Capítulo 79 - Injusto.
Carmen assistira séries de pronto socorro durante toda a sua infância e juventude. Sempre fora acostumada a ver a agitação urgente dos médicos e enfermeiros ocupando o espaço da tela, e cobrindo sua imaginação com um véu de fantasia sobre hospitais, atendimentos de emergência, e pronto-socorros.
Naquele início de noite, esse véu se rasgou.
Os soldados haviam retornado da caça ao urso. Haviam o matado, pelo que Carmen soubera, mas em nada pareciam vencedores. Ao menos seus rostos não eram assim. Muitos homens morreram no confronto com os animais, e após isso foram atacados por criaturas estranhas que pareciam grandes lagartos, de acordo com o que Caio dissera, aumentando o número de vítimas. Aparentemente, mais de vinte homens foram mortos em meio ao embate e outros muitos ficaram gravemente feridos.
Tendas foram armadas para acomodar os feridos, transformando a recepção dos homens em um centro de pronto-socorro.
No entanto, não parecia haver urgência nos movimentos de quem atendia os feridos, e sim uma monotonia prática. A maioria dos homens atendidos eram cobertos com ataduras e imobilizados de forma que não sofressem muito, sendo deixados assim.
Para Carmen, isso apenas significava que os cuidadores já aceitavam os que não podiam salvar.
Outros tinham membros decepados e então lavados com líquidos de alguns frascos pequenos, os quais estancavam o sangue no mesmo momento.
Carmim ouvia o som dos gemidos lamuriantes no lado de fora, os quais davam ao lugar uma atmosfera deprimente. Mas não tanto quanto o interior da tenda em que estavam.
Bacias de água e panos sujos de sangue no chão evidenciavam as muitas trocas de ataduras e curativos feitos nas horas anteriores. Letícia começou a derramá-las, uma por uma, no lado de fora. Thierry, que a muito havia desfeito o curativo podre no peito, para limpar as feridas e substituí-lo por um novo e limpo, e aplicando misturas que dizia serem curativas, naquele momento permanecia parado em pé ao lado da cama, observando Eduardo, que permanecia inconsciente.
Theo estava sentado em uma cadeira no canto da sala, olhando para as próprias mãos com um olhar atormentado. Caio dormia ao pé da cama. Ainda estava sujo e com as roupas rasgadas que todos os homens que carregavam as lixeiras usavam.
Carmen parou na entrada da tenda, após derramar a última bacia do lado de fora, o ar tinha um cheiro horrível, o que significa que o número de enfermos começara a diminuir, e o de mortos a aumentar. As tochas acesas entre as tendas transformavam a noite em um teatro de sombras e silhuetas silenciosas. O luto de um funeral já parecia dominar a todos.
A maioria das tendas armadas acomodavam entre quatro e seis pessoas. Eduardo, no entanto, tinha uma apenas para si. Carmen se perguntava o quanto Thierry tinha haver com isso, e se sim, o quanto de apreço ele tinha por Eduardo.
Carmen ouviu passos e virou-se na direção em que os escutara.
Duas silhuetas se aproximavam da tenda. Uma grande, outra pequena. Ela reconheceu o sir “Berinjela” e o escudeiro louro, Lohan.
— Senhorita — O cavaleiro a saudou com um acenar de cabeça.
— Olá, senhor — Carmen retribuiu o gesto de forma mais brusca e submissa. Decidira que era melhor agir assim perto de pessoas importantes.
Ele passou por ela e entrou na tenda. Lohan o seguiu. Os olhos verdes sem lhe dar qualquer relance de atenção ou interesse.
Ela entrou atrás deles, circulou-os e se pôs de lado. Theo se levantou ao vê-los entrar, mas sentou-se novamente após um gesto do cavaleiro.
— Como ele está? — Sir “Berinjela” perguntou a Thierry.
O velho apertou os lábios antes de responder:
— Honestamente, me surpreende que não o tenham colocado na carroça.
