Palavras do autor: A partir daqui, iniciamos uma nova fase. O Livro V: Guerra e Pestilência. E muitas coisas do passado vão retornar. Algumas perguntas ganharão respostas. A trama se aproxima, cada vez mais, de seu ápice.
Meus agradecimentos a todos aqueles que acompanham esta história comigo. Não se esqueçam de deixar comentários; eles são importantes.
Sem mais delongas, vamos ao capítulo:
Capítulo 131: Irina e os Pickpockets
Renato estava sentado confortavelmente no assento do avião.
Em seu ombro direito, a cabeça de Mical repousava. Ela dormia tranquilamente. O ombro esquerdo, era Tâmara quem fazia de travesseiro.
Com as duas meninas coladas a ele, o cheiro do xampu delas chegava em suas narinas, fazendo cócegas.
O garoto também estava cansado e queria dormir, mas a preocupação com sua irmã era maior. Então, pegou o celular para ver se ela tinha visualizado sua mensagem.
Irina era sempre imprevisível e vivia ocupada. Falar com ela era quase tão difícil quanto falar com seus pais.
Abriu o TalksApp, e lá estava, na janela de conversa com ela, um link de uma notícia escrita em inglês seguida de um monte de emoji de risada.
Abriu a notícia. Clicou em traduzir para o português, e o que leu o fez rir:
“Garota brasileira aterroriza batedores de carteira em Londres”.
Também tinha um vídeo onde ela dava entrevista para alguns repórteres, falando alguma coisa em inglês. Renato entendeu um pouco. Aparentemente, alguém tentou roubar ela, e ela percebeu, perseguiu o azarado delinquente por todo o metrô de Londres, e quase fez picadinho dele usando como arma uma garrafa de Coca-Cola quebrada.
No final, ela virou para a câmera a falou em português:
— Esses pickpockets safados acham que me assustam? Podem vir, seus comédias! Eu cresci no Brasil! Da próxima vez, eu que vou roubar vocês, seus motherfuckers!
Ver a garota brava daquele jeito, gritando, gesticulando com os braços, fez Renato dar risada. Ela era pequena, de aparência frágil, tinha uma mecha azul que descia pela lateral da cabeça e um lacinho rosa que mantinha seu rabo de cavalo no lugar. Apesar da aparência de princesa, tinha o vocabulário de alguém que, certamente, teria uma tornozeleira no pé.
— Eu vi! O Renato estava rindo enquanto olhava pro celular! Tá rindo de quê, hein? — Tâmara lhe direcionava um olhar acusador. — Aposto que tá falando com mulher!
Clara se materializou diante deles. Carregava um sorriso esquisito. Aquele claramente seria o sorriso de algum vilão de filme de terror dos anos oitenta.
— Então o Renato tá aí todo animadinho falando com mulher pelo celular?
O rapaz teve a impressão de ver uma das pálpebras dela tremer.
Nessa hora, Mical ergueu a cabeça, meio sonolenta, levou a mão sobre os olhos, para protegê-los da luz excessiva.
— Sonhei que o Renato estava falando com mulher pelo telefone…
Até Lírica e Jéssica se aproximaram, e não pareciam muito felizes.
— Ah, não é isso… — Renato pareceu desconcertado.
“Essas meninas acham que eu sou algum tipo de Don Juan, aparentemente!” pensou ele. “Mal sabem elas que eu nem sei falar com uma mulher direito! Afinal, por que elas gostam de mim? Deve ser algum tipo de trolagem.” Ele lançou um olhar ressabiado. “Deve ter algum problema com elas…”
— É só a minha irmã — respondeu.
— Irmã? — Mical franziu o cenho, com uma expressão chorosa. — Você não disse que tinha uma irmã!
Clara sentou-se no banco da frente, olhando diretamente para Renato. Ergueu a taça de vinho, simulando um brinde, e bebeu.
— Ai, ai, que constrangedor… — disse ela. — Como eu posso contar para essas garotas que eu já sabia disso?
— Sabia?! — Tâmara se levantou de seu assento, de maneira súbita, quase hostil. Pegou sua garrafinha com suco de laranja sobre a mesa e ergueu o braço, copiando o movimento de Clara. Porém, de forma mais desajeitada. — E por que não contou? A existência de uma irmãzinha, ou melhor, de uma cunhada é algo importante para todas nós!
— Ah, sabe como é, né? Eu e o Renato temos uma proximidade um pouco maior…
O garoto achou melhor interromper as duas, ou a situação poderia evoluir rapidamente para agressões físicas. Elas eram mesmo todas meio doidas.
— É que a gente estava sozinho na hora — disse ele, — e o assunto só surgiu.
— Por que vocês estavam sozinhos? — A demi-humana ergueu uma sobrancelha.
— É! E ficaram sozinhos por quanto tempo? — inquiriu Tâmara.
