Haivor teve a chance de tocar em cerca de dez soldados com tipos de treinamentos diferentes. Viu como cada um esteve a vida praticando a arte da esgrima e como seus corpos se aperfeiçoaram, mesmo com os vícios e falhas visíveis em seus conceitos.

    Teve tempo de se preparar para duelar contra cada um deles, mas diferente do que fazia com a magia, a prática da esgrima vinha com um tempo determinado. Não era sequência. Seu irmão Cross tinha passado pela mesma coisa, mas seu corpo demorava dois a três meses para se acostumar com os novos níveis de golpes, as novas sequências, os aparates e toda a base exercida.

    Não somente isso, mas o próprio estilo que Cross teria se estivesse vivo fora desenvolvido para que não existisse falhas. Era compacto, perfeito, pernas e braços fortes, cabeça e olhos concentrados, a mente perfeitamente em sincronia.

    Era a arma perfeita.

    O que encontrou em dez minutos foram os soldados claramente atacando com tudo o que tinham. Usava dois machados pequenos, desviando com facilidade e saindo da ofensiva. Eram homens formados, mas fracos.

    – Vamos, Creed – gritaram da roda. – Ele é só um curandeiro.

    Haivor deixou a espada de Creed se erguer e deu um passo para frente. O soldado viu a aproximação, mas já estava perto demais. Com a ponta de madeira do machado, colidiu contra sua barriga, a outra lâmina já estava na garganta dele.

    Nem mesmo dois minutos. Creed era muito bruto quando atacava. Usava um golpe fraco para aproximação e um forte para terminar o serviço. Um padrão nada agradável.

    – Perdi – ele mesmo admitiu, seu rosto branco. – Não esperei por uma aproximação tão concreta. Você tem alguma experiência em batalha.

    – Eu treinava com meu irmão quando mais novo. – Haivor abaixou os machados. – Estou tentando praticar um pouco para me apresentar como soldado, no futuro.

    Era uma mentira forjada por Kralus e Ptitsa, os dois estavam apenas curiosos para entenderem como os núcleos se alterariam com uma adrenalina maior. Lutar era a chance mais fácil, e Comandante Coiil procurava por soldados habilidosos para promover.

    Uma chance dupla.

    Haivor virou-se para o canto onde esperaria o próximo oponente. Seus olhos, entretanto, grudaram em um homem afastado. Era alto, robusto e cabelos aparados lateralmente. Poderia ser qualquer um, soldado ou curandeiro, fazendeiro ou guarda-costas, mas o manto que usava, ele era de um Adesir.

    Era Mestre Sizi, um dos colegas de Mestre Julis. Reconhecia seu rosto de um dos encontros com Mestre Grison, mas o homem estava meio longe e também era pouco sociável. Não tinha um aprendiz, mas fazia treinamentos para aqueles que tinham potencial para se tornarem Mestres Adesir.

    – Ele não gostou de você – Mestre Grison tinha dito uma vez. – Acha que a opinião dos Arcanos é equivalente. Você é fora do padrão que ele costuma treinar.

    – Não sou um cachorro que gosta de ser adestrado – respondeu, ofendido pela ação de Mestre Sizi. – Prefiro que não me veja, então.

    E ali estava ele, recostado em uma parede, dando breves encaradas ao redor. Os dois se encararam por algum tempo até que Haivor tornou a caminhar novamente.

    – O que houve? – Kralus questionou, preocupado. – Seu núcleo ondulou, de repente.

    – Um Adesir.

    Kralus não procurou pelo homem. Tocou o ombro de Haivor com força, reforçando dizendo:

    – Não se preocupe. Ele não pode sentir nada de você. Preciso que continue praticando. E alias, temos problemas maiores do que ele.

    – O que seria?

    – Cilas parece ter mandado um grupo diretamente para cá. Estão vindo em peso. Precisaremos fazer uma reunião com eles, mas duvido que o Porco vai querer. Já assinamos o papel que dita a Muralha como casa diretamente fora dos domínios do feudo Luzin.

    – Então, aqui ele não tem mais controle. – Haivor sabia desde o começo o que aconteceria. – Por que ele mandaria os Magos diretamente para cá?

