Enquanto o motorista Carlos revivia as suas memórias, o seu corpo por inteiro estremecia ao recordá-las. E apesar de sua voz parecer calma, o seu espírito, por outro lado, se mostrava bastante agitado.

    — Naquele instante, enquanto eu retornava para o carro — disse o rapaz. — Um sentimento inquietante de pavor, e de medo, se apoderou do meu coração. E talvez, seja por conta de um instinto paterno, ou, quem sabe, uma súbita epifania; fui compelido a ligar para a minha filha. E como ela não me atendia, acabei indo visitá-la.

    Ele suspirou por um segundo — aflito — e acrescentou:

    — Quando cheguei na casa dela, encontrei a porta da frente semiaberta. No corredor, que dava acesso para a entrada; haviam diversos sinais de luta física e, mais ao fundo, seguindo em direção a sala, eu pude ver, com os meus próprios olhos, a minha única filha, jogada no chão, coberta de sangue e toda machucada!

    Em uma fração de segundo, a voz do rapaz mudou abruptamente e, os seus olhos — que até então exprimiam angústia — agora, revelavam raiva.

    — E sobre ela, sufocando o seu pescoço — contou, com sua voz ganhando ainda mais intensidade. — Estava a silhueta de uma pessoa que eu conhecia muito bem!

    A imagem de uma figura masculina adulta, sorridente, enquanto agredia a sua única filha, passou pela mente de Carlos. E ele, tomado pela raiva, vociferou:

    — O desgraçado havia batido nela, até a menina desmaiar! — bradou ele, com força, enquanto apertava o volante.

    Em seguida, o rapaz de cabelos grisalhos semicerrou os seus olhos, estufou o peito e despejou palavras cheias de ódio:

    — Então, num forte impulso de raiva, eu o matei! Com as minhas próprias mãos!

    Em seguida, Carlos fechou os olhos e suspirou.

    — O resto da história vocês já sabem. O rapaz que matei, era filho de um Parlamentar corrupto do governo, e logo que a notícia se espalhou, a cabeça de minha família foi posta a prêmio. Por vários dias fomos caçados, e por várias noites nós fugimos. Até que não pudemos fugir mais, e eles nos encontraram.

    O corpo de Lycoris estremeceu ao ouvir aquelas palavras e, por um breve momento, a sua mente viajou para o passado.

    Em suas memórias mais profundas, ela se viu de pé, parada acima de uma ponte — em meio à uma noite chuvosa — lutando contra dezenas de pessoas muito bem armadas.

    — Então, quando eu pensei que não havia mais jeito de sairmos todos vivos de lá, e que seria morto, bem na frente de minha família; eu supliquei a Deusa por ajuda, e ela apareceu!

    Lágrimas escorreram dos olhos do rapaz e, com uma expressão que indicava alívio, ele exclamou:

    — Radiante e imponente! Como um anjo enviado pelos céus! — disse, exaltando a cena. — Ela nos salvou! Lycoris Étoile! A Filha da Deusa!

    Os olhos do motorista Carlos cintilaram por um segundo e, com um sorriso genuíno estampado em seu rosto, ele completou:

    — Obrigado por salvar a vida de minha filha, Lycoris! Obrigado por ter salvado a vida de minha família! Eu sou realmente grato, de todo o meu coração!

    Com o fim daquelas palavras, a garota de olhos cor-de-rosa ficou boquiaberta. E, apesar do seu espírito sentir uma alegria indescritível; por algum motivo, ele também estava em conflito.

    — Eu só fiz aquilo que o meu coração pediu para fazer, senhor Galdino! — disse ela, sem jeito. — Infelizmente, não pude fazer muito mais pelo senhor depois daquilo…

    Os seus olhos brilharam por um instante e, enquanto uma série de imagens distorcidas passavam pela sua mente, a sua cabeça, por algum motivo, começou a doer.

    “O que foi isso? Que sensação ruim é essa?!”, pensou ela, confusa, enquanto levava a sua mão até o peito. “Por que eu sinto que o meu coração está prestes a se partir?!”

    Do seu lado, com os seus olhos brilhantes, Kaiserin acompanhava tudo.

    — O seu propósito, minha Patroa, sempre foi defender a vida! — argumentou o rapaz, tentando animá-la. — A culpa não é sua, se depois de me salvar daqueles homens; continuei sendo perseguido por eles.

    “Não! Isso está errado! Por algum motivo, não deveria ter acontecido assim… Na verdade, o senhor Galdino já está mort—”

    À medida em que Lycoris se aproximava de ter uma epifania, os seus olhos passaram a brilhar com ainda mais intensidade e, no instante em que a sua mente estava para compreender aquelas imagens, Kaiserin tocou na sua mão e a despertou de seu transe.