— Estávamos sozinhos fazendo coisas inomináveis e estarrecedoras! Até Deus deve ter fechado os olhos de constrangimento naquele dia ao ver as coisas que fizemos! — respondeu Clara, se levantando e estufando o peito.
— Inomináveis e estarrecedoras? — Mical repetiu quase chorando.
Jéssica pôs a mão sobre o ombro da irmã.
— Pare de chorar, Mica, e pegue sua bazuca! Vamos ver o que é inominável e estarrecedor!
Renato coçou a cabeça.
— Agora seria um bom momento para ser possuído por Arimã… — disse ele.
A voz da criatura soou em sua cabeça:
“Me deixe fora disso. Se tem uma coisa na Criação que eu não tenho nenhuma vontade de ver de perto, é maluquice de mulher ciumenta. E aí tá cheio disso.”
Renato suspirou desesperançoso.
“A menos que me deixe matar alguém… aí a gente pode…” A voz de Arimã retornou.
— Cale a boca! — respondeu Renato.
Todas as meninas olharam para ele ao mesmo tempo.
— Tá mandando a gente calar a boca? — Clara franziu o cenho. Parecia indignada.
— Ah, não.. não foi…
— Porque eu tô mesmo precisando explodir alguma coisa… — Ela olhou na direção das partes baixas do rapaz, e passou a língua nos lábios, como um predador olhando para uma presa.
Tâmara puxou seu fuzil, que estava acoplado em suas costas, e apontou a arma para Clara.
— Espera aí! Você não vai explodir nada no Renato não! Eu te protejo, Renato! — E então ela direcionou a arma para o garoto. — Mas ela tá certa! Não manda a gente calar a boca não! — E depois mirou novamente em Clara. — Mas se tentar explodir, eu acabo com você! — E voltou a mirar em Renato. — Manda a gente calar a boca e eu mesmo vou fazer coisas inomináveis e estarrecedoras com você!
Clara deu de ombros e deu risada.
— Você tá ameaçando quem, afinal?
— Todo mundo! Tô ameaçando todo mundo! Ah! — Ela gritou. — Por que não falou que tinha uma irmãzinha?
— Gente, mas é só uma irmãzinha… qual o problema…?
— O problema é que você não confia na gente! Não compartilha coisas da sua vida com a gente! Só com essa súcubo assanhada e vadia!
— Ahém! — Clara pigarreou. — Assanhada e vadia são meio que sinônimos. Não precisava usar os dois, sabe? Fica redundante.
— Não são, não! — Tâmara retrucou. — Assanhada é assanhada e vadia é vadia! E tem você que é as duas coisas!
— O Renato não confia na gente — disse Mical. — Não fala com a gente. Não conta o que sente. Ele só guarda pra ele. É isso que tá deixando ele doente. Mas ele ainda fala mais com a súcubo, e isso é muito, muito injusto!
— Não é que eu não fale… a conversa só não surgiu, sabe…?
— Fale mais sobre sua irmãzinha! — ordenou Tâmara. — Ela é fofa? É legal? É brincalhona? Fale mais sobre ela! Ou eu mato o piloto e derrubo esse avião com a gente dentro!
— Mas… que mudança brusca é essa? — perguntou Renato. — A gente não estava numa vibe meio “oh, o Renato está triste, vamos consolar ele”?
— A parte triste já passou! — respondeu Tâmara. — A Kath já era e você não pirou de vez graças a garotinha de Deus ali! Então, agora é hora de lavar a roupa suja! Anda! Conta tudo sobre sua irmãzinha.
Renato deu de ombros.
— A Irina é incrível. Eu conheci ela no orfanato, então…
— Espere aí! Ela não é sua irmã de sangue?
— Não, Tâmara! Eu conheci ela no orfanato. Por isso ela tá vindo.
— Ai, droga! Eu vi naqueles animes que você assiste… a irmãzinha mais nova, adotiva, sempre nutre amor pelo protagonista! Sempre! E ela é uma rival da heroína principal, ou seja, eu.
— Não! Eca! Que nojo! Você tá maluca?! Ela é minha irmãzinha. E eu nem gosto desse tipo de anime! Só uma vez que eu assisti aquele… como era mesmo o nome? Ore no… Oreim…?
— O Renato tá mudando de assunto… — disse Mical.
— É verdade! — concordou Tâmara. — Não desvia do assunto! Continue! Fale sobre a Irina.
Até Clara pareceu interessada. Se acomodou em seu assento, com a taça de vinho presa entre os dedos, e observou atentamente.
— Ah, bom, a Irina… como eu posso descrever ela? É inteligente, astuta, meio doidinha…
— Doidinha como? — Tâmara ergueu uma sobrancelha.
— Acho que vocês vão se dar bem…
— Entendo… ei, o que quer dizer com isso?
