Índice de Capítulo

    O céu mesclava com a palidez das Luas e o alaranjado fraco do poente. Saíram da Torre de Visitas mais bem vestidos — Willmina com um vestido de lã justo com um broche de escudo no peitoril e botas, e Ereken com um colete de couro escuro cosido, com o mesmo broche, um gibão de linho de mangas longas e calças da mesma cor. 

    Puseram-se a observar o pátio pela balaustra, enquanto desciam as escadarias. Apertou seu xale; concentrando-se para perceber o pouco que sabia sobre esgrima, notou como a filha tentava se manter de pé; entender os termos da mestra de armas, que agora parecia animada.

    Jenna tinha pouco para ser chamada de mulher, mesmo com a altura que encantaria os rapazes mais jovens. Braços fortes pendiam tensionados ao segurar um longo pedaço de madeira, que, ao moverem-se, não balançavam os cabelos tacanhos negros, ou qualquer outra característica feminina escondida detrás da couraça que vestia, mas acentuavam as veias feias. 

    “E”, pensou Willmina “ a cicatriz parece maior cada vez que vejo.” Transpassava escura e reta, do lado direito da testa ao queixo redondo. “Que dor deve ter sido.” Desde que se mudou ao castelo, Jenna já a tinha, quando mal tinha voz de mulher. Não conseguia olhar sem sentir pena.

    — Não foi assim que pedi! — sussurrou Ereken em voz de grito. — Está ensinando errado! 

    Willmina se impressionou com seu homem, tão grande, passar entre a balaustra e pular para o pátio; vendo-o cair de pé e correr até elas. Ficou a observá-los, com a mão direita sobre o ventre. “Poderia se tornar moda”, constatou, terrivelmente imaginando as meninas seguindo um caminho que as deixaria incapazes. Ela própria sofria as consequências disso. O terror de carregar gêmeos em seu ventre por dois anos inteiros.

    Via a consequência disso na sua filha, que caiu assim que viu seu pai. “Magia é o pior dos demônios”, repetiu-se das palavras do sarônide, e parou por aí. “Você não será feliz, sua cria rasgará seu ventre, cigana!”, ele repetia no seu leito amaldiçoado, ardendo. Willmina preferiu não ter se lembrado.

    Mas não teve tempo para refletir mais. Um forte tilintar de muitos metais ressoou como espigões nas suas orelhas, fazendo-a tampá-las e se levantar de susto. Foi apressada para a balaustra e observou os servos vindo em dezenas da primeira muralha. “O que acontece?!”

    Desceu a escadaria puxando as saias. Quando recuperou a visão, notou Hydele, Jenna e Ereken apertados no meio de mais de trinta servos, munidos de pás, enxadas e vassouras. “Uma invasão?!”, tentou pensar, todavia eles se puseram a trabalhar de imediato. Theolor Beesh era um duque bom demais para ser traído, e como homem era ainda mais amado.

    — Acendam as lareiras!

    — Tragam lenha!

    — Tirem a neve!

    — Alguém, pela graça dos Deuses, tire esses cachorros daqui!

    Tentou se mover, mas o fluxo aumentou. Começaram a trazer animais dos poços-congelados em carros, salpicados de sal grosso. 

    Nunca imaginou que se perderia num pátio. Perdeu o foco; sua visão se tornou uma mistura de servos e servas com suas túnicas, crespinas e xales. Um servo trombou no seu ombro e gritou desculpa; o grito das rodas o calou; o odor dos animais abatidos e congelados nem lhe deu tempo para reconhecê-lo. Há quanto tempo não ficava tão enfurnada assim? “Oh, Deuses, estou enferrujada?! Sinto-me nas ca…”

    — Tia!

    Antes que terminasse, sentiu a mão do filho puxá-la para perto dele. Bateu a cabeça no peito do filho e foi puxada para mais perto, como se fosse donzela mais uma vez. Bert a levantou, deitada, e deu um longo salto para trás.

    — Bert! O que acontece, garoto?! — bravou, recuperando-se do susto. O rapaz estava suado, como se tivesse corrido todo o caminho das vilas para o castelo.

    — Parece que o rei está vindo! Aahf!

    Willmina engoliu um ar quente no verão. Hydele e Ereken retornaram para a escadaria poucos segundos depois. Ao ouvir Bert, o rapaz entregou-lhe a filha nos braços e correu para dentro do castelo. O resto dos Zwaarkind voltaram para seu lar.

