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    Recostada em uma árvore, seu novo rinoceronte de estimação rondava a área próxima ao templo sem nenhum descanso. Não que ele tivesse escolha, também. Kalira não era uma mulher muito fã do livre-arbítrio. Desde que começou o ritual e expandiu sua magia, sentiu que havia a presença de outros sulfurizados nas proximidades. Embora o druida não fosse o mais sábio, ele tinha ciência que deveria deixar suas criaturas de vigia para caso algo acontecesse.

    — O filho da puta já deve saber que esse templo existe — disse Kalira, bufando. — Assim que anoitecer, ele deve trazer toda sua turma pra cá. Ele deve tá achando que eu nasci ontem!

    Em outras circunstâncias, a bruxa já teria dado um jeito naquelas criaturas, mas não só tinha usado muita magia para criar o ritual, como seu corpo novo não estava completamente habituado com a quantidade de poder que poderia armazenar. A cada segundo, fragmentos de sombra que compunham o cenário se deslocavam até a sua própria, recuperando seu poder gradativamente. Mesmo assim, demorariam horas até estar completamente recuperada.

    — Eles ainda não sabem que estou enfraquecida. Devem estar cautelosos.

    Para alguém acostumada a caçar os outros, era estranho estar na posição de uma presa em observação. Aquilo poderia ficar perigoso rápido demais, era necessária uma medida provisória emergencial.

    Levantando-se casualmente, ela se dirigiu até o outro lado do templo. Enquanto seu rinoceronte a acompanhava, ela conseguia sentir três sulfurizados fazendo o mesmo percurso, mantendo furtividade através das copas das árvores. Kalira até pensou em entrar, mas sabia que estaria presa do lado de dentro caso as criaturas entrassem e isso comprometeria seu experimento.

    — Malditos! Uma mulher nem pode se divertir sozinha mais?

    Ao chegar na parte de trás do templo, ela pegou um bastão de giz e fez um enorme círculo no chão. Era necessário tomar muito cuidado ao realizar um círculo mágico ali, pois qualquer fragmento de energia obscura no solo geraria uma reação violenta. Felizmente, sua natureza como bruxa se recusava a deixá-la sem opções em casos assim.

     Com sua unha afiada, ela fez um corte linear em toda sua extensão do antebraço. Claramente era doloroso, mas não era nem de perto a coisa mais sinistra que uma bruxa já fez. As gotas de sangue atingiam o solo, se misturando ao solo sulfuroso.

    — Regra Universal: Proteção Cinética

    As palavras que saíram da sua boca foram simples, quase inaudíveis, mas o que importava era o que estava oculto entre elas. Desde a era da Alta Magia, poucas pessoas tinham conhecimento do poder de manipular as regras da existência através da sua estrutura. Condensando textos quilométricos costurados através de profunda compreensão mágica e subtextos de energia Arcana que teciam as regras do universo, tudo isso em um mero conjunto de palavras. Qualquer um poderia dizer “Regra Universal”, mas pouquíssimos poderiam conjurá-la de fato.

    Esse conhecimento era algo que tornava Kalira alguém realmente invejável entre as bruxas, apesar da maioria odiá-la por conta da sua personalidade. Embora parecesse algo simples para a grande maioria, ela demorou cerca de quinze anos para aprender uma Regra Universal básica como aquela.

    Mexer com o tecido do espaço-tempo não era algo que vinha sem consequências. Por causa disso, todo o restante da sua magia precisaria ser acumulado novamente do zero. Quanto mais poderosa fosse a Regra Universal, mais custosa ela seria. Mas aquilo não era problema para ela, pois dentro da área do círculo, um campo cinético invisível foi criado. A mulher estendeu a mão, mas foi como tocar em uma chapa densa de metal.

    — Perfeito! Rhino, segura as pontas para mim do lado de fora, por favor!

    Kalira se sentou no chão e cruzou as pernas, assumindo a posição de meditação. Fechando os olhos e respirando fundo, seu centro espiritual começou a estimular a absorção e produção de magia em seu corpo. De repente, as sombras do ambiente começaram a mudar de posição, todas apontando para a onde a bruxa residia.

    Ao sentir o distúrbio na energia do ambiente, os sulfurizados identificaram imediatamente: ela estava reabastecendo sua magia. E era o momento onde ela estaria mais fraca. Sem hesitar, as criaturas saltaram das árvores e correram na sua direção. Antes que pudessem realizar um golpe, o rinoceronte se adiantou e cravou seu enorme chifre no sulfurizado que estava mais à frente, abrindo um rombo do tamanho de uma bala de canhão em seu peito, matando-o instantaneamente.

    Os outros quatro sulfurizados passaram direto pelo animal e dirigiram seus golpes na direção de Kalira, apenas para se esbarrarem na parede invisível colocada por ela. Por alguns segundos, ficaram sem entender o que tinha acontecido, até resolverem golpear novamente. Havia alguma coisa errada ali.