    – Porco e eu temos nossas teorias. A minha é que Cilas deve querer que nos aliemos a eles, mesmo que de forma inofensiva. Ptitsa está sendo bem mais radical.

    – Prefiro pensar na radical para que não tenhamos problemas no futuro.

    Kralus suspirou, assentindo em conjunto.

    – Ele acha que vão querer ocupar a Muralha como uma forma de lidar com nossa assinatura. Vão querer colocar homens aqui para tomar conta de tudo o que fazemos. Não temos pessoas suficientes para lidar com um batalhão.

    – E o que farão?

    – Como eu falei, reunião. Lina está encarregada de tentar interceptar quem está no comando primeiro, e entender o que se trata. Se a informação chegar antes deles, teremos como achar uma brecha.

    Alguém gritou da roda de espectadores.

    – Curandeiro, ele já está pronto. Lutem.

    – Isso, lutem.

    Kralus encarou o soldado pronto, era baixo, mas com uma lança afiada.

    – Tente não fazer muito esforço. E continue tentando sugar o máximo de mana ao redor. Os Círculos Mágicos que fizemos estão bem camuflados, então o Adesir não vai sentir. Temos que fazer seu corpo voltar a ter pelo menos o Segundo Domínio.

    – Se eu conseguir usar só Comandos já é suficiente. – Haivor mostrou o machado. – Eu já tenho o suficiente para conseguir mexer o braço.

    – Ótimo. Vou encontrar os outros e depois volto para acabarmos com isso.

    Com o machado na mão, Haivor deu inicio a segunda disputa.

    I

    Lina caminhava pela estrada. Já estava cerca de duas horas pelo caminho que seu pai tinha dito que os Magos tomariam. Incerta de quem estaria na expedição, preparou-se para encontrar um dos Mestres.

    O acampamento deles surgiu em uma pradaria, antes ainda de subirem o declive. O terreno era perfeito que o grupo inteiro pudesse descansar antes de uma investida. Os Magos se preparavam para o pior, como seu próprio pai previa.

    As barracas se uniam em círculos, com algumas mais ao centro. As pedras domavam uma parede natural e alguns Magos se posicionavam acima delas, patrulhando. Usavam roupas mais pesadas, protegendo dos ventos gelados que surgiam do norte.

    – Se identifique – ouviu de um dos sentinelas mais próximos. – Nome e filiação.

    – Lina Hui, filha de Kralus Hui. Maga da CBK e Mestra. – Manteve o olhar penetrante. – Quer mais alguma informação?

    – Não, não, senhora. – O homem olhou para o outro lado, completamente envergonhado. – O senhor Olum está na barraca central, com os outros. Gostaria que eu fizesse uma introdução de sua chegada?

    – O Mago Olum está no comando? – Era claro que estaria. Depois da derrota contra Enigma, cerca de um ano atrás, ele escondeu-se atrás do irmão, tentando buscar a glória perdida. Ninguém havia o culpado já que o inimigo era completamente fora dos padrões e tinha derrotado até mesmo seu pai, um Mestre Mago. – Irei encontrá-lo.

    – Sim, senhora.

    O Mago liderou o caminho até a entrada e depois a deixou seguir sozinha. As pessoas que acampavam a encararam com um misto de choque, admiração e receio. Lina era uma das poucas Magas do núcleo da CBK que apoiava a exclusão do grupo ao feudo Luzin.

    Ela estar presente ali era perfeitamente cabível já que Mestre Kralus tinha sido atacado por forças terceiras no último dia.

    – Lina – Olum saiu da maior barraca erguida. Ao seu lado, cerca de três a quatro outros Magos. Eram Defito, Upade, Crilho e Betina. Eram o quarteto utilizado por Cilas para ataques poderosos. Eram especialistas em batalhas de longa duração. – Estou surpreso por vê-la aqui.

    – Surpresa por me ver ou por eu estar viva? – ela não se aproximou mais. Manteve a distância de 10 metros deles. – Porque da última vez que você estava na minha frente, eu lembro de ter dito que minha ausência as reuniões de seu irmão custaria caro para meu pai e eu.

