (I)
Meliah observava a cena com atenção, cada movimento, cada expressão. Antton parecia mais magro do que se lembrava, mas sua postura arrogante continuava intacta. O olhar de confusão e surpresa ao ver Degol era quase cômico, mas Meliah não tinha tempo para achar graça. Ele sabia que aquele encontro não seria simples.
Quando Antton finalmente abriu a boca, Meliah já previa o tom desagradável.
— Como cacetes você está de pé? — Antton perguntou, sem sequer dar um passo à frente. Degol, por outro lado, permaneceu calmo, apenas o encarando de cima a baixo. Meliah havia pedido para que ele não reagisse, mas sabia que não poderia segurá-lo por muito tempo. — Eu ouvi que você tinha ficado em coma, que seus braços e pernas ficaram todos queimados. Disseram que…
— Que eu estava morto? — Degol inclinou a cabeça levemente, a voz carregada de sarcasmo. — Parece decepcionado. Mas não tem problema. Sei que está surpreso, assim como todo mundo que me viu ultimamente.
Meliah sentiu o sangue ferver ao ouvir o tom de Antton. Ele não se aproximou, não estendeu a mão, nem sequer perguntou como Degol estava. Era sempre assim com Antton: tudo girava em torno dele e de suas próprias percepções.
— Não estou decepcionado – Antton disse, erguendo as mãos como se tentasse parecer inocente, mas Meliah sabia que era puro teatro. — Só… chocado, eu acho. As histórias eram bem… dramáticas.
Meliah não disse nada, mas manteve os olhos fixos em Antton, avaliando cada palavra. Degol lidava bem, mantendo-se calmo como haviam combinado, mas a tensão era palpável. Ele viu Degol respirar fundo antes de responder.
— Histórias são histórias. A realidade é que eu estou aqui. Então, por que não corta a enrolação e vamos direto ao ponto, Antton?
Meliah quase sorriu. Degol estava lidando melhor do que ele esperava, mas a provocação de Antton ainda era irritante. O homem deu de ombros e lançou um sorriso enviesado.
— Bom, já que você está milagrosamente inteiro, acho que não tem mais desculpa para ficar deitado enquanto todo mundo se vira para sobreviver.
Aquela frase foi o suficiente para Meliah dar um passo à frente, cruzando os braços. Ele não precisava levantar a voz para impor respeito, e quando falou, sua calma gelada fez Antton estremecer.
— Ele sobreviveu a algo que teria matado você dez vezes, Antton. Então, a última coisa que você vai fazer é questionar o que ele passou.
Meliah notou o desconforto imediato de Antton. O homem abriu a boca para retrucar, mas acabou fechando-a sem dizer nada. Meliah desviou o olhar para Degol, que lhe lançou um aceno discreto de agradecimento.
Degol, então, deu um passo à frente, a voz carregada de uma tranquilidade ameaçadora.
— Estou aqui porque ainda tenho coisas a fazer. E não porque alguém como você tem o direito de decidir se eu mereço ou não.
Meliah olhou ao redor, tentando entender o cenário que se desenrolava diante dele. O prédio destruído era um lugar inóspito, com pilastras caídas e vigas inclinadas que pareciam prontas para desabar a qualquer momento. Mesmo assim, Antton tomou a dianteira, liderando-os para os andares superiores, onde, segundo ele, seus caçadores estavam.
Quando chegaram ao térreo superior, Meliah franziu a testa. Sob uma lona rasgada, estendida de forma precária, estavam várias pessoas. Algumas haviam montado barracas improvisadas, enquanto outras se encolhiam contra o vento cortante que entrava pelas janelas destruídas. Ele não conseguia entender por que estavam ali. Era evidente que o grupo tinha meios de descer para um lugar mais seguro. Permanecer naquele prédio parecia uma escolha deliberada — e insensata.
