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     Kalira se escorava em uma árvore, mal conseguindo se manter de pé. O corpo que roubou da garota ainda não estava devidamente preparado e selado. Graças a isso, suas veias estavam enegrecidas, suas feridas não se fechavam e a dor em seu pulmão a fazia cuspir sangue ocasionalmente. Seu plano tinha falhado em níveis catastróficos.

    — Como uma bruxa do meu nível caiu tanto assim? — disse ela, com a voz fraca.

    Por um motivo extremamente idiota, Kalira resolveu adotar Heferus como seu arqui-inimigo. Druidas poderiam ser conhecidos por suas loucuras e comportamento antissocial, mas era inegável que todos os reconheciam como protetores da natureza. Por outro lado, as bruxas nunca tiveram algo para proteger. Seus objetivos se resumiam a perverter, modificar e destruir. Eram predadoras alfas em ambientes como a Selva de Concreto. Nem mesmo os demônios ousavam colocar o pé no domínio de uma bruxa sem estar devidamente preparado.

    Matar druidas era algo bastante fácil para a maioria delas, porém o excesso de arrogância acabou gerando na derrota de Kalira para Heferus, que há sessenta anos, remoía sobre como teve seu domínio roubado e destruído. Era imperdoável pensar que alguém tinha feito aquilo com ela, sendo que esse era o seu trabalho.

    Ao descobrir que Heferus estava tentando construir um exército de marionetes para atacar a civilização, ela pôs o plano em prática. Ocultando sua presença por estar na forma das sombras, Kalira iria usar humanos para criar um chamariz para Heferus buscar. E como ainda descobriu que no meio deles havia alguém excepcional como Huan Shen, usaria ambos para se digladiarem até estarem enfraquecidos. Então, ela só precisaria matar os dois e consumir seus corações, aumentando seu poder e retomando o seu auge.

    — Era um plano tão simples, por que tinha que dar tão errado?

    Para sua surpresa, Heferus já tinha avançado demais nos seus experimentos e Huan Shen não possuía nada além de um corpo bem-trabalhado e uma pequena afinidade com magia. Foi um massacre unilateral, que resultou na morte grotesca dele. Agora, tudo que ela tinha era um ferimento maior, um cadáver inútil e a humilhação de ter falhado mais uma vez em derrotar seu inimigo.

    A bruxa se sentou embaixo da árvore, ofegante e com o sol agredindo sua visão. Havia um pouco de magia restando em seu corpo, mas não seria o bastante para ela conseguir navegar em segurança naquele lugar. Com um pouco de terra sulfúrica, ela polvilhou um pouco de pó nos ferimentos, misturando com a seiva escura das raízes e vísceras de um sapo morto. Com um pedaço de tecido, ela envolveu tudo em tecido e seguiu seu caminho devagar, se apoiando em um pedaço de galho.

    Era estranho ver aquele lugar tão silencioso, sem nenhuma das monstruosidades que costuma vagar de um lado para o outro. Nem mesmo os espíritos perdidos vagavam sem rumo. Aquilo dava uma pontada de tristeza em Kalira, pois um lugar sem fauna era basicamente um memorial fúnebre. O que quer que o druida estivesse fazendo, precisava ser parado.

    — De certa forma, é um motivo a mais que tenho para desgraçar a vida daquele sujeito!

    Após andar por uns quinze minutos, ela parou para respirar um pouco. Viu seu reflexo em uma poça d’ água, completamente surpresa com o que encarava. A pele outrora sedosa da garota já estava tendo pequenas erupções cutâneas em certos pontos por causa da magia obscura em seu corpo. Seus chifres ainda estavam em formação e seus olhos completamente enegrecidos.

    — Esse é o meu vigésimo terceiro receptáculo. Já passei por isso tantas vezes que nem me lembro como eu parecia…

    Próximo a poça, um monólito de pedra com aproximadamente dois metros de altura residia. Ele não era muito largo, mas conseguia fazer uma sombra decente. Ela olhou para o objeto de forma estranha, pois sabia que aquilo não era comum na região. O monólito tinha algumas inscrições em Ogam por toda a sua extensão. Não precisou de muito para saber que aquilo tinha sido trabalho do druida.

    Então, Kalira estendeu sua mão e tocou na borda do objeto, tentando sentir sua magia. Era uma sensação fresca, misteriosa e antiga, remontando a algo com séculos de existência. Era como um sistema intrincado, desconhecido e que selava alguma coisa dentro de si. A essência da magia Primordial.

