Capítulo 120: Fogos e Reflexos (II)
— Porra. Eu disse pra não fazer nada! — Arsena gritou, sua voz carregada de raiva e frustração enquanto saltava para o lado mais uma vez.
As chamas azuladas saíram da boca da criatura com um rugido ensurdecedor, atingindo o chão com um impacto que fez a oficina inteira estremecer. O calor era sufocante, mesmo a metros de distância, e a rajada incandescente se arrastou pelo solo antes de explodir contra a parede. O metal enegrecido chiou, soltando fumaça e fuligem que se misturavam ao ar pesado da oficina.
Arsena mal teve tempo de se levantar quando ouviu o som característico dos pés de Magrot batendo contra o chão. Ele desceu para o nível da criatura com uma agilidade que ela não sabia que ele possuía, os passos ecoando de forma oca pelo piso de metal.
Ela observou, incrédula, enquanto Magrot corria diretamente em direção ao monstro. Sua manopla estava em pleno funcionamento, luzes pulsando em padrões frenéticos enquanto ele apertava uma sequência de botões. Faíscas elétricas saltavam do braço dele, criando um zumbido baixo que parecia crescer à medida que ele avançava.
— Magrot, não seja um idiota! — Arsena gritou, mas ele não hesitou.
Ela viu claramente o que ele estava tentando fazer. A determinação estampada em seu rosto era quase tão brilhante quanto a energia cósmica que envolvia sua manopla. Mas Arsena sabia, com uma certeza fria e cortante, que ele não tinha chance de enfrentar a criatura de frente.
O monstro, percebendo o movimento de Magrot, virou-se rapidamente. Seus dentes gosmentos brilharam à luz intermitente da oficina, e suas patas desiguais arranharam o chão com um som horrível, como unhas contra metal. A luz azul em sua garganta voltou a pulsar, ameaçando uma nova explosão.
— Vou segurar ele! — gritou Magrot, sua voz ressoando com uma firmeza que Arsena raramente ouvira.
A criatura não perdeu tempo. As chamas azuladas em sua garganta cresceram como uma onda prestes a romper, e em um instante, elas foram lançadas na direção de Magrot. O calor abrasador parecia dobrar o ar ao redor, distorcendo a visão como se o próprio espaço estivesse se rendendo ao ataque.
Mas Magrot não recuou. Sua mão, envolvida pela manopla pulsante, ergueu-se com um movimento firme. Luzes douradas e amareladas começaram a emanar do dispositivo, e, num gesto dramático, ele puxou a energia para fora como se arrancasse algo do próprio tecido do universo.
As chamas que ele conjurou eram intensas, brilhando como o sol. No momento em que colidiram com o fogo azul da criatura, um choque violento preencheu o ambiente. A luz explodiu em todas as direções, ofuscando Arsena por um instante.
O impacto gerou uma onda de calor tão forte que fez as paredes da oficina rangerem em protesto. O ar ficou carregado, e a mistura de energias opostas criou um zumbido ensurdecedor. Arsena sentiu o calor lamber sua pele, o suor escorrendo pelo rosto enquanto ela tentava manter os olhos abertos contra o brilho cegante.
— Magrot! — gritou ela, tentando se aproximar.
Ele estava no centro do confronto, as pernas firmes como pilares, mas o esforço começava a transparecer. Veias saltavam em seu pescoço, e seu rosto estava contorcido de concentração. O fogo dourado que ele controlava lutava para manter o avanço do azul, mas era claro que ele não poderia sustentar aquilo por muito mais tempo.
— Não vou aguentar muito! — gritou ele, os dentes cerrados.
Arsena sabia que precisava agir. A criatura estava distraída, sua atenção focada em Magrot e na batalha de chamas. Era a oportunidade que ela esperava.
Com um movimento rápido, ela se posicionou atrás da aberração. Segurando a espada com ambas as mãos, Arsena deu um passo à frente e lançou um golpe certeiro na articulação traseira da criatura.
O grito que ela soltou foi ensurdecedor, um som que parecia vibrar até os ossos. O fogo azul hesitou por um momento, vacilando, e Magrot aproveitou para liberar uma última onda de energia dourada, empurrando a criatura para trás.
— Agora, Arsena! — ele berrou, caindo de joelhos enquanto o brilho da manopla começava a se apagar.
Ela não hesitou. Com um grito de guerra, ergueu a espada novamente e desferiu um golpe final na garganta da criatura, cortando fundo e interrompendo o brilho azul de sua garganta.
