Índice de Capítulo

    “‘Estou cego. Vejo cada vez menos, mas vejo com clareza: estou cercado de perda, de dor e de paranoia. Nada resta senão seguir a pouca luz que ainda vejo, esse tão fraco filete de luz… Estou débil. Estou cego, mas ainda vejo. Não tirarão isso de mim.’”

    Izandi, a Oniromante

    A Coroa dos Acenos tinha o mesmo tom áurico esverdeado dos cabelos do seu novo dono, reforjada habilmente para servir em sua cabeça; as proeminências metálicas permaneciam longas e altas, como mãos de ouro. No entanto, pesava demais para a estatura do portador. Gradualmente, o incômodo do metal contra a pele deixava de ser desagradável — mas a marca vermelha desenhara-se como um aro em sua testa.

    Nunca imaginou que um dia a usaria; que desistiria de seu direito de sucessão real para ser o centro dos Cinco Reinos, seu coração pulsante. “Não que um dia eles de fato existiram”, pensou. Se importava pouco com eles, sendo o último filho de um rei velho que não chegou a conhecer e de uma rainha ainda mais velha que também não conheceu.

    Todavia, conhecer a Cidade de Diamante há poucas semanas fê-lo detestar, pela primeira vez, sua criação na Mata dos Grilos. Ocas Ciled já lhe parecia um universo a parte, com suas torres grandiosas de mármore e salas que exalavam saber. Mas a Cidade de Diamante tinha aberto seus olhos. 

    “Há tanta coisa que não vi aqui.”

    Um servo delicadamente retirou a manta esbranquecida de marilã e pôs as sedas reais cor-de-musgo sobre o terno woulevita. Após abotoar as mangas, Ezekel contemplou os portões de granito sendo abertos, com a base de cada porta ruindo estrondosamente. O vento outonal penetrou a Sala do Conselho, luminosa. Ameixa, notou o cheiro, que passeava das janelas abertas e incensos.

    — Ajoelhem-se! Eis que se apresenta o id Baene Ezekel Ainee Godwill! — proclamou o servo. 

    O uníssono dos joelhos tocando o chão foi como o voo de uma abelha, o príncipe Godwill não desgostou do barulho. Estudou o local de trabalho e as novas caras: o trono, onde governaria pelos próximos dez anos do calendário quimteista; os nobres de todos os Cinco Reinos e estrangeiros enfileirados aos lados da alta passarela crescente, tendo no final a altura de dois homens adultos, onde aos lados havia cavaleiros armados e ornamentados com faixas cor-de-cristal e ombreiras esmaltadas nas cores do brasão dos seus reis. “Cabem ao menos mil pessoas aqui.”

    O piso assemelhava-se a alguma pedra preciosa cujo nome teria se perdido nas eras, pois tão branca era sua cor que parecia algo perdido do passado. “A Cidade de Diamante é velha”, pensou “, mas este palácio parece muito mais.” De alguma maneira, o chão parecia se estender como água até as paredes verdes-marinho drapejadas suntuosamente, levantadas até altos vitrais com brasões mais velhos que a Cidade.

    Deu-se conta pela primeira vez que estava em uma sala abobadada e altiva, e que os vitrais louçãos cresciam até os afrescos e estátuas dos Quinze, projetadas como se fitassem todos e alertasse aquele que se sentaria no trono: os Deuses te olham. Fazei justiça.

    “E eu sou quem senta nele.”

    Observou seu irmão, o primeiro Godwill sem feições afeminadas, que estava de pé ao lado do seu trono. Não era a primeira vez que o via, não mais, porém com certeza as vezes poderiam ser contadas em uma mão. Nem quando chegara, semanas atrás, se encontraram. Natharel correra para a mesa do jantar e ficou horas a conversas com o casal. Rikard não dera um “boa-noite”. 

    Rikard combinava com a descrição que sua prima Sesje dera: roliço e de altura chistosa, mas tinha um par de olhos cansados e veias saltadas à face que davam medo. Ezekel engoliu em seco. O jeito que o irmão o fitava embrulhava seu estômago. Era como tentar recitar uma poesia — sem saber ler — na frente de uma turma inteira. 

    Ao lado do irmão, via os membros principais da Guarda dos Cinco Reinos, cada qual escolhido durante o Conselho — o mesmo que decidiu sua nova labuta. “Cada Cei ali é o melhor de sua ordem”, esperava o príncipe. Cada um estava cinto de uma espada à cintura e uma completa armadura lustrosa, com elmos e postura altiva, que se refletia nos olhos do príncipe. Enquanto subia os degraus para o trono, seus olhos mal saiam dos cavaleiros. 

