Índice de Capítulo

    A escolha de Magrot parecia o pior destino que Arsena poderia imaginar. Cada passo a levava para mais perto de um lugar que ela jurara nunca mais visitar. Cada corredor, cada passagem, todos convergiam para o mesmo ponto inevitável. O peso na boca do estômago crescia a cada momento, como se algo invisível puxasse suas entranhas. Ela não queria voltar. Não queria encarar os fantasmas que ainda rondavam sua mente, especialmente o rosto daquele homem, cujas palavras e ações haviam deixado marcas profundas e inapagáveis em sua memória.

    Mas o som atrás deles era impossível de ignorar.

    Uivos distorcidos ecoavam pelos túneis, se misturando com o rugido da tempestade lá fora. Arsena virou a cabeça por um instante e viu os contornos grotescos das criaturas que os perseguiam. Eram Felroz, mas não como os que haviam enfrentado antes. Suas bocas se alargavam de forma antinatural, quase até as orelhas, formando um sorriso macabro e faminto. Seus corpos, encurvados e irregulares, avançavam em quatro patas com uma rapidez alarmante, e onde deveriam estar os olhos havia apenas vazios escuros, como se tivessem sido apagados.

    — Estão nos farejando — gritou Magrot, a voz abafada pela ventania e a neve que caía ao redor. Ele olhou para trás por cima do ombro, o rosto marcado por tensão. — Temos que acelerar!

    Arsena respondeu com um olhar cínico, quase debochado, mesmo que por dentro sentisse o peso de suas palavras. Sabia que ele estava certo. Sabia o que precisava fazer. Mas a confiança para simplesmente avançar sem olhar para trás lhe escapava.

    Respirando fundo, ela concentrou sua Energia Cósmica. A sensação era como puxar algo de dentro de si mesma, uma força bruta e reluzente que crescia até tomar forma. Aos poucos, um reflexo perfeito de Arsena se materializou diante dela, movendo-se com a mesma precisão e força.

    Sem hesitar, ordenou que sua cópia seguisse na direção oposta, correndo para longe, em direção às criaturas. O reflexo ganhou solidez, uma projeção física que se afastava com passos rápidos e firmes, como se fosse ela própria.

    Arsena manteve o foco e ajustou seu ritmo, acelerando para alcançar Magrot. Os braços pressionados contra o corpo, os passos rápidos e certeiros. Cada vez que o som dos uivos aumentava, ela apertava o passo, ignorando o frio que cortava sua pele como lâminas e a exaustão que ameaçava dominá-la.

    O reflexo corria para longe, servindo como uma distração. Mas por quanto tempo? Ela não tinha ideia. Tudo o que sabia era que não podia parar. Não agora. Não com Duna dependendo dela.

    Magrot virou-se por um instante, observando-a se aproximar. Ele assentiu brevemente, como se reconhecesse o que ela havia feito, e continuou correndo.

    — Não se distraia!

    — Não estou distraída, seu monte de lixo.

    Magrot não reagiu. Ele mantinha o ritmo, carregando Duna como se cada passo fosse calculado, mas o peso da situação estava evidente. Quando saíram do túnel, foram imediatamente atingidos pela vastidão branca da tempestade lá fora. A neve caía pesada, cobrindo o chão com uma camada espessa e traiçoeira.

    Atrás deles, os uivos ficaram mais ferozes, reverberando pelos corredores que haviam deixado para trás. Arsena olhou por sobre o ombro, sabendo que o Reflexo talvez atrasasse as criaturas, mas não confiava nisso. Não por muito tempo.

    Esses Felroz eram diferentes. Mais rápidos. Mais fortes. Mais inteligentes.

    — Usaram fogo — murmurou, as palavras saindo como um sopro, mas carregadas de incredulidade. — Aqueles bostinhas estavam usando fogo. Você viu?

    — Continue andando. — Magrot não perdeu tempo com discussões. Ele ajustou o peso de Duna em seu ombro, erguendo-o um pouco mais. Na neve, o chão era traiçoeiro, fofo demais para oferecer apoio firme, e cada passo exigia cuidado.

    Arsena sabia que o corpo robótico de Magrot tinha suas limitações. Mas não era o esforço físico que preocupava. Era a expressão no rosto dele — não de dor, mas de tristeza.

    Ela desviou o olhar para Duna, pendurado inconsciente como um boneco de pano.

    — Nós fizemos isso com ele. — A culpa gotejou de sua voz como veneno, misturada com o frio que cortava o ar.

    — Continue andando — respondeu Magrot, a raiva na voz mais cortante que a ventania ao redor. — E cale a porra da boca, idiota.

    Arsena mordeu a língua, apertando os braços ao redor do próprio corpo para tentar afastar o frio que a dominava. Estava exausta, não apenas pelo esforço, mas pela presença sufocante de Magrot e pelo peso esmagador da situação.

    Era a pior companhia, na pior situação, indo para o pior lugar de todos.

    Ela sabia o que os esperava. Sabia que aquele destino não traria paz, apenas mais sofrimento.

    A pergunta escapou antes que pudesse se conter:

    — Por que você deixou a gente, Havok?