A aberração cambaleou, soltando um último rugido fraco antes de cair pesadamente no chão.
O silêncio que se seguiu foi absoluto, quebrado apenas pelo som da respiração pesada de Magrot e Arsena. Ela se aproximou dele, ajudando-o a se levantar.
— Você é um idiota, sabia? — disse ela, ofegante.
— Talvez… — Magrot respondeu, um sorriso cansado se formando em seus lábios. — Mas funcionou, não funcionou?
Arsena recuou mais alguns passos, o peito subindo e descendo enquanto tentava recuperar o fôlego. A espada em sua mão parecia mais pesada do que nunca, como se a batalha tivesse drenado cada gota de sua força. Ela lançou um olhar para Magrot, que ainda estava ajoelhado no chão, a manopla fumegando.
O pensamento surgiu como uma facada em sua mente: E Duna? Onde ele estava? A criatura poderia tê-lo encontrado antes deles. A ideia fez seu estômago revirar.
— Arsena… — a voz de Magrot soou, forte o suficiente para cortá-la de seus pensamentos. — Arsena!
Ela ergueu a cabeça rapidamente, o coração batendo descontrolado. Foi quando percebeu.
A boca do Felroz estava bem na frente do seu rosto. Os dentes pontiagudos pulsavam, como se fossem partes vivas, se contorcendo dentro daquela mandíbula grotesca. Uma gosma azulada escorria entre eles, caindo no chão com um som viscoso. O calor e o cheiro metálico e ácido da criatura eram sufocantes, cada respiração dela parecia vibrar contra a pele de Arsena.
Engoliu em seco, sentindo o corpo congelar por um instante. Ainda estava viva. A aberração não apenas sobrevivera, como parecia ainda mais faminta, mais feroz. Aqueles dentes vivos, como se fossem a extensão de sua garganta, queriam apenas uma coisa: sua vida.
O monstro rugiu, e Arsena sentiu o som vibrar nos ossos, fazendo suas pernas quase cederem. Ela apertou o cabo da espada, mas sabia que não teria tempo para um golpe certeiro.
— Magrot! — gritou, a voz tremendo entre pânico e raiva.
O Felroz avançou.
— Ei, coisinha horrorosa.
A voz soou clara e provocativa, cortando o ar pesado da oficina. Arsena e Magrot se viraram instintivamente, assim como a criatura, seus movimentos abruptos carregados de surpresa e desconfiança. No canto da sala, onde escombros e sombras se misturavam, uma porta oculta se abriu.
Duna surgiu, e mesmo em meio ao caos, sua figura era inconfundível. Ele segurava uma arma que não poderia ser descrita como nada menos que uma abominação mecânica. Era um emaranhado de parafusos enferrujados, remendos improvisados, pedaços de lixo reciclado e até algo que parecia carne podre pendurada como um amuleto grotesco.
Ele apoiou a monstruosidade contra o ombro, a expressão em seu rosto era de pura determinação. Não havia espaço para hesitação ou medo.
— É bom saber que aqui dentro você não manda em porra nenhuma. — disse ele, com um tom que carregava uma confiança desafiadora.
Sem esperar resposta — ou reação — ele pressionou o gatilho.
O disparo foi ensurdecedor, um som que pareceu explodir dentro do crânio de Arsena e Magrot. A onda de choque criou uma ressonância tão intensa que as paredes da oficina tremeram, liberando poeira e fragmentos de metal do teto.
O Felroz soltou um grito agudo e grotesco, um som que parecia misturar dor e fúria. Sua cabeça ergueu-se violentamente, a boca escancarada, como se tentasse expelir o próprio sofrimento.
O projétil que Duna disparara não era uma bala comum. Era uma rajada de energia amarelada, quase espectral, que parecia dançar com faíscas mortíferas enquanto avançava. Quando atingiu o monstro, a energia não apenas perfurou sua carne, mas rasgou o corpo de uma ponta à outra em uma linha brilhante e funérea.
Arsena assistiu, atônita, enquanto o Felroz se desfazia diante de seus olhos. O corpo da criatura se abriu como se tivesse sido cortado por uma lâmina invisível, cada parte dele se retorcendo antes de cair ao chão em pedaços disformes. A gosma azulada que antes escorria de sua boca agora jorrava em poças fumegantes ao redor.
Duna abaixou a arma, soltando um suspiro longo e satisfeito. Ele olhou para Arsena e Magrot, com um sorriso ligeiramente torto, como se aquilo tivesse sido apenas mais um dia comum para ele.
