Índice de Capítulo

    A fachada do pequeno prédio de Clara surgiu no horizonte como um oásis, trazendo uma promessa de descanso.

    Exausto pela viagem, Renato ansiava apenas por um banho antes de desabar na cama.

    Foi quando tiveram a primeira surpresa.

    Os escombros da batalha contra Belfegor haviam desaparecido por completo. A estátua do cupido pervertido, que fora despedaçada, parecia intocada, como se o tempo tivesse retrocedido.

    E o buraco que esperavam encontrar na parede do terceiro andar, não estava mais lá. A pintura tinha sido restaurada, não sobrando nem uma marca ou rachadura.

    Era como se toda a luta nunca tivesse acontecido.

    Tâmara hesitou em dar mais um passo. Desconfiada, olhou de soslaio para todo o ambiente.

    — Isso… isso aqui não era pra estar todo arrebentado?

    — Aposto que isso foi obra de Clara! — disse Mical, num misto de encanto e assombro. — Os poderes sinistros dela sempre me surpreendem!

    Renato deu de ombros, resignado.

    — Acho que nada mais me surpreende. — Sorriu. — Qualquer dia desses, se dragões começarem a sair das paredes, vou dar boa noite para eles e ir dormir. E além disso, a Clara não é tão sinistra assim… só tem uma boa dose de, vocês sabem… esquisitice crônica.

    — Dragões saindo das paredes? — Tâmara ergueu uma sobrancelha. — Renato, você tá usando drogas? Tá cheirando maconha?

    Clara gargalhou.

    — Obrigada pela consideração, Mical. E saiba, Renato, que eu sou bem sinistra sim! Mas dessa vez eu também fui pega de surpresa. Acontece!

    — Espera! Dragões existem? — Jéssica enrugou a testa.

    — Existem sim — falou Lírica. — Mas eles não saem das paredes! — Ela pareceu confusa. — Pelo menos eu acho. Nunca ouvi falar de dragões saindo de paredes… — divagou.

    — E maconha não é de cheirar! É de fumar! — falou Mical, em tom de voz casual e alegre.

    Clara a olhou com olhos afiados.

    — E como você sabe disso, freirinha?

    A surpresa maior, no entanto, foi quando chegaram ao terceiro andar. Na sala de estar havia três grandes prateleiras de madeira, ornamentadas com cachos de uvas esculpidos na madeira. Em cada nicho tinha uma garrafa de vinho. Era uma adega.

    A fragrância adocicada de uva e vinho perfumava o ar.

    As pernas de Renato amoleceram.

    “É um tesouro! Finalmente os deuses sorriram para nós!” Foi o pensamento que passou pela cabeça dele.

    — E um suquinho de uva, nada? — falou Tâmara, enquanto vasculhava as garrafas nas prateleiras.

    — Sangre del Diablo? — Jéssica leu o rótulo numa das garrafas. — Me parece algo suspeito.

    — Belfegor… — Clara sorriu. — Parece que ele tá tentando fazer as pazes. Sangre del Diablo é o nome do vinho que ele produz. Bom, o nome originalmente era Bagos del Diablo, mas, por algum motivo, as pessoas não queriam comprar…

    Renato pegou uma garrafa e ficou admirando-a, como se ela fosse feita de pedras preciosas.

    Na hora de abrir, ele quase a deixou cair, por causa da falta de seu dedo mindinho, mas conseguiu evitar tal tragédia bem a tempo.

    Lírica franziu o cenho e olhou para os lados, com o canto do olho. Parecia incomodada com alguma coisa.

    Seu olfato apurado lhe permitiu notar uma coisa: o cheiro do demônio estava impregnado nas garrafas, e isso fez ela sentir náusea. Fez uma careta de nojo. 

    — Não sei, não. Belfegor é traiçoeiro. Não sei se deveríamos confiar nele. Esse vinho pode muito bem estar amaldiçoado.

    — Ah, não exagera! É paranóia da sua parte! — Clara deu tapinhas no ombro da demi-humana. — Belfegor é um ser milenar e maligno, de caráter duvidoso, sem nenhum respeito pela vida dos outros, mas isso não significa que não seja de confiança! Pare com preconceitos tolos!

    Jéssica bufou e balançou a cabeça.

    — Ela consegue se ouvir quando fala essas coisas?

    Renato sentiu uma onda de felicidade quando aquele líquido fresco, vermelho vivo, desceu por sua garganta. O aroma massageou seu olfato: algo entre o floral e o terroso. O sabor era levemente ácido, com uma doçura muito sutil.

    O garoto sentiu como se estivesse num campo florido, em uma clareira cercada por árvores, ao lado de uma cachoeira de águas cristalinas.

    Paz e tranquilidade acalentaram seu coração.

    — Eu também quero! Eu também quero! — Mical dava pulinhos, enquanto repetia essa frase.

    Ela fechou os olhos e fez um biquinho com os lábios, como um beijo, e abriu os lábios levemente.

    Renato achou a atitude da garota um bocado engraçada.

    “Dona de um espírito tão forte! E ao mesmo tempo tão inocente!” Foi o que pensou. Sorriu ao notar o quanto estava encantado com aquela menina. Ela deixava seu coração quentinho.

    Renato tocou a garrafa nos lábios de Mical e, inclinando-a, deixou o líquido sagrado fluir para dentro da boca dela.

