Índice de Capítulo

    Clara e Marcus desceram até o primeiro andar onde Jix, Degol, Meliah e Clerk esperavam. Eles haviam montado uma sala improvisada, com paredes erguidas inacabadas, mas sendo suficiente para abrigar uma mesa e cadeiras. Jix havia deixado um mapa em cima da mesa, um que adquiriu com Dante meses atrás.

    Assim que sentaram todos, Clara apontou para Meliah.

    — Estiver no reservatório ontem e hoje cedo. Vi uma coisa diferente. Haviam muitas pessoas caminhando sozinhas, com pequenas bacias, outras mais largas. Mas o que me deixou assustado foram os olhos, eram todos brancos.

    — Estavam desacordadas?

    — Eles andavam como um bando de animais amarrados – respondeu Meliah, claramente desconfortável. Cruzou os braços, se afastando um pouco da mesa. – Não quero nem pensar o que aconteceu lá, mas não é algo que nós consigamos fazer nada a respeito. Não sei nem o que…

    A sala improvisada era iluminada por velas espalhadas pelos cantos, criando sombras dançantes nas paredes inacabadas. O frio parecia se infiltrar por cada fresta, mas o grupo ignorava o desconforto, concentrando-se na conversa urgente. O mapa na mesa, desgastado e manchado pelo tempo, parecia ser o único elo entre eles e a realidade caótica do mundo lá fora.

    Clara manteve os olhos fixos em Meliah enquanto ele descrevia o que viu no Reservatório. O desconforto do homem era palpável, refletido em sua postura tensa e no olhar evasivo.

    — Eles andavam como um bando de animais amarrados — repetiu Meliah, o tom de voz carregado de inquietação. — Não quero nem pensar o que aconteceu lá. Não é algo que consigamos resolver.

    O silêncio que se seguiu foi cortado pela voz grave de Marcus:

    — GreamHachi.

    Todos os olhares se voltaram para ele, a menção ao Aquário Feudal parecendo trazer uma nova gravidade à conversa.

    — O Aquário Feudal? — Jix inclinou-se sobre a mesa, os olhos semicerrados. — Por que acha que são eles?

    Marcus respirou fundo, os dedos tamborilando na lateral da cadeira.

    — Magrot e Arsena nos deram pistas, mesmo que indiretamente. Eles mencionaram como a cidade usa pessoas como ferramentas, manipulando-as. Aqueles olhos brancos… — Ele fez uma pausa, encarando cada um dos presentes. — Não são do Aquário. São sobreviventes, como nós, mas controlados.

    O desconforto se espalhou pela sala como uma onda. Clara apertou os punhos sobre a mesa, tentando processar o que estava ouvindo. A ideia de alguém manipular mentes humanas era tão absurda quanto aterrorizante.

    — Eles não aceitam ninguém de fora — continuou Marcus, a voz carregada de amargura. — Nem crianças, nem velhos, nem enfermos. Aquela cidade é um lugar fechado. Meus pais e irmãos morreram por causa deles.

    Degol, que até então havia permanecido em silêncio, explodiu:

    — Mesmo que não aceitem, como? — Sua voz estava cheia de raiva. — Por que as pessoas aceitariam isso?

    Marcus o encarou, a expressão endurecida. Sua resposta veio com uma calma inquietante:

    — Porque, quando não há escolha, você aceita qualquer coisa. Fome, frio, desespero… tudo isso te faz acreditar que qualquer alternativa é melhor. GreamHachi oferece isso. Eles te tiram o que resta de humanidade e te transformam em uma ferramenta. E se recusam, morrem.

    Meliah desviou o olhar, visivelmente perturbado. Jix permaneceu calado, mas o maxilar trincado denunciava o esforço para conter a própria indignação. Clara finalmente falou, sua voz baixa, mas carregada de determinação:

    — Precisamos entender o que está acontecendo lá. Não podemos ignorar isso. Se eles estão se aproximando, se estão usando essas pessoas… — Ela fez uma pausa, olhando para o grupo. — Pode ser só o começo.

    — Não tem o que fazer numa situação onde temos tantos para proteger — disse ele, finalmente quebrando o silêncio. Sua voz era grave, mas controlada, como alguém que sabe que não pode ceder ao pânico. — Luma também está lá fora. Ela tem ficado na casa, mas as coisas estão saindo do controle. Precisamos trazer todos para cá e proteger o que é importante.

    Clara estava sentada ao lado de Marcus, mas seu olhar estava distante, fixo em um ponto qualquer da parede. Quando Degol falou, ela assentiu lentamente, mas sua expressão carregava um peso evidente.