    As palavras foram levadas pelo vento, perdidas na vastidão branca ao redor. Magrot não respondeu. Talvez nem tivesse ouvido. Talvez tivesse decidido ignorar.

    Mas, dentro de Arsena, a pergunta ficou. E a ausência de resposta doía tanto quanto a tempestade.

    I

    A neve caía fina, mas constante, cobrindo a cidade em um véu branco e abafando os sons ao redor. Dante e Marcus estavam empoleirados no topo de um prédio, sentados no limite do telhado. Era uma rotina para ambos, essas rondas noturnas. A paisagem gélida oferecia pouco em termos de novidades, mas, vez ou outra, algo chamava a atenção.

    — Você está vendo o que estou vendo? — Marcus esticou o braço à frente, apontando para o horizonte. Sua voz soava hesitante, como se ainda processasse o que via.

    Dante seguiu o gesto com os olhos, estreitando-os para enxergar melhor.

    — Sim. Acho que são eles.

    Os dois ficaram em silêncio por alguns segundos, observando os vultos à distância. Marcus era mais contido, sempre relutante em compartilhar qualquer coisa sobre si mesmo. E Dante respeitava isso, talvez porque ele mesmo preferisse manter seus próprios fantasmas trancados. Especialmente os da Capital.

    Mas os vultos… Eles eram difíceis de ignorar.

    — Vindo assim, duvido que estejam atrás de problemas. — Marcus se levantou, caminhando até a outra ponta do prédio para obter uma visão melhor. — Estão longe do nosso abrigo.

    — Estão carregando alguém. Parece um homem mais velho. — Dante inclinou a cabeça, os olhos atentos. — Interessante.

    — Interessante? — Marcus virou a cabeça para encará-lo, a sobrancelha arqueada. — Você acha interessante alguém ser carregado desse jeito no frio? Eles não sabem dos Mutantes que estão rondando a cidade, nem dos surtos da semana passada.

    Dante deu de ombros, um pequeno sorriso brincando em seus lábios.

    — Está com pena deles?

    A pergunta foi direta, mas tinha um tom quase provocativo. Marcus, no entanto, não respondeu imediatamente. Sua expressão ficou séria, pensativa. Ele não era um homem de hesitar, mas a questão parecia ter mexido com algo.

    Finalmente, ele quebrou o silêncio:

    — Se um homem precisa de ajuda, eu ajudo. Simples assim. Uma cobra morde porque essa é a natureza dela. — Ele pausou, destravando a ISE que carregava. O som metálico do mecanismo ecoou alto, atravessando a noite e, provavelmente, chamando a atenção daqueles lá embaixo. — Mas um tatu não é mordido porque conhece sua própria resistência e força. E eu sou um tatu.

    Dante riu, um som baixo e rouco que quebrou um pouco da tensão no ar.

    — Um tatu-bola? Daqueles que correm girando?

    Marcus deixou escapar um sorriso torto, aquele que Dante conhecia bem, uma mistura de humor e desafio.

    — Esse mesmo.

    Dante continuou dando uma risada e saltou para frente. Marcus o seguiu. Eles desceram no como se caminhassem, mas o braço de Marcus foi segurado, e antes de tocarem o solo, as rajadas de ar se libertaram da sola. Dante se moveu adiante, desviando dos carros e partes destruídas dos prédios.

    Assim que entraram em um no meio do caminho, pararam quase cinquenta metros dos três.

    Com uma rápida observação, Marcus concluiu:

    — É o seu homem-ferro e a garota da espada.

    Dante não esperava que fossem outros, na verdade, tinha quase certeza de que eles queriam ajuda. Pelo que Marcus havia dito, nenhuma outra cidade ao redor, tirando GreamHachi havia pessoas organizadas para ajudar.

    Ele foi até onde um rombo do tamanho de uma janela e ergueu a voz no meio da tempestade, da escuridão e contrariando o que Marcus esperava.

    — Uma surra não foi suficiente para que vocês dois ficassem longe, não é?

    Não foi um tom agressivo, e sim divertido. Dante sorria ao continuar.

    — Não faço ideia do que aconteceu, mas vocês têm uma pessoa bem machucada e aposto que vieram pra que ele seja medicado. Só não estou entendendo porque vieram para cá.

    Os dois pararam e encararam ao redor, procurando onde eles estavam, mas não encontravam. Dante sabia usar o vento ao seu favor.

    — Eu não me importo com o que fizeram antes — continuou os deixando bem aflitos. — Quero apenas saber se posso confiar em vocês para levar esse homem e não precisar me preocupar com nenhum dos dois querendo a cabeça de nenhuma das pessoas que vivem comigo.

    Arsena, ela tentou dar um passo adiante, mas parou ao ouvir um estalido de metal.

    — Velhote — ela ergueu as duas mãos rapidamente. — Eu sei que… temos nossos problemas. Mas, Duna é meu mentor. Ele é como um pai pra gente. Sempre cuidou da gente. Por favor…

    — Eu sei que fiz merda. — Magrot ergueu a mão esquerda, a mão que não segurava Duna. — Sei que podem querer minha cabeça porque sobrevivi. Quero apenas que ajudem Duna, ele nunca fez mal a ninguém. Sempre protegeu as pessoas que precisavam.