— Eu gostaria de ter ficado um pouco mais no Japão — disse Mical, com olhar baixo. Ela tinha bebido um pouco de vinho, e suas bochechas pareciam um pouco vermelhas. — Tem tanta coisa que eu gostaria de ver! Mas eu entendo… a gente tinha que voltar rápido por causa….
— Me desculpe, Mical — falou Renato. — Prometo que vamos voltar em breve, e que vamos conhecer tudo o que tiver de legal para conhecer.
— Tá tudo bem. A gente volta outro dia.
— O Renato ainda tá um pouco triste — disse Lírica. Ela estava de pé, olhando fixamente para o garoto.
— Triste? Mas por quê? — perguntou Tâmara? — Por que ele estaria triste na nossa companhia? A gente já resolveu o que tinha pra resolver, não foi? Será que ele não gosta da gente? Renato, você não gosta da gente? Essas meninas estão te incomodando? Se for isso, eu mesma dou um jeito nelas!
— Não, não é isso… eu tô bem… é só que…
Clara estalou a língua, indignada, e riu. Pôs a taça de vinho sobre a mesa e encarou Tâmara.
— Você é mesmo bem ruim nesse negócio de empatia, não é? Você até que se esforça, mas… não consegue. Até eu, um demônio que não me importo tanto assim com a humanidade, entendo porque ele não está exatamente muito feliz. Mas você, uma humana, sequer consegue entender a razão. Chega a ser irônico.
— O que quer dizer? — A expressão de Tâmara ficou ainda mais irritada, e ela direcionou à Clara um olhar desafiador.
A súcubo deu de ombros.
— Não vou dizer. — Sorriu, se divertindo. — Quero ver você quebrando a cabeça para entender. Não é você quem diz amar o Renato acima de tudo? Seu amor é tão pequeno assim, que sequer compreende os sentimentos dele numa hora dessas?
— O Renato tá triste porque ainda é muito recente a perda que ele sofreu — disse Mical. — E não importa se ele vingou as crianças. Vingança não traz ninguém de volta. Além do mais, daqui a pouco é a cerimônia de despedida e o enterro, e estamos indo para lá. Qualquer pessoa estaria triste numa hora dessas. — A voz da menina saiu baixa, como de costume, e ela parecia envergonhada.
— Mical?! — Clara ficou indignada. — Por que contou para ela? Deveria deixar ela tentar descobrir. Seria divertido ver ela se corroendo por dentro.
— Eu contei porque fiquei com pena dela…
Jéssica sentou num assento próximo de sua irmã, e lançou um olhar afiado para Tâmara.
— Afinal, por que estamos deixando essa psicopata sem sentimentos ficar conosco? Eu ainda acho que deveríamos abandoná-la em algum canto. Talvez até…
— Quem você tá chamando de psicopata sem sentimentos, seu projeto de crente hipócrita!? — Tâmara devolveu o olhar desafiador.
— Eu tô chamando você, obviamente! — respondeu Jéssica, inclinando-se para frente, com uma expressão de desdém. — Você fica aí dizendo que ama o Renato, mas nem entende a razão dele estar triste numa hora dessas! É até engraçado! Uma assassina em série que diz amar alguém! Sabe o que a psiquiatria diz sobre gente como você, Tâmara? Hein? Gente como você é incapaz de amar. O que você sente pode ser qualquer outra coisa, mas não é amor.
Tâmara riu, uma risada seca e irritada.
— Eu sou a única que ama ele de verdade aqui! Pensando bem, freirinha, qual a razão para você… para todas vocês estarem com ele, hein? Você e sua irmã só estão com ele porque… deixa eu ver… não tem outro lugar para ir, não é? São duas sem teto. Mendigas! E se borram de medo com a possibilidade da Cruz do Atalaia vir atrás de vocês, então precisam de um protetor. O motivo da garota gato ali não é muito diferente. Se não fosse pelo Renato, aquele demônio já tinha puxado ela pelos cabelos de volta para o Inferno. E tem a súcubo. Aposto que tá com o Renato só porque vê nele uma fonte de poder. Uma mísera bateria! Não é isso que os humanos são para você? Uma fonte de energia? Então eu sou a única aqui que ama ele de verdade!
O clima dentro do avião ficou mais tenso do que nunca. As palavras de Tâmara eram afiadas como facas.
Clara cortou a tensão com uma gargalhada divertida.
Estava pronta para fazer um comentário irônico, que provocasse Tâmara e colocasse mais lenha na fogueira, mas algo aconteceu.
Seu celular vibrou.
Ela se afastou e atendeu a ligação.
Era Lua, uma elemental que ela conhecia de longa data.
— Os resultados dos novos testes finalmente chegaram — disse Lua.
— E então? Conseguiram estabilizar a troca de energia?
— Sim! Finalmente estabilizamos. Mas você ainda precisa tomar alguns cuidados. Se absorver demais, pode morrer.
— Me mande os detalhes por e-mail.
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