    — Não está errado — ela respondeu, voltando sua atenção para o mapa. — O problema é essa tempestade. O inverno já deveria estar chegando perto do fim. Não temos mais de onde tirar alimentos, nem de onde tirar carne.

    Marcus, que até então estava em silêncio, levantou a cabeça, sua voz cortando o ar com frieza:

    — A água deles congelou. — Ele apontou para uma área no mapa, o dedo firme sobre a marcação de GreamHachi. — Eles sempre tiveram lagos, foi o que meu pai me dizia. Grandes. Mas devem ter ficado congelados. Sem energia, sem água, sem comida. Estão procurando maneiras de não saírem de sua cultura de merda, mas fazendo com que as pessoas aqui fora façam tudo para eles, e no final, vão descartá-las como lixo.

    Sua voz endureceu, e seus olhos escuros fixaram-se nos outros presentes.

    — Não importa quanto nós tentamos, nem o que prometerem, nada disso importa para aqueles desgraçados. E não duvido de que esse plano tenha vindo de um daqueles bastardos que acham que mandam em tudo.

    Ele fez uma pausa, virando-se para Clara.

    — Clara, fale sobre a Hidrelétrica.

    Clara respirou fundo, cruzando os braços sobre o peito. A menção da Hidrelétrica trouxe memórias que ela preferia manter enterradas. Seus ombros enrijeceram, e por um momento, ela desviou o olhar, como se tentando encontrar forças para falar.

    — GreamHachi tem um representante do lado de fora — começou ela, sua voz baixa, mas firme. — Um que nem mesmo Marcus e eu sabemos quem é. Ele sempre caminha perto da Zona Cega, bem longe daqui, mas tem um rosto oculto por um tipo de máscara branca com um sorriso desenhado em sangue. É uma aberração. Já o vimos algumas vezes. Ele não é do tipo de conversa.

    Jix, sentado na ponta da mesa, inclinou-se para frente, seus olhos estreitando-se.

    — E por que o encontraram? — perguntou ele, sua voz carregada de curiosidade e preocupação.

    Clara hesitou, mas então começou a explicar, sua voz ganhando intensidade:

    — Porque antes de virmos parar aqui, tentamos morar lá. A ideia de ter energia sempre foi algo que nós dois queríamos oferecer, mas quando chegamos lá, vimos que o lago que GreamHachi possui é das águas que caem da montanha, mas que passa por ali. — Ela moveu o dedo pelo mapa, traçando o caminho do rio até a marcação da Hidrelétrica. — Bem ao leste de GreamHachi, mas não distante de nós. Desistimos porque esse cara sempre aparecia.

    Ela ergueu os olhos para os outros, seu tom carregado de frustração e um toque de medo.

    — Ele tem uma habilidade diferente, uma que nem mesmo Marcus e eu poderíamos juntos enfrentar. Nem mesmo se juntássemos todos aqui dentro poderíamos tomar.

    O ar parecia mais pesado. As palavras de Clara haviam plantado uma semente de inquietação em cada um dos presentes. Marcus olhou para ela, seus olhos firmes, mas sua expressão demonstrava que ele compartilhava do mesmo desconforto.

    Clara ergueu as mãos, fazendo questão de enfatizar o ponto:

    — Não sei como ou por quê, mas ele pode controlar duas habilidades diferentes.

    Degol quebrou o silêncio, os olhos fixos no mapa desgastado sobre a mesa:

    — Duas habilidades? Como isso é possível? Ninguém deveria ser capaz de manipular mais de uma… Isso não é natural.

    Clara respirou fundo, sua voz mais firme agora:

    — Não é natural. É algo que vai contra tudo o que sabemos sobre mutações. E ainda assim, ele faz isso. — Ela apontou novamente para o local no mapa onde a Hidrelétrica estava marcada. — Ele controla as águas e o gelo. Já vimos ele congelar o que parecia ser um rio inteiro em questão de segundos. E, ao mesmo tempo, pode manipular o metal como se fosse uma extensão do próprio corpo.

    Jix inclinou-se para frente, os olhos arregalados:

    — Isso é… insano. Ele é uma arma viva.

    — Exato — confirmou Clara, sua expressão carregada de gravidade. — Quando Marcus e eu tentamos negociar com eles, achamos que seria possível estabelecer algum tipo de acordo. Energia pela nossa cooperação. Mas tudo o que vimos foi a tirania de um grupo que não se importa com ninguém além de si mesmo. E esse representante é o reflexo perfeito disso. Ele não é humano. Ele é uma aberração criada para garantir que ninguém se atreva a desafiá-los.