    – Palavras ao vento – Olum sorriu, ironicamente. – Eu nunca tentaria nada contra vocês. Queria apenas que comparecessem já que o assunto era sério demais para que ambos estivessem curtido ler ao ar livro em uma casa no meio da mata.

    – Deveria tentar tirar um tempo de férias, pelo menos não sua cara não ia ficar tão seca quanto agora. – Ela deu de ombros. – Como minha posição me auxilia na escolha de minhas ações, previ que o assunto nada beneficiaria a mim.

    – E a CBK, pensou que beneficiaria a todos nós? – Era claro que usaria o grupo inteiro como arma. A faca poderia estar na sua mão, Lina só precisaria entregar a manteiga. – Como não tivemos a opiniões de todos vocês, meu irmão solicitou que eu viesse averiguar a situação completa.

    – Ele disse isso antes ou depois de termos sido atacados por Magos e mercenários?

    Os Magos afastados se aproximaram, relutantes. Dava para ver nos semblantes a confusão. O próprio Olum fez uma cara disfarçando.

    – Do que está falando? Foram atacados?

    – O conselho deve ter noção de que um ataque a um Mestre vindo dos próprios membros é um crime grave. Eu tenho autoridade suficiente para mandar todos vocês de volta para casa agora mesmo.

    – Isso não vai acontecer. – Defito, mais alto e com um cajado de madeira na mão, deu um passo adiante. Em suas mãos, um papel. Ele entregou a Lina. – Você não tem mais autoridade nos ataques focados a longa duração, como estava sendo ditado anteriormente. Hoje, Olum faz parte do círculo central da CBK, e você não.

    Lina fez questão de ler até o final. Desacreditava que Arno, sendo o líder do grupo, faria algo tão imprevisível. Era plano do próprio Cilas.

    – Então, você é considerado Mestre, agora?

    – Ainda não estou pronto para assumir esse cargo. – Olum se divertia com a situação. – Mas, creio que no futuro, talvez.

    – Daqui a uns trinta anos – ela respondeu. – Até lá, seu irmão pode limpar sua bunda a cada erro que você comete. Então, se não estou mais na posição de interferir nessa investida ridícula, devo avisar que se tocarem na Muralha, o feudo inteiro está contra vocês.

    Olun e os outros quatro não se atreveram a falar alto. A reputação de Lina era perfeitamente equilibrada entre a diplomacia e a ofensiva. Ninguém além de Kralus e Arno conseguiam pará-la numa luta.

    – Não entendi muito bem – Olum disse. – O que quer dizer com o feudo inteiro?

    – Ah, seu irmão não te avisou? – Era divertido ver a face confusa deles. – Eu estou dizendo que as leis independentes foram assinadas. Se vocês tentarem fazer qualquer tipo de ataque, o feudo tomara o grupo dos Magos como inimigos. Perguntem a Arno. Ele vai explicar bem.

    Os dentes de Olum rangeram.

    – Upade, pegue um anel comunicativo. Quero saber do que ela está falando.

    – Não é preciso perguntar a Arno, senhor. – Crilho tinha os cabelos grisalhos, com suas duas mãos enfiadas dentro no robe grosso. As rugas surgiam, cruzando uma sobre as outras, ao lado dos olhos. – Essa é uma lei antiga demais, data antes mesmo da extinção do Exército de Verão. Antigamente, dez pessoas foram abençoados pelo rei Alfred Luzin, pai do atual Luzin. Essas dez pessoas tiveram a oportunidade de um trabalho que iria além do feudo, e suas recompensas seriam o poder acima do rei.

    – Acima do rei?

    – É como um título que dura até suas mortes. Se as dez pessoas se reunissem e assinassem um acordo que delimitava o feudo ter uma propriedade que não seria mais do rei, eles poderiam. Se a Mestre Lina estiver dizendo a verdade, senhor, não podemos sequer tocar a Muralha sem o consentimento do rei e dos conselheiros. Não podemos nem mesmo nos aproximar sem que um convite formal seja feito.

    Olum foi de Upade para Lina, em segundos.