— Vocês dois deviam saber que, quando tem confusão, eu sempre apareço.
Arsena piscou, ainda tentando processar o que acabara de acontecer.
— Que diabos é isso que você está carregando? — perguntou ela, apontando para a arma com a espada ainda em mãos.
Duna deu de ombros.
— Um brinquedo que andei montando. Chamo de “Desmancha-sonhos”. Parece que funciona, né?
Antes de conseguir dar uma risada, o braço dele recebeu uma carta do raio amarelado também, estourando sua pele e abrindo a carne. O sangue se espalhou, e os olhos de Duna remexeram. Ele tinha conseguido dar uma risada seca, mas caiu pra trás com a arma em cima dele.
Antes que pudesse dar a risada triunfante que claramente estava prestes a sair de seus lábios, o braço de Duna foi atingido por um resquício do mesmo raio amarelado que ele disparara contra o Felroz.
A energia ricocheteou no ambiente como um fragmento rebelde, atingindo-o com uma força que parecia cortar o próprio ar. O impacto foi brutal. A pele do braço explodiu em um clarão rápido, e a carne foi aberta de maneira grotesca, revelando músculos e sangue que escorriam rapidamente.
Duna cambaleou para trás, o rosto contorcido de dor, mas, mesmo assim, conseguiu soltar uma risada seca, um som fraco que parecia desafiar a própria realidade do que acabara de acontecer.
— Porra… isso… foi inesperado… — murmurou ele, enquanto caía no chão com um baque surdo. A arma improvisada escorregou de suas mãos e caiu em cima dele, emitindo um último chiado antes de apagar completamente.
Arsena arregalou os olhos, correndo em direção a ele.
O rosto dele estava pálido, e os olhos, antes tão vivos e cheios de provocação, agora se moviam desordenadamente, como se tentassem se manter abertos contra a força da dor que o dominava. O sangue já começava a formar uma poça ao seu redor, espalhando-se rapidamente pelo chão.
— Magrot! — Arsena gritou por cima do ombro. — Ajuda aqui, agora!
Magrot, ainda arfando e visivelmente esgotado, levantou-se com dificuldade, mas não hesitou. Ele correu até os dois, ajoelhando-se ao lado de Arsena.
— Merda, isso tá feio… — murmurou ele, examinando o ferimento.
— Dá pra salvar? — perguntou Arsena, a voz carregada de urgência.
Magrot apertou a mandíbula, ativando novamente a manopla, desta vez para liberar um feixe de luz fraca e pulsante que ele começou a passar sobre o ferimento de Duna.
— Se ele parar de se mexer, talvez. Duna, fica quieto!
Duna soltou um som que era metade risada, metade gemido de dor.
— Tá tranquilo… não é a primeira vez que eu me arrebento assim…
— Cala a boca, idiota! — Arsena retrucou, pressionando um pedaço de tecido improvisado contra o braço dele para tentar estancar o sangramento.
Não estava conseguindo. Era sangue demais.
— Vou cicatrizar tudo com as chamas — disse Magrot, deslocando-se para o lado de Arsena com pressa. A manopla no braço já estava emitindo um brilho alaranjado, enquanto ele ajustava os controles com dedos trêmulos. — Merda, isso tá muito feio mesmo. Não tem como a gente refazer isso.
Arsena engoliu em seco, observando o estado de Duna. O sangue continuava a escorrer, mesmo com o tecido pressionado contra o ferimento. Ela abriu a boca para perguntar algo, mas parou quando viu que os olhos de Duna estavam fechados, a cabeça dele pendendo levemente para o lado.
— Merda, merda, merda! — gritou ela, quase em desespero. — O que a gente faz?
Magrot parou por um momento, o olhar fixo no rosto pálido de Duna. Então, com um movimento brusco, ele ergueu a cabeça.
— Pega tudo que puder de remédio — disse ele, a voz firme apesar do caos ao redor. — Eu sei de um lugar.
Arsena não perdeu tempo. Ela se levantou rapidamente, correndo até uma das prateleiras da oficina. Vasculhou com mãos apressadas entre frascos, seringas e pequenos pacotes de curativos. A adrenalina fazia seu corpo tremer enquanto tentava reunir o máximo de suprimentos que conseguisse.
— Que lugar é esse? — perguntou ela, jogando tudo dentro de uma sacola improvisada.
— Você não vai querer saber. Agora, vai.
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