Capítulo 17 — Tão bom quanto reencontrar a ex
A Selva de Concreto estava calma. O vento sussurrava através das árvores, causando um suave farfalhar das folhas. O sol tinha pouco tempo desde que surgiu no Leste, deixando o lugar levemente iluminado. Os raios de luz penetravam a copa das árvores, tornando aquele momento um espetáculo visual.
De um lado, o druida residia montado em seu urso de crânio esquelético, portando seu cajado e os seus recém prisioneiros amarrados e inconscientes nas costas da criatura. Embora fosse mais fácil matá-los e submetê-los ao ritual, ele finalmente tinha amostras vivas para saber se conseguia criar sulfurizados mais fortes. Do seu lado, a antiga sombra da Hinoka residia imóvel, observando seu alvo atentamente sem o menor indício de remorso, raiva ou qualquer sentimento.
Do outro lado, Huan Shen permanecia em pé, bastante cansado e se mantendo na força do ódio. Uma parte do seu abdômen estava inchado e avermelhado, seus braços e costas tinham múltiplas lacerações e partes raladas por causa das vezes que rolou sem parar de um lado para o outro. Para piorar, seu corpo estava bastante fatigado após usar o Corpo Vazio.
Apenas pelo que conseguia observar, sabia que estava na presença de um druida. Era até engraçado como uma lenda urbana em um mundo esquisito não parecia tão espetacular quanto era no seu imaginário. Ao ver os seres que o acompanharam, teve certeza de que estava diante de um inimigo.
— Ah, sim! Eu lembro de você! — disse o druida, com um olhar de curiosidade. — Você encontrou um dos olhos que plantei nesse lugar. Desde o início, eu soube que você não era alguém para se descartar.
O emissário inclinou sua cabeça, observando o que o urso carregava em seu dorso. Ele não poderia se importar menos com o que o velho estava interessado.
— Essas pessoas aí atrás, estão sob minha responsabilidade. Não posso deixar você sair com elas.
— Vejo que também possui determinação em suas palavras! E você não parece nem um pouco com medo, também — disse, enquanto ria modestamente. — Diferente dos seus colegas que estavam tremendo mais do que um cervo quando percebia um leão espreitando-o. Se me permite perguntar, o que te dá toda essa confiança?
Huan Shen coçou a ponta do seu nariz enquanto verificava os seus arredores. Não queria ser pego de surpresa mais uma vez.
— Porque você tá falando muita merda para alguém dentro do meu alcance.
O velho soltou um ar do nariz, abrindo um leve sorriso.
— Dentro do seu alcance? Alguém aqui tem fé nas suas habilidades! Eu também tenho confiança nos meus filhos.
— Acha que seus “filhos” me assustam? — perguntou Huan Shen, estalando os dedos da mão direita. — Eu acabei de matar três deles. E não ouse se superestimar! Há um bom motivo para vocês druidas terem sido extintos. Quer que eu lhe faça descobrir como?
“Eu nunca blefei tanto na minha vida! Eu tô completamente na merda!”
O velho ergueu uma sobrancelha e cerrou os dentes. A arrogância daquele jovem era algo que não poderia tolerar.
— Vejo que sua geração não aprendeu a controlar a língua com os mais velhos. Mas não tema, criança. Logo, eu te tornarei alguém mais obediente! Meus filhos irão te ensinar uma lição.
Com um acenar da sua mão, o sulfurizado avançou contra Huan Shen. O emissário estava com pouca magia em seu corpo e se tentasse usá-la, poderia ter um desgaste que poderia apagá-lo por um longo tempo.
“Eles não sentem dor, não respiram e não dependem nem da visão para localizar seu alvo. Sua força equivale a de cinco pessoas em seu ápice físico e sua velocidade é tenebrosa. Por que nada é fácil nessa merda de lugar?”
Percebendo que tinha colhido o que plantou, Huan Shen não aguardou o sulfurizado se aproximar e foi na sua direção também. Ele precisava economizar energia, para conseguir lidar com todos os quatro que estavam ali. E isso admitindo que não atacariam todos de uma só vez.
O sulfurizado saltou e começou sua aproximação com uma joelhada aérea. Para alguém não treinado, aquilo seria semelhante a um bote de um tigre. Porém, Huan Shen já estava acostumado com esse tipo de aproximação. Seu corpo naturalmente se inclinou para o lado, usando o menos de esforço possível para economizar energia. O que deu oportunidade para a criatura se reposicionar e retribuir com um chute alto contra o emissário.
“A agressividade dessas criaturas não possui limites!”
Huan Shen ergueu o antebraço esquerdo e bloqueou, mas não sem consequências. O impacto era tão forte quanto uma martelada, o que fez seu corpo estremecer quando sentiu o osso rachar. Mesmo assim, ele respirou fundo, tomou impulso com a perna direita e avançou contra o sulfurizado para diminuir a distância entre os dois.
— Péssima escolha, filho da puta! — murmurou Huan Shen, agarrando o rosto da criatura com ambas as mãos.