    — E dois queridos alunos deles simplesmente atacaram a gente sem motivo aparente? — Dante fez uma pausa. — Sabe, o que mais acho divertido é que deve ter gente igual vocês espalhados pelo mundo inteiro. Sem saber o que é perder, sempre tentando ganhar uma maneira de vencer sem ser de maneira certa. Ai, quando acontece algo assim, vocês perdem a ferocidade. Sabe o que diferencia vocês dos animais? Pensamento.

    Marcus não tirou os dois da mira, ainda fitando-o. Mas, olhava pra Dante, sem saber onde ele queria chegar com aquilo tudo.

    — No abrigo que moramos, tem cerca de 100 pessoas agora. Se eu levar vocês lá, serão 103. O que me garante de que não fazer besteira? O que me garante que não vão ser dois lunáticos querendo uma revanche?

    — Porque… — Arsena falou alto —… porque a gente sabe. Eu sei. Eu vi a diferença. Você podia ter nos matado, nós dois. E não fez. Eu sei que se eu fizer… qualquer merda, você mata a gente.

    Dante achou engraçado.

    — Eu? Nada disso. Se eu quisesse matar vocês agora, duas balas eram suficientes.

    O rosto dos dois se estreitaram. Sabiam agora que o atirador estava presente. Marcus ficou um pouco surpreso porque eles recuaram dois passos, como se aquilo realmente fosse salvar de qualquer disparo.

    Não lembrava de ter sido tão efetivo contra nenhum deles. Mas, o medo era aparente.

    — Vou dar uma chance de conversarem com a pessoa certa — disse Dante aos dois. — E veremos o que ela vai escolher. Matar as cobras ou ser forte como um tatu.

    A neve caía cada vez mais densa, enquanto a tensão no ar parecia congelar o tempo. Dante, ainda sorrindo de canto, observava a reação dos dois à distância. Arsena e Magrot estavam visivelmente desgastados, mas seus olhares carregavam algo além do cansaço: um misto de desespero e determinação.

    Marcus manteve a arma levantada, o cano apontando firme. Não gostava do tom de Dante, muito menos da ideia de levar aqueles dois para o abrigo. Ainda assim, sabia que Dante era um estrategista, alguém que nunca falava sem um propósito.

    — O que você acha que ela vai escolher? — Marcus murmurou baixo, quase inaudível para qualquer um além de Dante.

    Dante deu uma risada curta.

    — Clara é mais esperta do que parece. Se depender dela, esses dois não vão virar problema.

    Enquanto isso, Arsena deu mais um passo à frente, as mãos ainda erguidas, os olhos fixos na direção de onde acreditava que vinha a voz de Dante.

    — Não somos idiotas — ela começou, a voz trêmula, mas firme. — Não estamos aqui para causar problemas. Eu já perdi o suficiente pra saber que não posso arriscar mais nada.

    — Ah, então agora você é altruísta? — Dante rebateu, inclinando-se levemente para fora da sombra que o escondia. — Interessante.

    Magrot rangeu os dentes, ajustando o peso de Duna no ombro.

    — Olha, você pode me odiar o quanto quiser, mas Duna não merece isso. Ele é o único motivo pelo qual ainda estamos vivos. Você quer que eu me ajoelhe? Eu faço isso. Quer que eu prometa que nunca mais volto? Eu prometo. Só salva ele.

    Dante cruzou os braços, o sorriso sumindo aos poucos. Ele observou os dois por um longo momento, o som da tempestade enchendo o silêncio entre eles. Finalmente, ele suspirou.

    — Vocês são péssimos em pedir ajuda, sabia? — Ele olhou para Marcus, que o encarava com uma sobrancelha arqueada. — O que você acha, Marcus? Matamos as cobras ou mostramos que tatu-bola sabe dividir espaço?

    Marcus deu um leve sorriso de lado, o tipo de expressão que ninguém conseguia interpretar direito.

    — Se dependesse de mim, a decisão seria mais simples. Mas você gosta de complicar tudo.

    Dante balançou a cabeça e se virou novamente para Arsena e Magrot.

    — Certo. Vou levar vocês até Clara. Ela é quem decide. Mas, aviso logo: se ela não gostar do que ouvir, não vai ser eu quem vai puxar o gatilho.

    Os dois assentiram rapidamente, como se qualquer opção fosse melhor do que o frio que os aguardava lá fora.

    — Sigam a gente — ordenou Dante, já se movendo. — E mantenham as mãos onde eu possa ver.

    Arsena e Magrot começaram a caminhar atrás deles, o peso de Duna ainda dificultando os movimentos. Enquanto seguiam, Marcus se aproximou de Dante, falando baixo:

    — Você realmente acha que Clara vai deixar isso passar?

    Dante deu de ombros.

    — Ela vai decidir o que for melhor para o abrigo. Só espero que esses dois tenham mais do que palavras para oferecer.

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