    Mas logo voltou-se para o irmão. Tossiu e engoliu em seco. “Sou um Godwill”, disse-se, apoiando a mão na espada ornamental de prata na cintura. “Orgulho do Céu, Sangue das Eras. É só seu irmão. Tenha calma.” 

    — N… não… vejo Natharel — falou ao irmão, que balançou o queixo rançoso e grosso e fechou os olhos. — Onde ele está?

    Rikard cruzou os braços gordos.

    — Soube que está montando, treinando o novo dragão-real, chocado no Ninho — respondeu um membro da guarda, Cei Lessard. Pela cor da armadura, o verde-azulado, deduziu que pertencia à Greanalg. — Se for do desejo de Vossa Graça, id Baene, mandá-lo-ei um pássaro-de-voz.

    — Não é — suspirou — necessário. — Então se sentou. — Na verdade, perdão, desejo, sim, mandar um pássaro-de-voz. Mas somen….te após cumprido… meu dever.

    Notou o olhar pesado de Rikard, que, além de estar trajado com sua coroa, nem deveria estar ali. Estudou rapidamente o olhar do irmão, o cabelo mais escuro e as sobrancelhas grossas, dotadas de rugas. A distância de idade era realmente grande, notou, desenhando cenários ruins na sua cabeça. “Recomponha-se! Desvencilhe-se, desvencilhe-se.”

    O servo veio logo em seguida, trazendo um pergaminho. O primeiro que iria se apresentar era um banqueiro charyçákro. 

    Levado por cavaleiros de menor importância, Ezekel o observou com muita surpresa — era novo, muito novo. O banqueiro ficou no estrado, tomando alguns segundos para ajeitar suas roupas. A túnica estrangeira, cheia de fendas rendadas com filigrana, exibia traços de um corpo magérrimo; Ezekel fez-se pensar que ele era jovem e magro demais para a profissão. 

    O jovem mantinha os cabelos soltos até a altura do queixo, do mesmo tom dos olhos e pele tisnada por um sol implacável. “Veste-se assim em final de outono?”

    — Chamo-me Aretes — falou o rapaz, juntando as mãos em um bom gesto de sua nação e com um tom de voz irreal; agudo como a de um garoto, mas forte —, da Escama de Kaios e filho de Faio. Agradeço por sua disposição em receber-me, Vossa Graça. 

    Respirou fundo. 

    — Fala, Aretes. — Ergueu seu braço. — Espero que tenhas sido bem recebido. A quê veio de tão longe?

    O charyçákro ergueu o olho direito. Ele prestou uma mesura longa e respondeu:

    — Vossa Graça, temos tido dificuldades de fazer boas trocas recentemente. 

    — Qual a razão? — levou a mão ao queixo. — Cria que, desde Destrel, o Gentil, abriu os nossos portos, tínhamos boa fama por nossa riqueza. — “Pareço bom? Ofina disse para deixar minha postura mais ereta.” —  De que carecemos — parou por um instante e continuou, tentando pronunciar corretamente e fitando Rikard —, Aretes, filho de Faio?

    “Espero que pareça régio…”

    — Parte de seu honorável povo ainda paga seus débitos com ouro e prata em peso de capialo, que torna incabível a troca por vossos lírios — fitou de soslaio os lordes nas fileiras aos lados —, e, por consequência, nossos investimentos.

    — Entendo sua preocupação — falou Ezekel fitando Rikard de soslaio, que mordia o lábio com intensidade para sangrar — e problema. Irei comunicar o Tesou…  

    — Vá ao Tesouro dos Godwill — brandou rei Rikard. Ezekel falhou em controlar seus músculos faciais e deu um semblante indigno da posição: surpresa. — Facilmente trocará sua moeda pela nossa muito facilmente. Temos histórico de facilitar o câmbio, antes mesmo de Destrel.

    O menino banqueiro alegrou-se de orelha a orelha, prestou mais uma mesura e saiu.

    — O…o que pensa estar fazendo? — sussurrou Ezekel a Rikard.

    — Guarde sua voz — ordenou, as papas da sua garganta pareceram tornar o tom de sussurro no ribombo de um trovão. 

    “Irmão!”

    Mordeu o lábio. Uma agonia crescente no peito era urticante. De repente percebeu que estava com os olhos semicerrados e mordendo os lábios; subitamente, a agonia cresceu. Os lordes da Cidade e de fora estavam lhe olhando estranho. A reputação que tentou construir nos poucos dias de governo que teve, sentiu como se ela tivesse virado pó. 