    Marcus finalmente se manifestou, sua voz grave e controlada:

    — Ele não apenas controla essas habilidades. Ele usa isso para aterrorizar. Quando chegamos lá, vimos como ele usava o gelo para prender pessoas vivas, deixando-as congeladas, incapazes de se mover. E depois usava o metal para… — Ele parou, sua expressão endurecendo ainda mais. — Não precisamos entrar nos detalhes. Basta dizer que ele transforma corpos em ferramentas.

    O impacto das palavras de Marcus foi sentido por todos. Meliah recuou na cadeira, seu desconforto evidente. Degol apertou os punhos, enquanto Jix parecia lutar para conter a própria raiva.

    — Então, o que fazemos? — perguntou Degol, a voz baixa, mas carregada de determinação. — Não podemos simplesmente ignorar isso. Mas também não podemos lutar contra algo assim.

    Clara olhou para ele, seu olhar firme:

    — Não podemos lutar diretamente. Não agora. Mas precisamos proteger o que temos. Trazer todos para cá, como você disse, é a prioridade. E precisamos entender mais sobre como ele funciona. Se esse representante está envolvido, é porque GreamHachi está ficando sem opções. Eles precisam de nós mais do que nunca, e isso pode ser nossa única vantagem.

    — E se não houver vantagem? — perguntou Meliah, finalmente quebrando seu silêncio. — E se for apenas uma questão de tempo até que eles nos alcancem?

    Clara não respondeu imediatamente. Olhou para cada um deles, seu olhar determinado.

    — Então, teremos que encontrar uma forma. Sempre encontramos.

    I

    A neve caía incessantemente, cobrindo o solo e as construções em uma camada espessa e silenciosa. O vento gelado uivava entre as estruturas abandonadas, como um lamento fantasmagórico de tempos melhores. No centro de tudo isso, uma gigantesca hidrelétrica se erguia como um colosso adormecido. Suas torres de metal enferrujado eram atravessadas por pontes largas e decadentes, com, pelo menos, cinco metros de largura, que se estendiam sobre um abismo. Era por ali que, em dias melhores, a água fluía em cascatas estrondosas, mas agora tudo estava congelado, transformado em um mar de gelo estático pela implacável tempestade.

    No meio da rua coberta de neve, Dante parou, os olhos fixos na figura à sua frente. Um homem de máscara branca, grotesca, com um sorriso vermelho desenhado em sangue seco, estava parado como uma estátua à espera, irradiando uma presença inquietante. Sua postura era relaxada, mas o poder que emanava dele era inegável, como uma sombra opressora que pairava no ar.

    Cerberus soltou uma risada baixa e zombeteira.

    — Oh, parece que temos mais um idoso por aqui — provocou, apontando para Dante. — E, pelo visto, não está desesperado por comida.

    Dante respondeu com uma risada leve, mas seus olhos nunca deixaram o mascarado.

    — Parece que aqui é o lugar que me falaram. — Ele olhou para a imensa construção atrás do homem. — Uma grande hidrelétrica cheia de recursos. E dominada por uma máscara que parece saída de um conto de fadas.

    O mascarado inclinou levemente a cabeça, como se analisasse Dante com interesse genuíno.

    — Veio de algum lugar em particular? — sua voz era grave e firme, mas sem arrogância, como a de alguém acostumado a ter o controle. — Ou está apenas procurando um lugar para morrer em paz? Muitos vêm até mim com esse objetivo. Matar aqueles que um dia acharam ser dignos de pisar dentro de GreamHachi.

    Dante deu um passo à frente, afundando levemente na neve. Seu sorriso permaneceu no rosto, mas havia algo afiado em seu olhar, algo que o mascarado não deixou de notar.

    — Bom, acha que não posso te matar aqui e agora?

    A risada do mascarado foi profunda e ressoante, ecoando pelo vazio da rua como o estalo de gelo se partindo.

    — Eu poderia dizer que me venceria quando o inferno congelasse — ele respondeu, gesticulando levemente para a paisagem ao redor. — Mas já estamos nele.

    Dante também riu, o som cortando o frio como uma faca. Mas sua risada morreu rapidamente, e a expressão em seu rosto se endureceu.

    — Então, homem mascarado, que tal fazer uma aposta irrecusável? — A atmosfera mudou em um instante. Energia Cósmica começou a fluir de Dante, emanando de seu corpo como uma onda invisível, mas avassaladora. A força era tão intensa que o mascarado deu um passo involuntário para trás, sua postura momentaneamente abalada.

    O sorriso de Dante desapareceu, e sua voz soou como um trovão abafado.

    — Vamos nos bater até que o outro pague pelos próprios crimes. Eu, por ter deixado todos vocês soltos por aqui, e você, por escravizar pessoas que só querem um lugar para ficar.

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