Índice de Capítulo

    Renato sentia-se revigorado. Seus machucados tinham cicatrizado e não doíam mais.

    — Precisamos sair daqui — disse ele, se levantando.

    As meninas não desfizeram o abraço. Permaneceram grudadas nele enquanto ele tentava andar.

    — Tudo bem, meninas, precisamos…

    — Não! Não quero soltar! — retrucou Mical.

    — Nem eu! — disse Jéssica, com os olhos lacrimejados. — Eu pensei que… pensei… que você fosse morrer! 

    Clara e Lírica foram as primeiras a soltar o garoto.

    — Ora, desse jeito vão sufocá-lo — disse a súcubo. — E o Renato precisa descansar. Vamos ter tempo para isso mais tarde.

    — Além do mais, precisamos lidar com eles — disse a demi-humana, olhando para o alto, na direção do enxame de soldados voadores, através da barreira. — Sabem que vamos sair e estão esperando.

    Clara suspirou, cansada.

    — Ah, droga! Mais isso! — Deu de ombros. — Se eles querem tanto assim morrer, posso ajudá-los nisso. Humanos insolentes! Depois de tudo aquilo que passamos…!

    — Certo… — respondeu Mical, não muito contente, e soltando Renato. — Soldados intrometidos…

    — Tudo bem — disse Jéssica, também soltando o garoto. — Mas não porque você falou, súcubo! Só porque precisamos pensar numa forma de passar por eles! — Olhou na direção do enxame.

    Uma das meninas, porém, permaneceu abraçando-o. Tâmara continuou agarrada às costas dele, parecendo um casco de tartaruga.

    Tinha os olhos sem nenhuma emoção.

    — Não vou soltar.

    Jéssica cerrou os dentes.

    — Vamos, solte! Saia de cima dele, sua…!

    — Não vou soltar.

    — Todas soltamos! Você não é especial, sua…!

    — Volte a falar quando conseguir pensar num adjetivo. Até lá, não vou soltar!

    — Sem pudor! Atribulada! Jezabel! Prostituta da Babilônia!

     — Oh, me ofendi! — Deu de ombros e curvou os lábios num sorriso irônico. — Não vou soltar.

    — Vamos, Tâmara, não temos tempo pra isso agora… — disse Renato, um tanto envergonhado. 

    Era um bocado raro vê-lo tímido, então Clara não deixou este detalhe escapar aos seus olhos e decidiu provocá-lo um pouco.

    — Aposto que o Renato tá gostando. Os seios de Tâmara estão sendo pressionados contra as costas dele…

    A garota dos olhos âmbares sorriu de forma maliciosa, e pressionou seu corpo ainda mais, apertando-o contra Renato.

    Tâmara deixava-o confuso.

    Ele não entendia a personalidade dela totalmente. Tinha algo nela que o intrigava e até assustava, mesmo assim ela parecia carinhosa, às vezes. Um tanto possessiva e ciumenta de um jeito quase doentio. Uma mistura intrigante de doçura e ardor; chocolate e pimenta.

    Ainda assim, era inegável que ela gostava dele. Ele só não entendia bem o porquê e nem quanto.

    Seus pensamentos foram interrompidos de forma abrupta.

    Tâmara foi arrancada de suas costas violentamente, puxada e jogada para longe. A garota rolou sobre o chão acidentado, cheio de escombros, colidindo contra as pedras, até bater contra um grande pedaço de parede e parar.

    — Lírica?! — Renato ficou surpreso com a ação da demi-humana.

    — Não suporto a atitude mimada dessa garota!

    — Mimada? — Tâmara se levantou, batendo a poeira da roupa. Ainda vestia algumas partes da armadura, então não se machucou tanto. Mesmo assim, estava cheia de arranhões. Limpou o sangue do nariz usando o dorso da mão. Puxou uma faca da bainha na coxa. — Vou te mostrar a mimada!