Lá fora, o som da tempestade aumentava. Flocos de neve se misturavam a gotas de chuva que começavam a pingar pelas frestas no teto quebrado. O frio parecia mais intenso ali em cima, e o desconforto era evidente nos rostos das pessoas que ocupavam o espaço.
— Que merda, Antton — Degol quebrou o silêncio, sua voz suave, quase indiferente, mas carregada de desdém. — Por que diabos você não desceu com todo mundo? Quer matar todo mundo?
Antton não se deu ao trabalho de levantar. Em vez disso, pegou uma cadeira que parecia ter sido consertada às pressas e se sentou com uma tranquilidade que fez o sangue de Meliah ferver.
— Matar? — ele repetiu, com um tom de falsa inocência, inclinando-se para trás na cadeira. — Não. Eles começaram há pouco tempo. Precisam provar que são dignos. Nós fazemos esse tipo de desafio para testar a determinação deles. Você parece surpreso, Degol. Não faziam o mesmo no Setor Industrial?
A calma de Antton irritava Meliah profundamente. Ele observou Degol, esperando por uma reação explosiva, mas o irmão permaneceu firme, apenas cerrando os punhos.
— Testar determinação? — Degol finalmente respondeu, o tom tão frio quanto o vento que uivava pelas frestas. — Isso é tortura, não teste. Você acha que deixar essas pessoas à mercê de uma tempestade vai torná-las mais fortes? Só vai matá-las mais rápido.
Antton deu de ombros, como se as palavras de Degol não o afetassem.
— O mundo não é gentil, Degol. Eles precisam aprender isso agora, ou vão morrer mais tarde. Aqui, pelo menos, têm uma chance de mostrar que merecem estar conosco.
Meliah sentiu o peso daquelas palavras e olhou ao redor novamente. Os rostos dos caçadores eram jovens, marcados pela fome e pelo cansaço. Eles não pareciam desafiantes em busca de aprovação, mas sobreviventes sendo forçados a suportar algo desumano.
— E você, Antton? — Meliah finalmente falou, sua voz carregada de desprezo. — Quando foi a última vez que provou que era digno de alguma coisa?
A pergunta fez Antton encará-lo, pela primeira vez, sem aquele ar despreocupado.
Meliah observava a cena com atenção, cada detalhe ficando gravado em sua mente. A postura descontraída de Antton, o peso das palavras de Degol, e, principalmente, o contraste entre o homem que seu irmão costumava ser e o homem que agora se apresentava diante dele.
— Não estou gostando de como essa conversa está se saindo — Antton comentou, dando de ombros como se o mundo inteiro estivesse conspirando para irritá-lo. — Por que eu precisaria provar algo para alguém? Estou fazendo o esperado. Coleto carne, mantenho os meus vivos. É justo que eles se unam para testar se merecem ficar. Aliás, lá embaixo não tem neve. Nós tapamos tudo.
— De um jeito bem merda — Degol rebateu, com um tom tão direto que Meliah quase sorriu. — Na verdade, viemos falar disso. Sobre esse tapa buracos. Nos últimos meses, enquanto eu estava fora de combate, você pediu uma porção de recursos. Disse que eram para obras aqui. Mas olhando agora, isso aqui não parece exatamente de pé.
Antton riu, mas seu riso era seco, sem humor. Ele cruzou os braços, recostando-se na cadeira como quem não tem pressa.
— Virou fiscal de obras agora? — retrucou, com uma sobrancelha arqueada. — Nós tínhamos um trato, não tínhamos? Eu ia ajudar durante o inverno. Mas vocês decidiram se enfiar naquele lugarzinho pobre que a Clara chama de casa.
Meliah prendeu a respiração, esperando Degol reagir. Ele conhecia o irmão bem o suficiente para saber que aquele tipo de provocação costumava ser o estopim para algo maior. Mas, surpreendentemente, Degol permaneceu calmo. Recostou os cotovelos na mesa e desviou o olhar para os homens que lutavam contra a tempestade do lado de fora, tentando fincar uma estaca no concreto enquanto o vento e a neve açoitando-os sem cessar.
