Capítulo 118: Enseada
Dois dias haviam se passado desde o confronto com o Sargento Denfi, mas a sensação de indignação ainda queimava em Talia. Sentada diante do Oficial Tecno, ela apertava as dezenas de folhas contra o peito, como se proteger o fruto de seu trabalho fosse uma barreira contra as ameaças que pareciam se aproximar.
Tecno, sentado de maneira relaxada, observava-a com olhos calmos, mas sua voz era carregada de um peso que Talia não podia ignorar.
— A única coisa que pode fazer para contrariar isso, Talia, é sendo melhor do que eles.
Ela franziu o cenho, sentindo o peso dessas palavras. Tecno não parecia irritado, mas havia algo em sua postura que denunciava uma preocupação contida.
— Denfi vai querer entrar com um processo contra você, e, por motivos lógicos, ele vai querer seu trabalho.
Talia piscou, surpresa, como se ele tivesse acabado de atingir um ponto que ela não havia considerado.
— Meu trabalho? — Sua voz tremeu levemente, mas logo se firmou. Ela apertou ainda mais os papéis contra o peito, os protegendo como se fossem parte dela. — Não, eles não podem fazer isso. Eu estou trabalhando nisso faz tanto tempo, e o Comandante Sinali também permitiu que eu publicasse.
Tecno suspirou, cruzando os braços. Seu tom era paciente, mas firme.
— Sim, e você fez isso. Mas agora, precisa ser mais esperta do que eles.
Ele fez uma pausa, como se medisse cuidadosamente as palavras seguintes.
— Você precisa patentear esses estudos imediatamente, sem que Denfi ou mesmo o Comandante Sinali saibam. Porque…
Ele parou, deixando que o peso do próximo detalhe se acomodasse no ar entre eles.
— Porque Dalia foi atrás para saber o que aconteceu.
O nome de Dalia fez algo dentro de Talia estremecer. Ela conhecia a postura implacável da Oficial e sabia que, se Dalia estava envolvida, a situação era mais séria do que imaginava.
— E o que ela descobriu? — Talia perguntou, sua voz agora carregada de uma mistura de urgência e cautela.
Tecno inclinou-se levemente para frente, apoiando os cotovelos na mesa.
— Dalia suspeita que Denfi já vinha manipulando processos semelhantes. Não é a primeira vez que algo assim acontece. Ela encontrou indícios de que ele tentou atrasar patentes de outros soldados estrangeiros, algumas até desapareceram misteriosamente.
Talia sentiu um calafrio percorrer sua espinha.
— Ele… ele não pode fazer isso comigo.
— Não pode, mas tentará. — Tecno a interrompeu, sua voz baixa e carregada de gravidade. — Por isso você precisa agir rápido. Faça as patentes sob um sistema seguro, registre tudo que puder, e mantenha cópias protegidas. E se precisar de ajuda, conte comigo e com Dalia. Não vamos deixar que eles te prejudiquem.
Talia olhou para Tecno, absorvendo cada palavra. Por um momento, ela viu nele algo mais do que um Oficial; ele era um aliado, alguém que entendia as dificuldades que ela enfrentava.
— Certo, vou fazer isso. — Sua voz agora era determinada, embora ainda carregasse a tensão da situação.
— Boa. — Tecno sorriu de leve, voltando à sua postura habitual. — E, Talia… lembre-se: eles podem tentar te derrubar, mas você tem algo que eles não têm.
— O quê?
— A coragem de lutar pelo que é certo, mesmo quando ninguém mais está olhando. Isso vale mais do que qualquer patente.
I
Dante segurou-se no último lance da escada de ferro, os dedos enrijecidos pelo frio que parecia se infiltrar até nos ossos. Cada degrau que havia subido rangia como um lamento de metal cansado, ecoando pela torre enquanto a tempestade de neve uivava ao redor. Quando finalmente alcançou o topo, o vento o golpeou com força, cortante como uma lâmina. Ele se virou, puxando o capuz sobre a cabeça, e viu Marcus sentado no beiral de ferro, tão imóvel quanto uma estátua.