    — Isso realmente seria um problema para qualquer um que tentasse lidar com isso. Mas para a infelicidade daquele filho da puta, eu sou uma bruxa. E desvirtuar é o que eu faço de melhor!

    Kalira respirou fundo, canalizando o poder do oculto dentro de si. O ar ao seu redor se condensava, as sombras das árvores aumentavam de tamanho e o céu parecia mais escuro ali. Uma força poderosa, destrutiva e profana começou a penetrar nos veios do monolito, sobrepujando e devorando a essência Primordial que residia nela. Então, o monolito começou a rachar. Quando a bruxa retirou seu toque, as pedras que compunham a escultura esfarelaram, libertando violentamente uma profusão de almas selva adentro. Uma energia dourada, selvagem e furiosa, indo para todos os lados sem nenhum controle.

    Rapidamente, Kalira canalizou suas maldições e conteve uma das almas, forçando-a a se solidificar ali mesmo. A energia brilhante começou a tomar forma, revelando-se ser uma espécie de criatura. Era um quadrúpede, quase três metros de altura. Sua pelagem era preta com padrões vermelhos, sua estrutura facial era alongada e definida, com um enorme chifre afiado como uma lança encantada, que residia acima do nariz. Seus olhos eram negros e gentis, suas patas eram circulares e pesadas, seu corpo era massivo e seus dentes eram circulares, porém esmagadores.

    — Um rinoceronte-empalador? Não sabia que essa espécie é nativa daqui! Vivendo e aprendendo.

    Enquanto a criatura permanecia presa na própria sombra, Kalira tocou na região das têmporas no rinoceronte. O animal começou a se agitar, tentando sair daquele lugar o mais rápido possível. Sua mente era submetida a uma dor terrível, estimulando todo tipo de sensação ruim ao mesmo tempo. A bruxa quase não conseguia manter o equilíbrio sobre a criatura.

    — Calma, já está acabando! — sussurrou.

    Então, a mente do animal ficou nublada. Seus movimentos violentos cessaram e seus batimentos sincronizaram com a da bruxa. Pequenas raízes espinhosas percorreram o corpo da criatura, apertando seu jugo sobre ela. Com um pequeno aceno de mão, o rinoceronte começou a trotar selva adentro.

    — Finalmente, descanso.

    Não demorou muito para Kalira chegar aonde o conflito tinha ocorrido. Ainda havia vários vestígios da sua magia e da que Heferus tinha usado. Marcas de sangue, cortes e fogo residiam por todo o lugar. Dentro de um arbusto, uma arara-azul residia morta no chão. Era possível ver as marcas das raízes espinhosas em suas penas, afinal ela tinha usado o animal para observar todo o confronto de uma distância segura.

    — A magia daquele filho da puta rompeu minha ligação com a arara de forma forçada, o que deve ter feito o coração dele parar. É uma pena, adoro araras. Vou ter que te usar como jantar, amiguinho.

    Andando um pouco mais, ela encontrou o corpo de um sulfurizado. Tinham marcas de golpe em seu corpo, mas a causa da morte claramente era o enorme buraco que residia em seu crânio. Aquilo intrigou Kalira, pois era difícil acreditar que um druida tinha descoberto o segredo para usar o poder Sagrado de uma forma tão otimizada e perigosa. Amarrando o cadáver no rinoceronte, ela seguiu em frente até o seu real objetivo.

    — Ah! Aí está você!

    Ela se agachou para ver de perto o que tinha sobrado de Huan Shen. Claramente a mulher que tinha aberto o peito dele como um animal no abate tinha algo pessoal contra o emissário. Seus olhos ainda estavam abertos, aterrorizados pela dor. A boca seca, contraída e aberta.

    — Parece que eu superestimei você. Sei que não foi uma morte tranquila, mas não se culpe. Você só foi infeliz de ter caído em meus planos. Acontece.

    Então, seus dedos foram revestidos com uma chama negra. Era peculiar, pois sua chama não esquentava, mas sim fria. Lentamente, ela a ergueu na direção do cadáver a sua frente. Quando as chamas ficaram mais intensas, prestes a saltar dos seus dedos, Kalira observou mais uma vez o corpo do sulfurizado.

    As veias douradas em um corpo acinzentado, uma engenharia mística que teve um resultado impressionante, tudo aquilo a fez cogitar: será que ela conseguiria fazer igual?

    Olhando mais uma vez para Huan Shen, as chamas em suas mãos sumiram. Um sorriso vil se formou em seu rosto, pensando nas possibilidades que estavam prestes a surgir.

    — Está pronto para servir aos meus propósitos mais uma vez, Sr. Emissário?

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