    – Então, é assim que estão protegendo aqueles curandeiros? – Riu, debochando. – É só uma pequena defesa contra tudo o que meu irmão planeja. Pode voltar para sua muralha de pedras e homens, nossas forças estão aumentando em um nível que vocês não serão nada além de cinzas nof final.

    – Pode dizer o quanto quiser da Muralha, Olum – o círculo mágico verde cresceu ao redor dos braços de Lina –, mas se continuar me colocando no meio dessas palavras agressivas, torço seu corpo para que volte pior do que quando enfrentou Enigma. Pode ter apoio do seu irmão, mas um pedaço de pedra não faz uma muralha. Melhor que esteja atento.

    – É só uma questão de tempo – ele respondeu, menos sorridente. – Apenas uma questão de tempo para que você se torne como seu pai; um exilado que vive no meio da mata, falando sozinho e sorrido para o nada.

    – Quando eu chegar a esse nível, você vai estar abaixo de mim, quatro metros da superfície. Eu vou voltar, mas é melhor que se lembre do que acabei de dizer.

    Olum esperou que ela estivesse longe para responder:

    – Lembrarei bem, Lina. Muito bem.

    II

    Depois de duelar contra cinco a seis soldados diferentes, Haivor estava próximo de vencer todos os participantes. Kralus se manteve a distância, cuidava dos círculos mágicos e do Mestre Sizi, um Adesir. O homem não se mexia, estava claramente mais focado na luta do que procurar por circuitos arcanos montados ao redor do pátio.

    A última luta contra um jovem chamado Reed deu início. Eles se encontraram no meio, os dois atacando e defendendo, de ponta a ponta. Claramente, estavam procurando falhas no outro. Kralus sabia como vencer um oponente visualizando suas falhas, demorava um cado de tempo para conseguir, uma habilidade que Haivor dominava instintivamente.

    Ter perdido para ele em Malaca no passado não tinha sido uma sorte. O homem tinha seus trinta anos, experiência em combate corporal, e lidava com as adversidade como um jogo de quebra-cabeça. Cada falha era uma nova chance de melhorar, e com ela, uma oportunidade de vitória.

    Seus giros por debaixo dos ataques horizontais de Reed eram seu corpo se aperfeiçoando a um estilo próprio. Esse giro foi feito por um dos soldados, pouco tempo atrás, tendo sido um dos poucos segundos que Haivor foi pego desprevenido. Agora, repetia a mesma sequência com extrema facilidade, como se tivesse praticado por anos. Era somente sua primeira vez.

    – Pai – Lina se apresentou ao seu lado, cordialmente. – Os Magos foram enviados por Cilas. Quem está no comando é Olum, irmão dele.

    – Esperava por Cilas fazer um movimento desse porte, mas rápido assim? – O homem era uma cobra de tão escorregadia. – Disse o que eu pedi?

    – Parei eles por um tempo, mas a determinação deles era inabalável. – Ela entregou um documento. – Eles revogaram minha posição do círculo central. Cilas deve ter dito que fugimos depois dos mercenários.

    Era o comum a se fazer. Cilas estava retirando todos os atributos menores do seu caminho. Sem Lina para escutar o que se passava com a CBK, nenhuma informação poderia ser processada e passada adiante.

    Kralus fazia um trabalho meticuloso desde sempre para que sua filha não percebesse. Mas, depois de tanto tempo, duvidava que ela não sabia que trabalhava mais a fundo com outras pessoas, essas muito mais importantes.

    – Aqui, ele não pode nos fazer mal – disse, ainda que relutante. – E não temos que nos preocupar muito com Cilas, temos alguém ainda mais estranho do que ele.

    Ela observou Haivor e Reed batalharem. Haivor fazendo paradas para indicar ao soldado movimentos que estavam falhos e alguns que deveriam tentar de outra forma. Ele praticava com Reed ao mesmo tempo que aconselhava-o.

    – Você tem muita fé nele, pai. – Ela o olhou, de novo. – Por que acha que ele vai fazer alguma diferença para nós? Temos muitos problemas a resolver. Muitos trabalhos a fazer. Não podemos ficar aqui para sempre.