Meliah viu algo diferente nos olhos de Degol. Não havia mais a risada fácil, o desprezo de outros tempos. Havia empatia. Reconhecimento.
— Eu não sou fiscal de nada — Degol finalmente respondeu, sua voz baixa, mas firme. — Mas quando você ia dar a carne para a Clara?
O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. Antton pareceu confuso, mas Degol virou o rosto lentamente para encará-lo, seus olhos fixos e implacáveis.
— Ou você não ia fazer nada, como sempre? — Degol continuou, interrompendo qualquer tentativa de resposta com um gesto firme da mão. — Não. Isso é injusto com ela. Quero saber como você justifica não ter mandado nada para o meu pessoal.
Antton deu de ombros, a despreocupação quase insultante.
— Ora, Degol. O que quer que eu diga? Estamos em tempos difíceis. Clara tem aquela bateria agora. Luma sempre colheu da terra e passa o inverno com todo mundo nas casas. Mas eles não sabem o que passamos aqui. Não sabem o que é perder gente, viver sabendo que a qualquer momento aqueles monstros podem aparecer. Eu queria ter ido, queria ter mandado algo. Mas como eu ia sair daqui até Clara no meio desse caos lá fora? Olha para fora, está tudo um inferno. Hoje em dia, nem temos como alimentar todas as bocas aqui. Eu entendo que esteja chateado, mas… talvez, se nos emprestar as fornalhas para nos aquecer, possamos cozinhar e…
O som do tapa de Degol na mesa ecoou pelo espaço, cortando a fala de Antton no meio. Meliah não se moveu, apenas observou. Degol ergueu o dedo, apontando para Antton com um rosto impassível. O silêncio que se seguiu foi pesado, carregado de tensão.
— Degol — Antton tentou dizer algo, mas Degol apenas continuou a encará-lo, deixando claro que agora ele falaria, e ninguém mais.
— Eu quase morri, sabia? — A voz de Degol ecoou pelo espaço, tão forte e resoluta que fez Antton vacilar por um instante. — Quase morri para alguém que invadiu minha casa e roubou metade do meu pessoal. Acordei pensando que talvez fosse melhor ter morrido. Porque, no fundo, achei que não teria mais culpa para carregar. Mas sabe o que ficou comigo? Cada nome, cada rosto, cada pessoa que foi levada. Eu vi um pai ter seu filho arrancado dos braços. Vi uma mãe ser arrastada para longe enquanto eu ficava ali, impotente. Minha fraqueza, a fraqueza de não ter ouvido o meu irmão mais velho, custou a vida de tantas pessoas.
Meliah percebeu que Antton tentava manter sua postura relaxada, mas a intensidade das palavras de Degol começava a pesar. Degol, no entanto, não recuava.
— Claro que sim.
— Largue de ser insolente, Antton – Degol falou com tranquilidade. — O que você sabe sobre liderar? Encheu minha cabeça com merda, dizendo que Clara tinha uma bateria e que me ameaçaria. Aquela mulher nunca pensou nisso, nunca nos maltratou, mesmo quando eu acertei Marcus ou quando fui um babaca. Você não tem ideia de que se não fosse por ela, pelo pessoal dela, eu nunca estaria aqui, meu irmão não estaria aqui. Você quer uma fornalha? Você quer vigas. Quer ferro. Quer armas. Quer isso e aquilo, mas o que você tem pra oferecer? Nada.
As palavras dele foram melhores do que Meliah achou ser possíveis. Degol havia pedido para que ele conduzisse aquela reunião. Seu irmão parecia outra pessoa. Alguém muito melhor.
— E sabe o que acontece agora? — Degol finalizou, a voz firme e inabalável, deixando Antton sem espaço para mais desculpas ou desdém.
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