    As duas correram uma na direção da outra. Em seus rostos, expressões de raiva. Estavam prontas para lutar. Mas Renato se meteu no meio delas.

    — Esperem! Parem com isso!

    — Mas essa garota tá me irritando!

    — Essa menina-gato fica me provocando! Vou cortar ela em pedacinhos!

    — Quero ver você tentar, sua doida!

    — Doida? Ah, sua vira-latas pulguenta! — Tâmara avançou em direção à Lírica.

    Renato a segurou. Olhou-a com raiva. Depois suspirou, cansado.

    — Já falei para pararem.

    Ao ver os olhos chateados de Renato, a garota hesitou.

    Dúvida surgiu em seu olhar, e depois o medo.

    — Desculpe! Desculpe, Renato! Não me odeie! Por favor, não me odeie! Eu não suportaria se você me odiasse!

    — Ei, calma, eu não te odeio, tá bom? Só… vamos tentar não…

    — Tem certeza, Renato? — Clara ergueu uma sobrancelha. — Parece que tô vendo um pouco de ódio vindo de você.

    Ele só balançou a cabeça e suspirou.

    — Precisamos passar por eles.

    — Não tem outro jeito — disse Jéssica, trocando o carregador de seu fuzil. — Vamos abrir caminho no meio deles à força!

    Os soldados, em suas armaduras flutuantes, apenas observaram em silêncio quando Renato e as meninas removeram, arrastando para o lado, aquele pedaço de parede da entrada.

    Nem se moveram quando eles finalmente atravessaram a barreira mágica e saíram para a rua.

    Estavam apenas flutuando, estáticos, olhando fixamente para o pequeno grupo.

    Tâmara, enrugando a testa, mirava seu fuzil de tamanho fora do comum.

    Renato segurava sua espada do pecado. 

    Clara também empunhava sua espada, e prestava atenção em tudo, para não deixar passar despercebido qualquer mínimo movimento dos soldados.

    Porém, eles nada fizeram.

    Uma risada pôde ser ouvida. Era uma gargalhada alta, de alguém que realmente estava se divertindo.

    Uma figura masculina saiu de trás de um dos soldados. Estivera tão bem escondido, que foi como se ele tivesse se materializado ali repentinamente.

    Um relâmpago rasgou o céu, e nuvens negras se acumulavam, como prenúncios de tormenta.

    Aquela criatura caiu no chão, de pé, e olhou para Clara; depois para Renato.

    Tinha os olhos completamente negros. Não havia esclera branca e nem íris.

    Sorriu de maneira divertida, como uma criança escondendo um segredo malicioso.

    Era grande. Provavelmente de altura superior a dois metros. De sua cabeça, um par de chifres retorcidos se projetava para o alto. A pele, completamente preta, parecia feita do próprio escuro.

    Em suas costas, havia um par de asas lamentáveis. Finíssimas, quase transparentes; gastas; feitas de couro. Estavam rasgadas em algumas partes. Pareciam incapazes de manter alguém no ar.

    Mesmo assim, a criatura as balançava orgulhosamente.

    — Olha só pra vocês… parecendo um bando de gatos escaldados! — zombou. — Sentem medo até da própria sombra!

    A pressão no ar se intensificou. A brisa soprou, e trouxe de longe o cheiro de lixo velho e apodrecido.

    Mical não pôde acreditar em seus olhos. Aquela criatura parecia algo saído direto de seus piores pesadelos.

    A bazuca estava apoiada em seu ombro, e ela direcionava a mira para aquela criatura sinistra. As mãos trêmulas evidenciavam seu terror.

    — Mantenha a calma, Mical! — disse Clara, entredentes.

    A garota apertou o gatilho.

    O disparo de energia cortou o ar, indo direto para a criatura.

    Mas o monstro, despreocupadamente, ergueu um dos braços e segurou a bola de energia com uma mão, e a redirecionou para o alto, desviando sua trajetória.

    Depois olhou diretamente para Mical.