    – Eu sei. Mas, li em um livro uma vez sobre uma criatura que nasceria com um desejo tão profano por conhecimento, que sua vida seria datada como uma passagem de livros. Ele seria tão profundo e imensurável que nem seus aliados poderiam entendê-lo.

    – Os livros que você lê são todos fantasiosos. – Lina nunca gostou de leitura antiga. – Elfos, Anões, Fadas e Gnomos. Draconianos e espécies de criaturas que nunca mais se virão no Grande Continente. É uma lenda, como todas as outras. Ele é forte, mas não é um exército. E olhe o braço dele, está debilitado.

    – Você não está preocupado com a gente. – Kralus sorriu. – Está preocupado com ele.

    Lina estagnou por um segundos antes de balançar a cabeça, torcendo o lábio.

    – Fico preocupado com os dois. Isso está claro. Você tem um grande afeto por ele, pai. E ele parece querer nos ajudar. Estou somente tentando levar em consideração todas as nossas opções. Ele é a principal delas.

    – Exato, ele é a principal. Por isso, o plano de Ptitsa deve dar certo. – O machado de Haivor encontrou com a espada de Reed, lâmina deslizou pela lâmina, e o Adesir fez um movimento com a perna, forçando o soldado para trás e girando sua arma para o pescoço dele. – As mentes comum regem o mundo com leis e ordens naturais. Precisamos de loucos gananciosos como ele.

    – E como você.

    Kralus continuou encarando Haivor. Ali estava sua saída.

    – Temos que fazer acontecer.

    O soldado Reed foi o que manteve a maior média de tempo em combate, e foi saudado pelo Comandante Coiil depois de tudo. Ptitsa tinha dito que outro comandante tinha sido enviado a Luzin para configurar os planejamentos de provisões necessárias, e que desde sua saída, nenhuma mensagem fora enviada de volta.

    Coiil deveria nomear alguém para manter no cargo de Comandante temporariamente. A primeira vista seria como Sargento, mas a necessidade era maior de controle de soldados. Além de que a Muralha Leste era lotada de Adesir enviados diretamente da Torre Mágica.

    Um dia passado do duelo e do encontro com os Magos. Kralus esperou que Lina contasse tudo para Ptitisa e os outros velhos e para Haivor. Ouviram com atenção, sem perguntas aparentes. A preocupação que detinham eram as mesmas:

    – Alguma chance deles atacarem onde estamos com a ajuda de Luzin? – Olivier, sentado, mantinha a mão na frente da boca. – Alguma chance, mesmo que miníma?

    – Sempre existem chances – respondeu Lina. – Pelas minha experiências, Cilas deve tentar convencer Arno de um ataque surdino, com efeito de controle de mensagem. Devem achar que nós temos poucos membros com usuário de magia.

    – E temos. – A carranca de Rubem era sempre única, mantendo as sobrancelhas tocas e maxilar duro. – Se não temos como nos defender aqui, não temos em nenhum outro lugar. O plano só pode dar certo se tivermos metade de um exército vivendo aqui.

    – Sempre existem homens para colocar nas ameias, mas soldados treinados é completamente diferente. – Comandante Coiil se mantinha de pé, ao lado de Lina. – Levaria meses para trazer pessoas de uma cidade pequena, como Algorisha, para cá.

    – Filtrar cidades menores e com custos elevados seria a melhor opção. O Vilarejo Imperial, um exemplo claro de urbanização, melhorou e muito desde que um homem chamado Gruu assumiu-se como líder de lá. – Olivier ainda mantinha a serenidade. – Lugares ruins de morar. Vamos dar um lugar para que possam ocupar aqui.

    A ideia era ótima, se partido da necessidade de que estavam criando uma cidade na Muralha.

    – Pessoas demais para defesas de menos – Haivor respondeu. – Passei pelo Vilarejo Imperial e por Algorisha, antes da destruição dela, eram pessoas humildes com o mínimo, mas suficiente para que não precisassem segurar uma arma. Não servirão para os propósitos que querem.

    – E de onde vamos tirar essas pessoas?

