Capítulo 119: Fogo e Reflexos
Já haviam se passado mais de 90 dias desde que Arsena enfrentara Dante, mas a lembrança daquele momento ainda estava tão viva quanto o cheiro de ferrugem no ar do ginásio de treinamento. Ela estava ali novamente, parada diante do boneco de metal que mal parecia sofrer com seus golpes. A lâmina pairava a poucos centímetros do pescoço inerte da máquina, imóvel, sem força para cortar, sem coragem para avançar.
Arsena segurou a respiração, seus pulmões queimando pelo esforço, e soltou o ar com um suspiro longo. O suor escorria pela palma de suas mãos, tornando o cabo da espada escorregadio. Era frustrante. Por mais que tentasse, a cena do combate contra Dante insistia em retornar, gravada em sua mente como uma cicatriz que nunca fecharia.
Ela viu seu próprio reflexo na lâmina, mas não era ela que encarava. Era Dante. O olhar determinado, a postura impecável, o movimento fluido de sua espada que parecia mais uma extensão de seu corpo do que uma arma. Como ele fez aquilo?, pensou. Quantos dias ele treinou para chegar àquele nível? Quantos anos de suor e sangue?
— Arsena. — A voz de Magrot quebrou seus pensamentos como um vidro estilhaçado. Ele estava na porta, o braço direito coberto por um padrão irregular de cicatrizes e remendos metálicos. — Você viu Duna por aí? Procurei por ele hoje cedo.
— Não. — Arsena endireitou a coluna, abaixando a espada com um movimento seco. Ela se virou para um canto, onde uma toalha branca estava pendurada, e começou a secar o rosto.
Magrot não saiu. Ele permaneceu na entrada, os olhos fixos nela, como se estivesse esperando algo mais do que uma resposta.
— Por que está tão obcecada por aquele cara? — perguntou ele, com um tom que parecia mais uma provocação do que uma curiosidade genuína.
Arsena parou com a toalha no rosto, respirando fundo antes de responder.
— Não estou obcecada por ninguém. — A irritação em sua voz era evidente. Desde quando Magrot era tão observador? Ela jogou a toalha de lado e cruzou os braços. — Já disse que não sei onde Duna se enfiou. Pode ir embora.
Mas Magrot não se moveu. Ele inclinou a cabeça ligeiramente, como se estivesse tentando enxergar algo além do que Arsena deixava transparecer.
— Obsessão não é sobre gostar de alguém. — Ele falou com uma calma que parecia estudada, quase didática. — É sobre não aceitar o que aconteceu. Não aceitar a derrota. Havok nos ensinou isso, lembra?
Arsena cerrou os dentes. O nome de Havok era como um peso extra em sua consciência, um lembrete de tudo que havia aprendido — e tudo que ainda não conseguia aplicar.
— Eu não sou obcecada. — A voz dela saiu firme, mas baixa, como se estivesse tentando convencer a si mesma.
— Não é o que parece. — Magrot deu um passo para trás, ainda a encarando com aquela expressão enigmática. — Você não vai entender o que aconteceu se continuar tentando vencê-lo na sua cabeça.
Ele saiu, deixando-a sozinha com seus pensamentos e o boneco de metal, que parecia tão impassível quanto antes. Arsena olhou para a lâmina em sua mão, o suor ainda escorrendo de seus dedos. Magrot estava errado, pensou. Ela não estava obcecada. Estava determinada. Determinada a descobrir o que fazia Dante ser tão diferente.
Arsena pegou a toalha com um movimento brusco, limpando o suor que escorria pela têmpora. Seus dedos tocaram a bainha e a pequena armadura que protegia seu braço esquerdo, uma peça de metal leve e resistente, forjada com precisão quase artística por Duna. As bordas da armadura eram decoradas com entalhes simples, mas funcionais, um traço característico do trabalho de Duna, que preferia eficiência à ostentação.