    — Não é mentira! — Ereken arfou, batendo a porta. 

    E a noite caiu, mais uma noite sem a luz das Luas, escura o suficiente para que todo ser pudesse ver o brilho das estrelas que pontilhavam luzidias pelo céu.

    Os Zwaarkind puseram suas melhores roupas e moveram-se em direção da primeira muralha, onde mais um fluxo interminável de servos estavam lá, muitos que sequer conheciam, e seus mestres. Ereken notou alguns homens com brasões estampados: reconheceu barão Samdirk, o Hoofnirk e o Hoofernik, da Mata dos Diabos; nenhum bem-apresentado o suficiente, vestidos às pressas. Sequer sabia que eles estavam no castelo.

    Logo ouviram o tropel do séquito do rei vindo imponente, com passos fortes e estrondosos estrada a cima. Willmina sentia uma ânsia mexer no seu estômago. “O que estou fazendo aqui? Deveríamos voltar”, pensara. Irrompeu em pensamentos negativos, mas o toque confiante do esposo no seu ombro apaziguou a tontura. Duque Theolor Beesh surgiu da multidão e disse para os Zwaarkind:

    — O que estão fazendo aí, meus amigos? Venham logo!

    Hydele acompanhou sua família descompassada. Finalmente tinha conseguido dar mais de dez passos sem cair, todavia nem que desse cem conseguiria. Eram todos altos demais, cobrindo sua vista do séquito chegando ao som dos berrantes de pedra nas ameias do castelo, de onde longas flâmulas horizontais eram liberadas de seu enrolo. 

    O tropel ficou subitamente mais calmo; o som das trompas aumentou. Confiou na sua bengala e apertou com força. Quando finalmente conseguiram chegar na frente, viu cavaleiros com armaduras brilhantes sendo recebidos com pétalas pelas donzelas ao abrirem as portas da carruagem.

    E dela desceram os Bloemennen, seu rei e príncipes.

    A pequena Hydele já tinha ouvido falar, através das incansáveis bocas das pequenas senhoritas em suas festas no bosque interno, todavia não lhes imaginava da forma que seus olhos viram: que eram tão belos. O primeiro a sair fora o rei: um homem quase da mesma idade que Theolor; menos gordo, porém mais calvo. Trajava-se com uma rica manta de linho e outra de couro cheia de penduricalhos de ouro, mas não era o brilho das joias que mais chamava sua atenção.

    “Ele tem três cores de cabelo? Não é mentira! As lendas são reais?”, pensara Hydele, e provavelmente todas as pessoas que nunca tinham os visto pessoalmente.

    E não era o único. Apoiada pelas mãos de um cavaleiro — que reconheceu pela armadura vermelha brilhante, Cei Witernier, o Galante, chamado também de Nariz-Vermelho —, a princesa saiu da carruagem como se os ventos, luzes e trevas colaborassem para deixá-la mais bela. 

    Suas duas tranças, mais loiras do que ruivas e castanhas, penteados para serem belos mesmo com a rica crespina, eram levados pela ventania enquanto ela fitava a multidão com calmos olhos cheios de graça. Nunca tinha visto uma moça tão bonita, com traços tão maduros e jovens ao mesmo tempo. “Acho que entendo Bert”, ela pensou. Sentia-se extasiada.

    O primogênito não quis sair.

    Willmina segurou a mão da filha, que, boquiaberta, parecia ver uma dançarina dos ventos. Mirou bem seus olhos e percebeu que havia um inchaço sob olhos e aos lados do nariz de Sua Majestade, como também lábios ressequidos, então começou a pensar em todas as doenças que conhecia, segurando seu ventre. “Me é familiar, mas precisaria observar melhor — o que avidamente não farei.” 

    Ela ainda olhou para alguns dos outros nobres que vieram do rei. Conhecia todos os brasões que expunham em suas roupas e nas bandeiras presas às carruagens e jaezes dos cavalos — mas pouquíssimos dos rostos. “Onde estão os antigos lordes? Estes são muito novos!” De súbito, tudo virou silêncio.

    De súbito, tudo virou silêncio.

    O rei pôs-se a andar em direção de Theolor e seus filhos, cheio de regiedade nos passos, e pôs suas mãos sobre os ombros do duque Beesh.