Usando o joelho do seu inimigo como ponto de apoio, ele deixou a cabeça dela entre seus joelhos, incapacitando-o de conseguir bloquear. Com seu peso de quase cem quilos e uma força avassaladora, Huan Shen acertou uma cotovelada descendente no topo do crânio da criatura. O som do impacto foi tão alto que ecoou pela selva, deixando até o druida impressionando.
A primeira cotovelada criou uma rachadura no crânio do sulfurizado, mas a segunda foi forte o bastante para fazer um buraco e esmagar parte do cérebro. Com suas funções corporais danificadas, ela não teve nenhuma outra coisa a fazer além de cair no chão graças ao peso do emissário sobre seu corpo. Huan Shen tateou a cintura, à procura da sua querida faca, mas não havia restado mais nada dela.
Aquilo não tinha saído de graça. Huan Shen estava mais exausto do que nunca. Seu cotovelo estava parcialmente deslocado e haviam vários fragmentos de ossos presos na sua pele.
“Eu deveria ter me aposentado das lutas e ter virado um professor. Isso aqui não é vida para ninguém.”
— Sua força é formidável, jovem — disse o druida, aplaudindo do topo do seu urso. — Sem dúvidas eu reconheço que você é forte o bastante para se tornar uma ameaça para o meu plano! Mas não devo me preocupar, pois não vou te dar essa chance. Vejo que você acabou eliminando mais um dos meus filhos. E apesar da minha natureza piedosa, temo que a irmã deles não tenha herdado isso.
Foi quando Huan Shen percebeu que a sulfurizada que estava do seu lado tinha sumido. Foi como um estalo, algo tão rápido quanto um piscar de olhos. De repente, ele ergueu seu braço como se tentasse bloquear algo. Então, uma adaga incandescente tinha acabado de atravessar sua mão.
Antes que pudesse raciocinar, o impacto de uma perna atingindo seus joelhos por trás com tremenda força o atingiu, derrubando-o completamente indefeso no chão. Huan Shen imediatamente rolou para sua esquerda e se reposicionou, retirando a lâmina da sua mão direita. O que foi uma tarefa tortuosa, pois estava tão quente quanto uma pá de caldeira.
“Puta merda…”
Na sua frente, aquela que era conhecida como Hinoka o encarava de volta, com seus olhos sulfurizados completamente vazios. A princípio, ela tinha todas as características dos outros, mas algo parecia diferente. Não parecia movida a agressão sem sentido como os outros. Ela usava armas e parecia habilidosa o bastante para criar armadilhas. Além disso, a marca escura no seu pescoço brilhando em uma coloração laranja o deixava preocupado.
“Essa marca…a mesma que eu fiz com a corrente dela…”
Aquilo fez um breve sorriso surgir no rosto do emissário. O que fez a criatura inclinar a cabeça.
— O que está achando engraçado? — disse Hinoka, com a nova voz raspada e rouca.
— Caralho! Você consegue falar? Não me admira que o druida esteja bastante confortável com sua presença aqui. O que quer que ele tenha feito contigo, fez muito bem!
A mulher balançou as novas adagas em suas mãos. Elas eram escuras e brilhavam como obsidiana. Frágil, mas afiada e bastante resistente ao calor.
— Ele me deu um novo propósito, uma nova forma de vida e me aperfeiçoou. Além disso, me concedeu esse momento em específico: minha oportunidade de me vingar do homem que destruiu minha vida! Não é um momento perfeito? Parece até que uma punição divina está batendo na sua porta.
— Não acho que os deuses tenham algo a ver com o que está acontecendo aqui nesse momento.
“Se bem que tudo isso é produto do poder de um deus morto…a natureza é uma desgraça, mesmo.”
— Sempre com essa postura indiferente e fria, hein? Do mesmo jeito que estava quando massacrou meus homens! Só me diz uma coisa: o que você fez com a Akae? Ela sequer está viva ainda? Eu juro que se eu descobrir que você tocou um dedo sequer nela, te farei implorar pela morte!
O emissário respirou fundo, tentando manter sua cabeça consciente. Eram muitas coisas ruins acontecendo com seu corpo naquele momento, não podia se dar ao luxo de cair.
— Carma? Vindo de você? Precisa botar um limite para suas piadas, Hinoka. Se tá difícil se lembrar, eu farei isso: você é uma criminosa! Não uma ladra ou estelionatária, mas sim uma assassina e traficante de pessoas. Seu trabalho é separar mães, filhas, pais, netos, parentes dos seus entes queridos e forçá-los a viver como objetos nas mãos de outras pessoas tão imprestáveis como você. O seu amor e devoção pela Akae não diminui nada da tristeza que outros sofreram em suas mãos. Não tem carma nenhum nisso, mulher. Você é só um monstro que se recusa a ter dignidade o bastante para morrer.
Aquelas palavras gerou um silêncio desconfortável no ambiente. As adagas escuras de Hinoka mudaram de coloração para o mesmo tom alaranjado do seu pescoço. Seus lábios pingavam algo tão quente que liberava vapor quando encostava no solo. Seus olhos, antes apáticos, exibiam veias negras ao seu redor.
— Eu juro que farei da sua vida um inferno vivo! — respondeu Hinoka.
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