Ela ajustou a armadura no braço com um clique metálico antes de seguir para fora do ginásio. Os corredores estreitos e os túneis mal iluminados se entrelaçavam como veias de um corpo moribundo, um labirinto construído de concreto desgastado e ferro corroído pelo tempo. A luz das lâmpadas oscilava de forma irregular, projetando sombras que dançavam nas paredes, como se o próprio abrigo estivesse vivo, respirando em silêncio.
Apenas ela e Magrot caminhavam por ali, suas presenças tão solitárias quanto os ecos de seus passos. Não havia mais ninguém à vista. A maioria estava ocupada em outras áreas, tentando sobreviver ao inverno implacável ou se escondendo das tempestades de neve que rugiam lá fora.
O silêncio era seu aliado, um companheiro constante que a envolvia como um manto. No vazio das passagens, cada som — o roçar da bainha contra o tecido, o estalo suave da armadura em movimento — parecia amplificado, preenchendo o espaço com uma melodia discreta.
Arsena preferia assim. O silêncio não julgava, não questionava. Não a lembrava de suas derrotas ou da sombra de Dante que ainda pairava sobre sua mente. No silêncio, ela podia organizar seus pensamentos, ensaiar seus próximos movimentos e planejar como transformar a frustração em força.
Ela respirou fundo, o ar frio e estagnado dos túneis invadindo seus pulmões. O caminho à frente era familiar, mas o destino ainda parecia incerto. Com a bainha presa ao cinto e a armadura bem ajustada, Arsena seguiu em frente, desaparecendo nas sombras como uma guerreira que se prepara para a próxima batalha — seja contra um inimigo, contra um amigo, ou contra si mesma.
Quando Arsena entrou na oficina, o cheiro familiar de óleo e metal a envolveu como um velho manto. As ferramentas estavam espalhadas como sempre, cada uma em seu lugar de desordem meticulosamente organizada, exatamente como Duna gostava. Ela caminhou até a antiga sala dele, empurrando a porta com um ranger baixo, apenas para encontrar o espaço vazio.
Nada além do jaleco de Duna permanecia, pendurado de forma desleixada em uma cadeira. Ela se aproximou da mesa e pegou uma maçã que estava largada sobre os esquadros e parafusos, dando uma mordida distraída. O sabor doce misturava-se com o amargor do pensamento de que ele havia desaparecido novamente. Era típico de Duna sair quando o tédio o dominava, vagando por outros lugares em busca de algo que prendesse sua atenção.
Arsena já havia presenciado esses desaparecimentos antes. Às vezes, ele retornava com histórias de templos antigos ou com anotações de novos estudos. Outras vezes, mencionava ter encontrado pessoas incomuns — uma vez até falou sobre indivíduos de pele muito escura, caminhando próximos a lagos misteriosos. Era uma boa desculpa para sair, explorar, e encontrar um fragmento de paz no meio da monotonia do abrigo.
Mas, naquele momento, a paz era o que menos lhe interessava. Ao virar-se para sair, algo na porta a fez parar abruptamente.
Ela prendeu a respiração.
O que estava ali não deveria, sob nenhuma hipótese, existir naquele lugar. A coisa tinha uma cabeça grotesca, pendendo de um lado para o outro como se não fosse sustentada por um pescoço adequado. Fileiras de dentes afiados, gosmentos e de uma cor azulada brilhante, preenchiam sua mandíbula, enquanto o restante de seu corpo era uma massa disforme. Não havia olhos — apenas um focinho alongado, que se erguia no ar como se farejasse algo.
Arsena congelou. O coração dela martelava no peito, mas sua mente gritava por calma. Era uma aberração, mas não era totalmente desconhecida. Não tinha a estrutura de um Felroz, mas algo naquela criatura sugeria um parentesco distorcido, um erro na cadeia de sua existência.