    Já Rikard parecia em outro mundo. Os olhares dos lordes não chegavam a ele, como se sua coroa devorasse os pensamentos alheios. Antes que se desse conta, seu peito estava sendo preenchido por raiva. Apertou os ásperos pedaços escondidos da madeira do trono. E eles o olhavam… Os olhos não iam embora…

    — Cha… Chame o próximo — falara Ezekel no tom mais calmo que conseguiu, reerguendo as costas.

    Veio o segundo da manhã: um nobre de Flassam, que desejava casar sua filha caçula com o primogênito de um nobre de Greanalg. Ezekel tentou dispensá-lo, pois tal coisa não era responsabilidade sua. “Somente o que responde à Cidade e aos Reinos”. Rikard ordenou que seria mediador do casamento, caso o dote fosse pago através do Tesouro dos Godwill. O terceiro era um plebeu que acusava um eztrieliziano pela morte do irmão. Ezekel pediu que falasse mais, todavia o rei de Greanalg expulsou-o imediatamente. 

    O quarto, quinto, sexto, sétimo e oitavo foram todos expulsos por Rikard também. Quando a manhã inteira havia passado, Ezekel começava a não conseguir conter a fúria. Assim que um gordo fidalgo de Aarvier foi-se embora, ordenado a negociar seu projeto claramente deslucrativo com o banco pessoal dos Bloemennen, o príncipe Godwill quis saltar do trono de veludo… 

    Apenas fez um exercício ensinado por sua ama de leite, tocando a cicatriz no lado esquerdo da têmpora. “Sinta o que lhe fere e lembre-se de um momento calmo ou feliz”, dizia ela. Lembrou-se de quando conheceu sua esposa, no íntimo de seu recém-casamento sob as rochas anciãs do Ninho do Dragão… 

    Mas a dor na têmpora era grande demais. A cicatriz latejava, mesmo anos depois de ser feita. 

    Foi então quando um pássaro cor de vinho surgiu pelo teto e farfalhou suas asas, soltando penas escuras e grasnados pelos azulejos do salão. Nas bibliotecas de Ocas Ciled, nunca desejou estudar pássaros, mas, fosse Ezekel ou qualquer outro, facilmente notariam que estava prestes a morrer de exaustão.

    — Pa-pa-pa-pa-pa! — grasnou. — Mensagem! — E pousou nas grades do estrado, com as asas abertas, arruinadas.

    — Esperavam algum pássaro-de-voz? — perguntou Ezekel a Rikard e à Guarda. “Não”, eles responderam. Imediatamente o príncipe ergueu a voz: — De quem tu eres?

    — Pa-pa-pa-pa-pa! Tem certeza de que quer ouvir che-e-eio de gente aqui?

    Ezekel moveu a mão esquerda, todavia antes que seu gesto fosse interpretado, rei Rikard gritou para que todos saíssem de lá.

    — E vocês também! — gritou à Guarda dos Seis Reinos. — Menos você — apontou o dedo grosso como uma linguiça para o verde —, tu ficas! 

    Ao passo de que todos saíam tumultuados, o pássaro movia seu pescoço como se estudasse o lugar.

    — Ouvi de más boca que os Go-Go-Godwi-wi-will tinham aparência afeminada, mas nunca imaginei que ficariam tão bem de vesti-ti-tido! — grasnou. — Mas é belo! O outro nem tanto! 

    — Devemos levar isso como uma ofensa? — ameaçou Ezekel, com sua voz de mel com o máximo de rigidez que conseguia por. 

    — I-i-isso jamais! Como ousaria eu ofender você-cê-cês? 

    — Então por que vieste? — Ezekel se levantou. Sentia seus olhos pesarem.

    — Não pode esse humilde eu a-a-a-apenas querer contemplar sua beleza? — A ave cobriu a cabeça com suas asas.

    Rikard pôs sua mão na espada que escondia atrás da pelagem.

    — Levarei isso como agradecimento — falou Ezekel. — Mas duvido muito que seja apenas isso. A quem pertence, ave-mensageira?

    — Oh, paciência! — Ergueu as duas asas para o céu, como se estivesse jogando algo em alguém. — Paciência para mim. Ai, ai, ai de mim… Pois bem, eu tenho u-u-u-uma ideia: por que não me dá os portos em Greanalg e Flassam?

    “Que ousadia desejável!”, gritou Ezekel consigo.

    — Os portos de Greateann também me interessam bastante. — A ave deu passos à frente, reproduzindo a fala humana com perfeição, na língua comum com perfeição. “Se fosse de Eztrieliz, jamais falaria a língua comum dos seis reinos com tanta facilidade, sem nenhum sotaque!”, percebeu assustado Ezekel. “De quem é esse diabo?” 