    Um deles recuou alguns passos, fechou os punhos e os envolveu em chamas, realizando um poderoso soco que emitiu um flash seguido de uma explosão intensa, queimando parte da vegetação no ambiente. Mesmo assim, nem um único grão de terra parecia ter se movido dentro do círculo. Aquilo o deixou confuso, tentando encontrar uma linha lógica de como deveria prosseguir.

    Para a infelicidade daqueles quatro, o rinoceronte estava pronto para atacar mais uma vez. Com o corpo do seu aliado ainda preso no chifre, a criatura avançou brutalmente contra os seus alvos. Mesmo assim, eles não iriam cair sem uma luta.

    Dentro do domo, Kalira mergulhava profundamente nas suas sombras. Embora tudo parecesse favorável para recuperar seus poderes, ela sabia que não teria mais do que uma hora. Uma Regra Universal tem seu poder proporcional a força do conjurador. E como Kalira estava enfraquecida, não teria muito tempo de segurança. Aquilo só a permitiria recuperar uma pequena porcentagem da sua magia.

    — Não tenho muito o que fazer além de esperar.

    Então, uma hora se passou. A Regra Universal foi desfeita e a bruxa abriu os olhos novamente. Suas mãos estavam tão escuras quanto obsidiana, o que a fez esboçar um suave sorriso. Porém, sua alegria foi momentânea quando viu o que estava na sua frente.

    Seu querido rinoceronte residia recostado no muro, morto e com ambos os chifres quebrados. Seus olhos estavam fora do lugar, sua mandíbula quebrada e tinham dois enormes buracos em seu abdômen. Do seu lado, dois sulfurizados residiam mortos. Ambos completamente dilacerados. Ela se ajoelhou perto do animal, tocando-o solenemente. Embora fosse uma filha da puta sem qualquer senso de humanidade, ver um animal inocente tendo um destino horrível daquele a deixava um pouco triste.

    Não demorou muito até ela escutar passos se aproximando da sua localização. Cada um vindo de cada canto, para garantir que não houvesse como escapar. Kalira lamentou, pois, a quantidade de magia acumulada era tão pouca que no instante que se teletransportasse, ficaria sem magia novamente. Era um risco que não poderia correr.

    Os sulfurizados estavam diferentes. Não apenas com sua cor pálida e veias douradas, mas com os punhos em uma coloração incandescente, como se fosse aço ao sair do forno. Eles pareciam bem diferentes dessa vez: um era o que sobrou de uma mulher, com raízes trançadas no lugar do cabelo que se moviam de forma sinuosa. O outro era tão grande quanto o rinoceronte, com a pele do seu enorme braço translúcida, onde dava para ver as várias tubulações vegetais que conduziam seu sangue enegrecido por toda sua extensão. O terceiro tinha uma fisionomia mais magra, mas estranhamente usava uma capa.

    — Espero que vocês saibam o que estão fazendo…espera, não tem como. São apenas marionetes servindo a um mestre.

    Então, o sulfurizado de capa deu um passo a frente, erguendo um dedo na altura dos seus olhos.

    — Atualmente, estamos em processo de evolução contínua. Como somos as versões mais antigas, desenvolvemos a comunicação e características mais únicas.

    A bruxa arregalou os olhos, surpresa.

    — Gente! Tô passada! Achava que só aquela ruiva falasse.

    — Ela só é a nossa mais nova irmã — respondeu a sulfurizada com raízes no lugar do cabelo. — Não acho justo que ela tenha conseguido de cara o que demoramos meses para obter! Ela já nasceu falando e com as dádivas! E ainda matou o miserável que o nosso mestre queria! Eu tô muito puta!

    Naquele instante, Kalira começou a cogitar se os sulfurizados serviriam de forma tão otimizada como um exército de mortos-vivos. Consentimento e livre-arbítrio de criaturas inferiores eram coisas que a bruxa considerava superestimado e uma decadência dos valores tradicionais das gerações anteriores.

    — Aliás — A sulfurizada continuou. — Eu vi que você arrastou um de nós conosco junto com aquele humano. O que você fez com eles? Queremos ambos de volta.

    A bruxa colocou as mãos nas costas e deu de ombros.

    — Coisas.

    O sulfurizado de capa ergueu a sobrancelha.

    — Isso não responde nossa pergunta. O que você fez com eles? Melhor responder enquanto estamos sendo bonzinhos!

    — Mas nossas ordens não tinham sido para eliminar a bruxa a qualquer custo? — perguntou o grandão.

    Os três se entreolharam por alguns segundos. Kalira deu um passo para trás, cogitando todas as formas de escapar.

    — É, você tá certo — respondeu o encapuzado. — Foi mal, bruxa! Vamos te matar nesse momento. Por favor, tenta não fazer um drama sobre isso, beleza?

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