    Tendo recuperado os seus sentidos, Lycoris observou, ansiosa, a sua Serva lhe encarando.

    Então, após confirmar que a sua Mestra estava bem, Kaiserin soltou a sua mão, virou o seu rosto para frente e voltou a falar com o rapaz que as conduzia.

    — E caso você não saiba, nobre Carlos. — disse ela, em seguida. — Quando a minha Mestra ficou encurralada e sem saber o que fazer; ela foi atrás da única pessoa que poderia dar um jeito naquela situação!

    A mulher de cabelos escuros abriu um sorriso largo e acrescentou:

    — Sim! O seu atual patrão e líder da Máfia do Porto! Jhon, o Grande!

    — No fundo, eu sempre soube! Hahaha! — disse Carlos, dando risada. — Apesar do meu patrão, sempre ter dito, que: “um pequeno anjo da guarda havia solicitado os seus serviços”, era mais do que certo, que esse anjo possuía uma forma humana!

    — Você tinha que ter visto a cena, nobre Carlos! — acrescentou a segunda, adotando um tom mais zombeteiro. — Em um primeiro momento, ela apareceu chorando diante de todos e, no minuto seguinte, os integrantes da Máfia inteira já haviam pego em armas, e se preparavam para atear fogo na cidade!

    — Isso já é um exagero, Ruler! — esbravejou Lycoris, nitidamente incomodada com aquela descrição.

    — Exagero era o que Jhon pretendia fazer, Mestra! — disse Kaiserin, caçoando da primeira. — Se não fosse pela intervenção de sua Irmã mais velha, em acalmar a fera, ele poderia muito bem ter começado uma guerra civil na cidade!

    ヽ(°〇°)ノ a mana Aqüa pode ser muito assustadora às vezes! — comentou Galatéia, perplexa.

    “Às vezes, rs?! Você está sendo gentil demais, minha adorável fadinha!”, pensou Lycoris, suando frio, enquanto se recordava da personalidade rígida de sua irmã.

    — Bem, apesar dos pesares — disse Carlos, agora mais calmo. — No final, o Patrão se sensibilizou com a minha situação, e me recebeu, de braços abertos, na Máfia do Porto!

    Ele esboçou um sorriso alegre e completou:

    — Não como um mafioso, e sim, como um motorista pessoal dele!

    Com a sua cabeça balançando em sinal de aprovação, Kaiserin compartilhou a sua opinião:

    — Ele sabe muito bem, que você não é uma pessoa que vive no lado escuro da cidade, nobre Carlos — pontuou ela. — E sim, um homem honesto e pai de família! Foi por causa disso, que ele te entregou a chave de um carro, e não uma arma.

    — O Patrão me disse algo semelhante uma vez — acrescentou o rapaz, enquanto a sua mente era levada mais uma vez para o passado. — Quando contei a minha história, ele simplesmente respondeu: “Senhor Carlos, as suas mãos estão limpas! Não há pecado algum em querer proteger a sua família!”

    “E se alguém disser que estou errado, e que o senhor deveria ser punido; nem que seja a própria deusa, eu vou me colocar na sua frente para defendê-lo! Honrado Carlos, para proteger a sua vida, e a vida de sua família, eu te ofereço a minha proteção e amizade!” — completou, ofegante.

    “Isso é bem a cara do Jhon mesmo, rs!”, disse Lycoris, em seu íntimo, enquanto ouvia a voz de seu Mestre ecoando em seus ouvidos.

    — Para Jhon, nada é mais importante que o respeito, a família e a lealdade — Kaiserin explicou, enaltecendo o rapaz. — E como tal, estes são os pilares que regem a ordem dentro da Máfia do Porto!

    Com um olhar cabisbaixo, o motorista Carlos falou:

    — E apesar de eu ter adquirido um certo alívio depois disso; o fato de ter tirado uma vida humana, continuava a assombrar o meu espírito…

    Em seguida, ele moveu os seus olhos para cima e, observou, as estrelas do centro da via láctea luzindo.

    — Então, conversando com a minha família, e depois, com o Patrão Jhon — continuou. — Cheguei a uma conclusão. O que eu mais precisava naquele momento, não era de proteção física, e sim, de paz de espírito! Com isso, no mesmo dia me entreguei para a polícia local, e fiquei à disposição das autoridades da cidade.

    — Para pagar pelos seus crimes e ser perdoado pela deusa… — balbuciou Kaiserin, reflexiva.

    — De fato, minha Senhorita. E para a minha surpresa, durante o meu julgamento, apesar de meus pecados; a própria deusa veio em meu nome, apresentar sua defesa! 

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