— Teríamos se eu não lhe tivesse dado uma mistura feita pelo Grã-Farmo de Euticos — afirmou o cavaleiro.
Lohan pareceu inquieto ao ouvir isso. Bateu o pé e cruzou os braços.
— De Euticos, hum — murmurou Thierry. — Diga-me o valor e eu o ressarcirei.
O cavaleiro riu.
— Minha vida não pode ser ressarcida, meu velho amigo. E o jovem a salvou, talvez ao custo da própria. Pouco valor tem uma mera mistura em comparação.
— Não imagina em que estado de perigo vós estavam para que sua vida precisasse ser salva — Thierry observou.
— Fora um descuido de minha parte, é verdade, mas… — O sir olhou para Carmen, para Théo e então voltou a falar. — Depois que o jovem estiver a salvo, conversaremos sobre isso. Bem, isso e sobre outras questões. Vamos Lohan — disse e então se despediu.
Após a saída do cavaleiro, Thierry suspirou e esfregou a cabeça. O cabelo grisalho estava molhado e bagunçado pelo suor. Ele então olhou para Carmen, Théo e para Caio, que continuava a dormir.
— É melhor que vocês retornem, Caio precisa de um banho e de descanso.
— Eu quero ficar — falou Théo — Eu… preciso ficar.
Thierry olhou para Théo com olhos frios, assentindo, então se voltou para Carmen. Ela acenou com a cabeça, obedientemente, foi até Caio, e cutucou o seu braço, contando-lhe sobre a ordem de Thierry.
Caio relutou, mas Thierry o convenceu teimosamente a ir para a casa, então Carmen o acompanhou.
A escuridão os envolvia. Era uma noite nublada e sem lua, cuja única luz vinha das casas longínquas. Fazia Carmen se lembrar daquela primeira noite naquele mundo. Fazia-a se lembrar daqueles olhos.
Ela procurou em seu vestido pela adaga e apertou o cabo.
Caio passara o caminho inteiro contando sobre a viagem de ida, a luta em si e a volta, mas Carmen apenas lhe respondeu com respostas vagas. Não sentia vontade de conversar desde que vira os machucados de Eduardo sem as faixas e ataduras.
Três grandes rasgos atravessavam seu peito, e um buraco rosa com o diâmetro de uma laranja jazia na lateral de sua barriga. Um dos braços estava com uma fenda profunda entre no antebraço. O outro parecia ter se quebrado. Embora Thierry a tivesse pedido para sair quando cuidou da parte inferior de Eduardo, ela pôde ver o que parecia ser uma presa enfiada na coxa.
Carmen concordava com a observação que Thierry havia feito. Era surpreendente que Eduardo ainda estivesse respirando, e ela duvidava que fosse continuar assim.
“É injusto.”
Eles chegaram a casa de Thierry. De alguma forma conheciam o caminho o suficiente para não se perderem em meio a escuridão. Ao menos Caio pareceu conhecer. Talvez isso se devesse à sua visão. Carmen decidiu se lembrar disso.
Passaram pela amurada que cercava a casa. Carmen divagava em sua mente, até seus olhos se fixarem em algo em cima da amurada, próximo a lateral da casa. Quatro pontos luminosos espiavam-nos.
Olhos, percebeu: “De que?”.
As formas de seus corpos estavam escondidas nas sombras. Poderiam estar por detrás da amurada, apenas espiando quem passava. Mas o que eram.
As memórias daquela primeira noite – e do dia posterior – voltaram.
Carmen estendeu a mão em direção a adaga, preparando-se para puxá-la, quando Caio jogou uma pedra na direção das criaturas. As luzes se moveram rapidamente e Carmen viu duas formas pequenas e familiares saltarem.
Um ouviu o som de uma pedra acertando a amurada e então Caio estalou a língua.
— Errei! — disse ele, frustrado.
Carmen respirou aliviada. Não eram goblins. “Sim, eram pequenos demais”, percebeu. Seguidamente, ela virou-se para Caio.
— Você sempre joga pedras em gatos? — perguntou.