    — Ele zomba não só convosco, mas com todos os Cinco Reinos! — rosnou o Cei.

    — O pássaro não fez nada. Deixe-o falar — ordenou Ezekel. “Isso não trará nenhum bem.” 

    — Ora, nã-nã-não pensem muito! Só me deem, são por-por-portinhos que não servem de nada!

    — E o que mais deseja, ave-mensageira? — continuou. — E o que dará à Wouleviel em troca desses portos, convidada?

    — Ah? Eu? Nã-não sei! Oh… talvez eu também queira o-o-o-o trem! 

    De súbito uma trovoada se ouviu. Ezekel caiu do trono para o estrado acima dos degraus, com suas orelhas zunindo como se um ser antigo tivesse gritado nas suas orelhas. O cheiro de ferrugem sobrepujou o das ameixas. O guarda ajudou-lhe a levantar, com as pernas trêmulas de susto: assustou-se mais de uma vez com o corpo morto do pássaro-de-voz.

    Rikard estava com a pequena coisa estrangeira nas mãos. Como era possível que um pedaço de madeira e ferro tão pequeno pudesse fazer aquilo? Somente as pernas do pássaro restavam inteiras. Fora reduzida a restos de penas, pedaços de ossos e uma poça de sangue.

    — Está bem, id Baene? 

    Ezekel tampou sua orelha direita, de olhos semicerrados. Exercitou a mente mais uma vez, esperando que acalmasse seu coração. Lembrou-se das aulas em Ocas Ciled, de seus poucos amigos, do plebeu que lhe chamava de irmão e golpeava seu ombro com amizade; dos professores que cativavam seu coração com conhecimento.

    Ao se acalmar, o zunido sumiu.

    — Onde está Rikard?

    — Acabara de ir embora, id Baene, Vossa Graça. Disse que lhe esperaria no jardim.

    Ezekel levantou-se e correu. Traspassou o estrado onde a ave jazia e abriu os portões com suas próprias mãos afeminadas — surpreendendo-se com a facilidade. Jogando-se no corredor, fico boquiaberto. “Não tem como alguém tão grande sumir assim, não meu irmão Rikard.”  

    Desistiu de buscá-lo no castelo depois de meia-hora. 

    Voltou, cansado, para seu quarto. “Ela não está aqui de novo…” 

    Trocou o terno e as sedas por um cafetã azul sem ornamentos e deu a Coroa dos Acenos para o cavaleiro.

    Ezekel aproximou-se devagar do gazebo de rocha anciã, fitando o céu pouco claro do meio-dia outonal. O rio artificial, escavado de um lago próximo, estava dando sinais de congelamento. Era uma pena, pois amava os cheiros do Jardim dos Besouros; das flores, frutos e da chuva, mas a branquidão da neve já matava os arbustos sem ao menos ter caído.

    Natharel estava sentado no gazebo de rocha anciã, ainda usando as cotas malhadas e zibelinas de treinamento. Assim como quase todos os Godwill, tinha cabelos loiros, olhos castanhos escuros e os traços de uma mulher formosa. 

    Rikard estava sentado em uma cadeira, confortado. Tinha trocado o cafetã azul claro que usara por um mais escuro e mais espesso, além de estar sem sua coroa. Eram três cadeiras ao redor de uma mesa redonda de mármore, onde uma garrafa de vinho estava aberta, emanando um cheiro ótimo para os três dos três filhos homens vivos Godwill, filhos do finado rei Wicing Iva Godwill. Ezekel sentou-se.

    — Por que fez aquilo, Rikard? — falou Ezekel, sério e com regiedade depois de sentar-se.

    — Tu nos vê os três juntos pela primeira vez na vida e vens-me com essa, direto e brusco, meu pequeno irmão?

    — É verdade, admito. …Como está a família? Soube que seu primogênito quer domar… — tateou a mesa do gasebo — Artreni.

    — Ele pega muito da influência de nosso irmão Natharel. — Cruzou os braços, com um pequeno sorriso no canto direito da boca. Natharel ficou sorridente. —  Ele quer visitar o último ovo que chocou. Chegou aos meus ouvidos que ela parece uma borboleta, então a batizei como Ngozhiale.

    — Me parece um bom nome — respondeu Ezekel, pondo menos que um gole de vinho na sua taça. — Como ela é?

    — Surpreendentemente calma e educada! — respondeu o irmão do meio. Cruzou os braços; sua voz tinha um tom relaxado demais para quem passava metade do seu dia congelando no céu  —  É pequena e dócil, pouco menor do que um garoto de doze anos! E suas asas são tão estranhas quanto belas, como se tivessem nascido cortadas, mas voa mesmo assim, mesmo que pouco e baixo por ainda ser fraca.