    Kralus sabia o que Haivor diria, mas o homem se conteve. Estava indeciso demais. O núcleo dele ainda estava ondulando, idêntico de quando encarou o Mestre Adesir no Pátio Interno. Estava hesitando sobre suas questões, sobre qual decisão tomar.

    Era a culpa, a morte daquelas pessoas humildes que tinha dito. Uma delas, pelo que foi informado, sobreviveu. Amanda, uma garotinha com olhos azulados.

    – Diga o que pensa – Kralus lhe de um empurrão. – Sua mente é mais nova e afiada que as nossas.

    – Melhor falar do que passar vontade, Haivor – Ptitsa disse do outro lado da sala segurando um copo de café. – Aqui, somos todos amigos.

    – Se querem poder bruto, a chance que terão é com a Senhora de Kusha. Eu estive em contato com todos eles. São orgulhosos por natureza, mas se dermos um aval de que aqui terão uma vida fora dos domínios de Luzin, eles vão pensar a respeito.

    – A Bruxa Kusha? – Não só Olivier, como Adam e Rubem ergueram as sobrancelhas. – Está dizendo que esteve em contato com Kusha? Viu a mulher?

    – Conversei com ela, cara a cara. Lutei contra os filhos dela enquanto protegia Marco Pollo, o diplomata que luta pelos não-humanos.

    – Calma. Espera um momento. – Rubem levantou-se da cadeira, desacreditado. – Está dizendo que você é o Adesir que esteve envolvido em todas as questões sociais do ano passado? O tal Enigma. Que também teve um encontro com a Normadie em Algorisha e destruiu a cidade inteira?

    Era meio óbvio que duvidariam, eram velhos agarrados em conceitos antigos. Um Adesir não deveria estar envolvido em política, mas Haivor tinha feito aquilo de forma inconsciente. Os acontecimentos vieram e ele passou entre eles.

    – Fiz o que tive que fazer – Haivor respondeu, seriamente. – Conheço Kusha, conheço Marco Pollo. A situação que vocês estão aqui demandam da ajuda deles. E eu vi um Mestre Adesir ontem.

    Lina encarou o pai.

    – Um Adesir?

    – Ele estava observando a luta de longe. Não fez nada além de assistir, mas acho que tem algo estranho. Não fui informado de nada.

    – Ah, o Adesir. – Coiil coçou a cabeça tentando camuflar a vergonha da cara com um sorriso forçado. – Esqueci de comentar isso. Com a proibição deles pelo feudo, o Arcano Piey e o Asumir Retro solicitaram que os aprendizes fossem enviados para a Muralha Leste.

    – Isso é bom, certo? – Olivier perguntou. – Uma força a mais ao nosso lado.

    – Convencer um Adesir a trabalhar para nós será mais complicado do que isso – Kralus disse, confiante. – Mas, a relação que eles tem com os Magos é bem estreita. Depois que a Torre Mágica foi atacada por eles, ficou pior.

    – Falarei com eles – Coiil anunciou. – Será mais fácil se ouvirem de minha parte.

    – E quem falará com Kusha? – Ptitsa indagou. – Conseguir uma audiência com ela demanda tempo e esforço. Haivor demonstrou habilidade em lutar contra eles, mas no momento atual, ele não serve nem mesmo para limpar o chão sem ficar gemendo.

    Kralus quase riu. Haivor manteve a face serena.

    – Precisamos enviar alguém que ela vá ouvir – Olivier respondeu. – Alguém que tenha estado com ela nos últimos anos, conversando e trocando mensagens.

    Kralus não tinha noção do que estava acontecendo, mas Ptitsa, Adam e Olivier olharam ao mesmo tempo para Rubem. O velho ranzinza encarou os três, tocando a mesa com os dedos, um após o outro.

    – Não faço ideia do que estão falando – sua voz bem acentuada para uma contradição. – Não gosto de manter conversa com ninguém.