    — Peço perdão por aparecer assim — pigarrou o rei; sua voz cheia de ranho assustou muito dos nobres ali —, meu velho amigo Theolor.

    — Pelos Deuses, você ficou mais careca do que eu! 

    — …Não, você com certeza está mais!

    No seguinte instante, os dois se abraçaram e soltaram uma sonora rizada. 

    — Você é sempre bem-vindo aqui, Rheider! Meu bom e velho amigo!

    — Vindo de surpresa, creio que não tanto — riu o rei, pondo a mão no queixo imberbe.

    — Haah! Não se importe! — deu um tapinha nos ombros do rei Rheider Bloemennen. — Não me visita desde que minha esposa morreu, amigo — continuou em um tom baixo. — E sua menina cresceu muito! Princesa — abaixou a cabeça. Ela respondeu com um olhar e sorriso gracioso, quase tão belo quanto os que Hydele dizia que a mãe tinha. Willmina pôs a mão sobre os cabelos da filha. Parecia extasiada.

    — Humph… — suspirou o rei, fitando a filha. 

    — Dito isso — continuou o duque —, onde está o Velho Cyreck? Ouvi, nestes dias em campo, que para onde o Flor do Dragão ia, seu sábio Conselheiro vinha.

    — O Velho Cyreck agora de fato é velho — respondeu, com sequidão, mas respeito na voz. — Serviu quatro gerações de reis Bloemennen. 

    Pela primeira vez, Willmina testemunhou seu duque com um semblante magoado.

    O rei voltou seus olhos para a carruagem e disse:

    — Tenho um presente para você, amigo. Pelos meus anos ausentes, digamos. Venha logo, Howan! 

    Hydele imaginou ter ouvido palavrões dos piores tipos saindo da carruagem, no entanto, fora um rapaz de pouco menos que quinze anos quem mostrou o rosto. 

    Mais ruivo do que loiro e castanho, o príncipe revelou-se sozinho com uma postura recaída e olhos castanhos redondos semicerrados, cheios de algo que Hydele não soube responder. Algum cheiro estranho saia dele, mas não era mais estranho do que a rocha oval de quase um metro que arrastou em uma liteira, junto de dois cavaleiros.

    — Entregue para a garota — ordenou o rei —, para sua noiva. À Nianna Beesh — o semblante do rei tornou-se ainda mais rígido e sério do que antes.

    Os olhos de Theolor Beesh arregalaram, e o silêncio dos nobres ao redor foi calado com uma cacofonia. 

    Príncipe Howan terminou de sair da carruagem com um rosto revoltado que lembrava Willmina a Bert, mas sua expressão mudou para um olhar genuíno que a mãe Zwaarkind conhecia muito bem — infalível; conhecia cada detalhe refletido até no jeito que os lábios se separavam. As bochechas enrubesceram, os olhos dilataram como fogo em palha seca e os dedos tremeram olhando em sua direção.

    Willmina desprezou o olhar com todas as forças.

    Principalmente por saber que se dirigia à Hydele.

    — É para você — ele disse depois de puxar a liteira quase sozinho e ignorar as pessoas à frente das duas, ajoelhado e rubro para sua filha.

    O silêncio piorara em cem vezes. Hydele travara, sem conseguir ter nenhuma reação. O duque cerrou os dentes; os olhos do rei quase saltaram. Willmina teve que se controlar para não puxar a filha para longe, cerrando os pulsos ao ver de soslaio que Ereken não fazia nada. Pensou genuinamente em agredir o príncipe com um chute, mas foi impedida pelo bom senso e pelo esposo em choque. Até que ouviu um grunhido abafado por metal.

    — O que está fazendo dando isso a uma plebeia?! — berrou o cavaleiro de armadura verde, trabalhada com entalhes de rubi, marchando ao tilintar da armadura para o príncipe ajoelhado. Willmina o agradeceu mentalmente por ter quebrado o silêncio, mas agora queria queimar o cavaleiro. — Não sabe do valor de um desses?!

    — Cale-se, Cei Ressen! — o príncipe deu as costas à Hydele, deixando-a respirar. “O que fazer?!”, gritou Willmina consigo. Sentia seu maxilar doendo e a pele esfriando. “O que fazer?” — Faço o que quiser com o ovo e com a plebeia feia e magra!

    Antes que conseguisse piscar, seu querido Bert golpeava o rosto do príncipe com a mão cheia e rosto raivoso.

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