Marcus estava envolto numa manta branca, quase se camuflando com o cenário de gelo e céu cinzento. O óculos térmico que usava reluzia em um tom avermelhado, dando-lhe uma aparência quase fantasmagórica. A carabina descansava em suas mãos, mas Dante sabia que nunca estava realmente em repouso. Marcus era do tipo que jamais largava suas armas, como se elas fossem extensões de seus próprios membros.
Dante aproximou-se devagar, o barulho de suas botas abafadas pela ventania. Quando finalmente se sentou ao lado de Marcus no beiral, sentiu o ferro gelado penetrar pela camada de tecido.
— Está um belo dia de sol hoje. — Dante sorriu, tentando aliviar a tensão. — Veio contemplar a vista daqui?
Marcus soltou um suspiro, cansado demais para rir, mas também longe de qualquer irritação.
— Pra quem ficou a semana inteira deprimido, parece que suas piadas voltaram duas vezes piores.
Não era uma resposta grosseira, mas carregava o peso de um homem exausto. O vento fazia a manta de Marcus flutuar ao redor dele como um manto espectral, e por um momento, Dante pensou que ele parecia parte da própria tempestade.
— Foi um pouco complicado. — Dante respondeu, desviando o olhar para o horizonte obscurecido pela neve.
— Eu sei que foi. — Marcus manteve os olhos fixos à frente, o tom de sua voz inabalável. — O que deveria ter feito era dizer isso para todos. Em vez disso, se isolou como um cachorro machucado.
Dante franziu o cenho, mas Marcus continuou antes que ele pudesse retrucar.
— Tem muita gente preocupada. Quando você se afastou, ninguém sabia o que fazer. Ficaram inseguros, sem direção.
Dante permaneceu em silêncio, o peso daquelas palavras caindo sobre ele como as rajadas de neve. Ele sabia que Marcus estava certo.
— Sei que deve estar cansado da cidade. — Marcus falou, com a voz carregada de algo próximo à tristeza. — Aqui não é sua casa, e Clara acha que você já passou do seu limite. Segurar o peso dessa cidade não deveria ser só seu.
— Por isso você não disse nada? — Dante perguntou, com um tom mais leve, mas, ainda assim, carregado de curiosidade.
— Eu não queria atrapalhar. — Marcus finalmente virou a cabeça para ele, e mesmo com o óculos cobrindo seus olhos, Dante sentiu a melancolia no ar. — Tudo isso é importante, mas nada disso aqui deveria ser seu problema.
O silêncio entre eles foi interrompido apenas pelo som da tempestade. Marcus suspirou, voltando a encarar o vazio.
— E, ainda assim, você ajudou. Antes de você, essa cidade era só uma pilha de lixo com gente desesperada brigando por migalhas. Você trouxe algo diferente, Dante. Algo que nem eu sabia que precisava.
Dante ergueu a mão e pousou no ombro de Marcus, apertando-o de leve.
— Não precisa dizer mais nada. Eu agradeço pelo que fizeram por mim. Minha dívida é eterna, e tenho certeza de que mais problemas vão aparecer. Sempre aparecem.
Marcus soltou uma risada baixa, carregada de cansaço.
— É, problemas sempre aparecem. Mas… a vista sempre compensa.
Dante riu também, apontando para a tempestade furiosa ao redor.
— E que vista melhor do que essa? — Ele esticou a mão, como se tentasse alcançar o próprio destino. — Prometi uma vez que ajudaria as pessoas. Vou cumprir essa promessa, por quanto tempo o destino achar necessário.
Marcus o encarou por um momento antes de desviar o olhar.
— Só não esqueça de cuidar de si mesmo. Até heróis precisam de descanso.
Dante sorriu, mas não respondeu. O vento continuava uivando, e o mundo abaixo deles parecia distante, quase irreal. Por um instante, naquele beiral de ferro congelado, ambos encontraram algo próximo à paz.
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