    — Crê que será grande como Ruyach? — questionou Ezekel, com um semblante de falso interesse. “Nunca testemunhei a presença de um dragão-real”, pensou, ficando subitamente entristecido.

    — Nisso não posso falar. O futuro não pertence a nós… É domínio da clemência dos Deuses. — exibiu um semblante amarelo. — Talvez tão grande quanto Meevel, dos Bloemennen, mas nunca como Ruyach. — Deu de ombros. “Uma tristeza. Amaria montar em um maior do que Ruyach!”, pensou Natharel.

    Os nomes dos dragões-reais fizeram uma ideia surgir na mente do mais novo. 

    — Lay xar doge, ker-evne? — provocou. Não fazia diferença se falasse a língua dos dragões-reais, o waller antigo ou a língua comum. Todos ali eram Godwill. O Sangue Antigo falava.

    — Fugir? Pareço estar fugindo? — grasnou Rikard, golpeando a mesa com força para quase derrubar a garrafa de vinho. — Se queres ir tão direto ao ponto, ignorando os laços de nossa família, vá! 

    — Po-por… Por que matou o pássaro-de-voz?!

    — Já tinha ouvido mais do que suficiente. 

    — Era claramente um eztrieliziano, que o educou no tom de sua voz e conhecimento, e mandou-o para nos provocar! 

    — Ele falava a língua comum com perfeição, sem nenhum sotaque! — retrucou o rei.

    Natharel cruzou as pernas e bebeu um pouco do vinho. Sentiu os pelos da nuca ouriçarem. 

    — Como seria um eztrieliziano se não fala com o sotaque? — continuou Ezekel, erguendo os braços magros. — Wouleviel nasceu há mais de mil anos para nos defendermos deles, Rikard! …Estou tentando ajudar! …Quero ajudar… 

    O mais velho esvaziou o cálice de uma vez. Levantou-se e permaneceu a fitar o céu escurecido por nuvens pesadas, com um sorriso triste na face. Ezekel quis dar um passo para trás. Sentiu um aperto no coração e um gosto amargo na boca, um tão ruim que marejara seus olhos. 

    — Por que os Cinco Reinos se uniram mesmo, Ezekel Ainee, dos Godwill, descendente da Bruxa dos Dragões?

    — Para nos protegermos de Eztrieliz, do Império.

    — Pf! Hahahahaha! — Rikard riu tanto que se encostou em um pilar para respirar; estava vermelho.

    — O que há de tão engraçado?

    — Tolo… Tolo e inocente.

    — Então o que foi? Os livros e registros mentem, Rikard Eva, dos Godwill, descendente da Bruxa dos Dragões e da Pura Rainha?

    — Ouviu os boatos, Ezekel? — questionou Rikard, seu semblante preenchido de frieza. — Dizem que eztrieliz usou a velha tática de sempre: invadir e saquear, então atacar. 

    — Um clássico dos livros de estratégias e estratagemas. Até eu, que os detesto, já os li — levantou-se, irritado. — Carecem de provas.

    — Os Bloemennen estão descendo do Canal das Flores — respondeu Rikard.

    — E? É de conhecimento comum os terremotos em Aarvier, e que seu rei, Rheider Bloemennen, é um ótimo homem. Ademais, o que ele teria a ver com eztrielizianos além da fronteira?

    Rikard riu mais uma vez.

    — Rumores são isto: rumores. Não passam de mentiras propagadas por curiosidade e divertimento… — argumentou Ezekel.

    — Toda mentira tem sua parcela da verdade; verdades são mentiras em partes somadas até serem irrefutáveis — respondeu Rikard, cheio de ira. — Meus espiões contam outra história. Dizem que seu primogênito tem amantes do Império, que se deita com dezenas toda semana e usa suas drogas e bebidas para embriagar-se o dia inteiro.

    — Se algo tão extremo assim acontecesse, de fato, teria chegado a minhas orelhas através das serviçais que servem às aias da minha esposa.

    Rikard saiu do gazebo, e de costas disse:

    — Sabe o que fazíamos antes do Decreto de Wouleviel? Sabe o que faremos quando destruirmos Eztrieliz? 

    — O quê? — Ezekel cerrou os dentes… nunca vira aquela expressão no semblante do irmão.

    — Acontecerá a verdade que queremos esquecer. — Rikard foi embora.

    Ezekel finalmente bebeu um gole do vinho…

    “Somos inimigos”, concluiu.

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