    – Claro, foi por isso que eu interceptei cerca de cinco cartas para Kusha com o seu nome. – Ptitsa coçou a barba, se divertindo naquilo tudo. – Eu lembro de uma delas, passou por mim faz cerca de cinco meses. Ah, lembrei. “Imensurável Kusha. Dito hoje que estou com saudades de seus braços, tão macios e serenos que me perco imaginando-os cinquenta anos atrás, quando partilhamos da mesma…

    – Eu entendi – Rubem berrou. – Entendi onde querem chegar. Eu falarei com ela, mas por favor, pare.

    O velho parecia um tomate.

    – Melhor assim. – Ptitsa deu o aval para que Haivor continuasse. – E as mãos de obra. Disse que conhecia Marco Pollo.

    – Não-humanos são a solução para esse problema. Eles são nomeados como as criaturas mais horríveis da terra. Se derem uma chance de mostrarem seu valor com condições justas, receberão mais do que braços, terão suas almas.

    – Profundo, mas quero só os braços. – Ptitsa abanou a mão. – As almas eles podem ficar. Eu aprovo a escolha dos Bruxos e não-humanos. Alguém contra?

    Ninguém levantou a mão.

    – Então, Rubem estará focado em Kusha, e deus nos perdoe, pense com a cabeça de cima enquanto estiver lá.

    – Calado, idiota – Rubem devolveu, cruzando os braços. – Sempre penso com a de cima.

    – Claro. E quem ficará com Marco Pollo?

    Coiil ergueu a mão enluvada.

    – Posso enviar batedores para escoltá-lo até aqui, se quiserem. Não será uma viagem longa. Ouvimos que ele está hospedado em alguma taberna, no Vilarejo Imperial. Podemos trazê-lo para cá em menos de uma semana.

    – Será ótimo. A voz dele será a nossa voz. – Ptitsa tomou o café. – E por fim, acho que encerramos a reunião de hoje. Temos muitos feridos para tomar conta, além de uma doença que vem se agravando da gripe. Então, tomem cuidado quando estiverem andando por ai. Qualquer coisa, relatem ao Comandante.

    Todos concordaram. Um a um, eles foram saindo da sala, deixando Kralus, Haivor e Lina. O Adesir se sentou em uma cadeira perto da tocha e puxou um livro. Lina empurrou o ombro de Kralus, apontando para ele.

    – Ele é muito parecido com você quando se trata de leitura.

    Kralus não gostava de pensar muito nisso, mas não tinha como negar.

    – Ele é um pouco mais fanático que eu. Tome conta dele por mim, tenho que resolver algumas pendências com Ptitsa ainda.

    – Claro. Encontro o senhor depois.

    Kralus saiu pela porta, mas não foi para longe. Ficou atrás dela, ouvindo os dois.

    – O que está lendo?

    – “Magias de Confinamento”. Seu pai me emprestou. Ele tem um gosto bem peculiar.

    Ouviu Lina rir.

    – Sim, ele tem. Ele me disse que você podia pegar outros, se quisesse. Ele não lê alguns faz alguns anos. Mas, tenho uma dúvida quanto uma coisa.

    – Diga.

    – Quando você enfrentou meu pai, em Malaca. O que passou pela sua cabeça?

    – Muitas coisas passam pela minha cabeça quando estou lutando com alguém, ainda mais perante seu pai. Ele conhecia todas as magias que eu usava, parecia como se estivesse me lendo durante a batalha. – Fez uma pausa. – Foi uma das disputas mais difíceis que tive. Sacrifiquei dois dedos para expulsá-lo da ilha.

    Lina e ele deram uma risada.

    – Meu pai diz que você é uma pessoa diferente. Quero acreditar nisso.

    – Espero que ele não esteja errado.

    O tom de voz deles soaram mais baixo, Kralus ainda encarava o teto, escorado na parede. Estava velho demais, cansado demais. Sair da CBK lhe rendeu frutos como a paz e tranquilidade, mas enraizou seus fundamentos mais profundos de combate.

    Não lidaria com Cilas ou Arno em uma luta. Nem mesmo contra Lina, sua própria filha, que foi treinada por ele. O tempo não esperava ninguém. E isso não era agradável.

    Quando ouviu um estalido vindo da sala, se remexeu. Não iria ficar para interromper os dois. Fez seus passos para o corredor a procura do Porco.

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