— Só quando acho que vou acertar — respondeu ele.
Ela grunhiu e entrou.
A sala da lareira, que jazia apagada. Apenas cinzas fumegantes serviam de alguma fonte de calor. Carmen chamou por Roque, que respondeu. Sua voz parecia vir dos quartos. Caio seguiu para o banheiro, entrando primeiro. O que fez Carmen ter de esperar. Ela foi em direção ao quarto de Júlia. Encontrando-se com Roque e Letícia que conversavam de forma animada sentados ao lado da cama. Ambos seguravam canecas com o que Carmen apostava ser melgraz. Eles pararam quando a viram entrar.
— Carmen, e aí — Letícia se levantou —, como é que tá por lá?
— Terrível — Carmen respondeu, caminhando até a cama e sentando na beirada. O cansaço havia pesado sobre ela.
— O Eduardo vai ficar bem? — Letícia insistiu.
Carmen olhou para Júlia, que permanecia desacordada.
— Não sei.
“Se você não acordar e nem ele, ficarão juntos?”
Parecia-lhe uma ideia romântica. Uma que nunca lhe ocorreria. Não vivera um romance em vida, não viveria um na morte. Júlia parecia ter os dois.
“Muito injusto.”
— O jantar está pronto, caso queiram se servir — Roque falou em seu tom reservado.
Carmen assentiu. Roque saiu do quarto se despedindo dela e de Leticia. Carmen olhou para a forma com que ele falava e olhava para ela. Uma pontada de irritação acertou seu coração.
“Todas têm, menos eu.”
Ela se banhou e então fez sua refeição. Roque fez uma prece a mesa, pedindo por Júlia e Eduardo.
Carmen ouvia cada palavra. Um deus provavelmente estaria escutando. Se ele iria atender ou não o pedido, essa era sua dúvida.
Após a refeição, Caio, Letícia e Carmen foram para os seus quartos. Não haveria reunião naquela noite, aparentemente. Letícia e Carmen preferiram dormir ao lado da cama de Júlia. Cobriram o chão com cobertas que Roque providenciou e deitaram-se.
Carmen virou-se de um lado para o outro. O sono não vinha.
— Como estão as costas? — perguntou a Letícia.
Letícia se remexeu, virando-se para encará-la.
— Melhor, já não sinto dor desde que a tatuagem desapareceu.
— Que bom… — Carmen não sabia o que pensar disso.
Aquele ataque epilético dera-lhe medo. Letícia mal conseguia andar ou ficar acordada, mas desde então parecia ter se recuperado. Além disso, a tatuagem em suas costas também havia desaparecido sem qualquer explicação.
— Sabe, às vezes eu durmo pensando que vou acordar lá em casa. Ver os meus pais, o meu irmão — confessou Carmen.
— Eu também queria isso — Letícia afirmou. — Mas não vamos. Só nos resta aceitar que acordaremos aqui amanhã, e dormir sonhando com nossa casa.
— Sim. — Carmen concordou.
Letícia adormeceu. Carmen não. Ela continuou encarando a escuridão por tempo indeterminado. Se levantou, pegou uma cadeira e sentou encostada à parede.
Respirou fundo. Uma sensação frustrante sufocava o seu peito. Passou as mãos no rosto, esfregou os olhos e grunhiu. Eduardo morreria, ela sabia. Achou que poderia se aproximar dele enquanto Júlia estivesse desmaiada, então acabara de perceber que ela talvez nunca acordasse também. Os dois morreriam.
Essa ideia não a atormentava antes, por que agora? O que havia mudado?
Olhou para a cama. Sentia-se prestes a adormecer. As pálpebras pesando e fechando-se sobre seus olhos, até que todo o sono foi expulso de seu ser, e ela os abriu de repente, quase saltando da cadeira com o susto que tivera. Seu coração palpitou mais rápido quando, pela segunda vez naquela noite, viu que olhos a observavam na escuridão. Os olhos de Júlia, que havia se sentado na cama e a encarava como se espiasse dentro de sua alma.
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