    — Cuidado, garotinha. Você pode se machucar com isso. — E deu de ombros, como se tudo aquilo tivesse pouca importância.

    Renato ouviu um zumbido irritante, e uma mosca pousou em seu nariz. Ele espantou o inseto. O bichinho ficou voando em volta da cabeça dele, com aquele barulho irritante.

    Até que mais moscas surgiram. Era uma nuvem de insetos que voavam em volta deles.

    — Renato, finalmente posso te ver de perto! — A criatura agitou as asas em exultação. — Devo dizer que aquela Tercina que lutou nas Areias da Segunda Morte foi empolgante! Eu acompanhei cada movimento seu, de longe, é claro.

    O garoto franziu o cenho e lançou um olhar desconfiado.

    — Quem é esse cara?

    — Ele tem vários nomes — respondeu Clara. — Senhor das Tempestades, das doenças, da cura… mas sua  principal alcunha é…

    — Senhor das Moscas — Ele interrompeu Clara. Curvou os lábios, e seus caninos protuberantes puderam ser vistos. — Baelzebub, a seu dispor! — O demônio fez uma mesura educada.

    Renato puxou em sua memória. Não tinha mesmo uma mosca irritante, zumbindo em seus ouvidos, no dia daquela luta?

    — Então agora você trabalha para a Força de Defesa Mágica do Japão? — Inquiriu Clara. Ela tinha o olhar soberbo e confiante de sempre, mas Renato notou algo estranho. Seria uma pequena fagulha de medo no olhar dela?

    O demônio de ombros.

    — Eles pagam bem.

    — E o que quer conosco?

    O demônio riu.

    — Ah, Clarinha, eu já superei o passado. Não estou mais com raiva. Fique tranquila. E pra falar a verdade, eu achei bem feito o que aconteceu com o Satanakia.

    — Então você e Baalat finalmente se acertaram? Ela parou de te achar… como era mesmo a palavra? Medonho? Assustador? Repulsivo? Acho que foi…

    — Eu e ela estamos nos acertando. Principalmente agora com rumores de guerra. A força de um naz-haîn é sempre bem vinda! Sabe como são essas questões políticas.

    “Então Baalat está manipulando esse cara?” Clara pensou. “ Coitado. Ela vai usar ele como um brinquedo, depois descartar sem nenhuma piedade”.

    — Vocês fizeram uma grande bagunça aqui — disse Baelzebub, olhando o prédio destruído. — Mas não vou impedir vocês de partirem. Considere isso um sinal de boa vontade e camaradagem entre demônios. Mas eu quis vir aqui, mesmo assim, porque fiquei curioso. Então este aí ao seu lado é o grande Condutor? Muitos consideram você como um tipo de anti-cristo, sabia, garoto? O Grande Maou! Anjos e demônios poderiam se unir só pra te matar. Seria uma coisa… espetacular!

    — Então você sabe. Abigor te contou?

    — Ah, não, Clarinha. É claro que não. Eu e aquele cara não nos damos bem. Você sabe disso. — Deu de ombros. — Mas isso é coisa do passado, aparentemente. Ouvi dizer que ele já está morto. Oh, você não sabia? — Gargalhou. — Precisa se atualizar mais sobre os assuntos infernais, Clara.

    Ela deu de ombros.

    — Não é como se eu me importasse com o Abigor. Se ele morreu, é só mais um motivo pra comemorar. Um lixo a menos no mundo! Agora, se me dá licença, precisamos ir.

    — Ah, mas você nem saciou minha curiosidade ainda! Me diga, Clara, do que você tem medo?

    — O que quer dizer?

    — Ora, logo você esperando tanto para, você sabe… chegar às vias de fato? Consumar um pacto com o Condutor não te tornaria a súcubo mais poderosa de todas? Talvez até supere Lilith. Ou talvez… seu corpo não suporte tanto poder e se desintegre. Não é uma aposta interessante?

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