Lentamente, sua mão deslizou até o cabo da espada presa à cintura. O movimento era calculado, metódico. Cada segundo parecia uma eternidade enquanto a criatura continuava a farejar, aparentemente alheia à presença dela. Mas quando Arsena começou a se inclinar, o monstro virou o rosto abruptamente em sua direção.
— Merda.
O som abafado escapou de seus lábios antes que ela pudesse impedir. A criatura rugiu, um som grave e rouco que reverberou pelas paredes da oficina. Dentro de sua garganta, uma luz azulada começou a brilhar, pulsando como uma chama prestes a explodir.
Chamas?
Arsena não esperou para descobrir. Ela se jogou para o lado, o ombro batendo contra uma prateleira de ferramentas que caiu em cascata sobre o chão. Martelos, parafusos e pedaços de metal espalharam-se ao redor, o ruído ensurdecedor misturando-se ao rugido crescente da criatura.
Um clarão azul iluminou o espaço onde ela estivera um segundo antes, e o calor da explosão lambeu o ar ao redor. Arsena se ergueu rapidamente, sacando a espada enquanto avaliava a situação. A criatura girou em sua direção, o focinho tremendo enquanto farejava novamente.
Ela apertou o cabo da espada, os nós dos dedos ficando brancos. Não havia para onde correr. Se aquela coisa estava ali, dentro da oficina, não era por acaso. Era um aviso. E, se fosse preciso, Arsena lutaria para garantir que o aviso não se transformasse em um desastre.
A porta que conectava os corredores foi aberta com um estrondo, batendo contra a parede e ecoando pela oficina. Magrot entrou apressado, já manipulando os controles em sua manopla improvisada. Três botões foram pressionados em rápida sucessão, e a energia começou a se formar ao redor dele. Faíscas brilhantes e fragmentos de luz púrpura e dourada dançavam no ar, como se o próprio espaço estivesse se dobrando à sua vontade.
A criatura virou o focinho imediatamente na direção de Magrot. A luz azulada em sua garganta pulsou, mais intensa agora, enquanto ela abria a boca. Um som distinto, como estalidos de ossos se quebrando, ecoou pela sala, preenchendo o ar com uma tensão insuportável.
— Magrot, sai. Agora! — Arsena gritou, sua voz cortando o barulho como uma lâmina.
Magrot hesitou por uma fração de segundo, o suficiente para que Arsena percebesse que ele não obedeceria. Ele nunca foi do tipo que recuava, mesmo diante do desconhecido.
— Não vou deixar você enfrentar isso sozinha! — ele retrucou, ajustando o fluxo da Energia Cósmica na manopla. A luz ao seu redor intensificou-se, projetando sombras que dançavam freneticamente nas paredes da oficina.
— Não é hora de bancar o herói! — Arsena respondeu, os olhos fixos na criatura. Ela viu quando o brilho azul na garganta do monstro começou a se condensar, tornando-se uma esfera quase sólida de energia. — Essa coisa não é um brinquedo, Magrot!
A criatura rugiu novamente, o som grave reverberando como trovões dentro de uma caverna. Os estalidos de sua boca aumentaram, e Arsena teve um vislumbre do que parecia ser ossos deformados dentro da mandíbula da aberração. A esfera azulada começou a se projetar para fora da garganta da criatura, tremeluzindo como se estivesse prestes a explodir.
Arsena apertou o cabo da espada com força, o suor escorrendo de suas têmporas. Não havia tempo para discussões. Ela sabia que tinha apenas uma chance.
— Magrot, se não sair agora, vai acabar virando cinzas! — gritou ela, posicionando-se entre ele e a criatura.
Ele finalmente recuou um passo, mas não antes de erguer a manopla, disparando uma rajada de energia diretamente contra o monstro. O impacto atingiu o flanco da criatura, fazendo-a cambalear e soltar um grito agudo de dor. Mas, em vez de recuar, a aberração virou o corpo para eles, os músculos se contorcendo como uma máquina de guerra prestes a atacar.
— Maldição… — murmurou Arsena, já se preparando para o pior.
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