    — Ah, esse vinho é tão bom! — disse ela, tocando suavemente, com a palma da mão, sua bochecha corada. — Agora, só um pãozinho e…

    — Calma aí, Marcelino Pão e Vinho — Clara deu tapinhas no ombro de  Mical. — Tá mesmo querendo fazer uma santa ceia com um vinho fabricado por um demônio? Não que eu tenha algo contra… acho até interessante a ideia, mas…

    — N-não! Só tô com fome mesmo…

    Nessa hora, todos puderam ouvir a barriga dela roncando.

    *

    Clara suspirou, relaxada e preguiçosamente. 

    Sua banheira era um dos lugares mais incríveis que existiam na terra, capaz de fazer inveja até mesmo nos anjos que habitavam o paraíso.

    O banheiro à meia luz, com velas que tremeluziam; a penumbra ocultava as formas voluptuosas do corpo dela.

    A melodia doce de “Devil’s Trill Sonata” tocava, numa melancolia feliz. A música, segundo dizem, fora inspirada pelo próprio Diabo. E tal era a beleza da canção, que Clara tinha certeza que a lenda era verdadeira.

    Sua taça de vinho estava pela metade, repousada sobre a mesinha ao lado da banheira.

    Mas mesmo ali, algo tirava sua paz.

    Ela olhava para a tela do celular, preocupada.

    Uma mensagem do Inferno, enviada pela primeira princesa, Baalat.

    Então algo mudou.

     A temperatura ficou mais gelada, e estava caindo rapidamente. Uma névoa branca saiu por entre seus lábios.

    O grande espelho na parede começou a rangir.

    — Nem pense nisso! Se quebrar meu espelho, eu te lanço uma maldição tão terrível, que vai te impedir de atingir o orgasmo pelo resto de sua vida.

    A água da banheira vibrou e ondulou, e uma garota emergiu.

    Saiu de uma posição que, pelo que aparentava, ela estaria escondida entre as pernas de Clara.

    Mas a súcubo sabia a verdade.

    Essa garota podia usar a água para se teleportar, então ela apenas surgiu ali, de maneira invasiva.

    Seus cabelos eram brancos, meio transparentes nas pontas, levemente azulados.

    Seus olhos, assim como os cabelos, lembravam o gelo.

    Estava nua, pois seria falta de educação invadir a banheira de alguém usando roupas. Portanto, seu corpo pequeno estava completamente exposto.

    Sua pele era clara, como a pele de alguém que não tomava muito sol, e as aureolas de seus seios eram tão brancas que fariam a neve parecer suja.

    — Clara, você, como sempre, sem nenhum senso de humor!

    — Eu tenho senso de humor, Lua. Só não acho que vandalizar espelhos seja algo tão engraçado assim.

    A elemental riu.

    — Ah, você tinha que ver quando eu fiz isso com aquela garotinha com cheiro de anjo. Como era mesmo o nome dela? Ester, Sara…? Era um nome bíblico…

    — Mical?

    — Isso! Mical! Ela ficou bem assustada, achando que era alguma assombração. 

    — Tecnicamente, você é um tipo de assombração, Lua.

    A garota fez beicinho, irritada.

    — Se eu sou uma assombração, você também é!

    Clara deu de ombros e se aproximou da garota.

    — Tô mais interessada em saber porque você tá aqui. 

    — Oh, que assustadora!

    — Se me lembro bem, você fugiu quando eu pedi sua ajuda.

    — Ainda tá guardando rancor por causa daquele lance do Mercenário Possuído? Qual é? Quem poderia imaginar que vocês derrotariam ele. Melhor dizendo: que aquele garoto derrotaria ele. E depois ele foi até o Inferno só pra te buscar! Isso me deixou bastante intrigada. Principalmente por causa daquelas amostras de sangue que você me enviou.

    — Sou grata pela ajuda com o sangue. — Clara pegou sua taça de vinho e bebeu um gole.

    — Sabe do que eu gosto mais do que gratidão? Informações! Me conta o que tá rolando! Eu percebi algumas coisas estranhas no sangue dele, mas nada tão conclusivo. O que aquele garoto é, afinal?

    — O Renato? Ah, bom, é isso o que eu estou tentando descobrir, sabia? Mas tá difícil. Ainda não sei nada!

    — Sabe, Clara, você mente muito bem. Mas nós jogamos poker juntas durante muito tempo. Eu reconheço quando blefa.

    — Não me diga! — falou Clara, em tom irônico.

    Lua se espreguiçou e bocejou, e depois apoiou as costas na parede da banheira. Estava sentindo-se bem à vontade.

    Os pés da garota elemental, debaixo d’água, tocaram os pés da súcubo.

    Os olhos vermelhos de Clara brilharam.

    — Esse negócio de respeitar o espaço e a privacidade dos outros não faz muito seu estilo, não é?

    — Ah, Clarinha, não seja tão tímida! Não combina com você! — Lua sorriu. — Eu sei o que você tá planejando, sabia? Sinto o cheiro de suas maquinações à distância!

    — Você tá deixando a água gelada! Não gosto disso.

    — Acha mesmo que é uma boa hora? Acha que ele vai ter cabeça pra isso, depois de tudo o que passou nos últimos dias?

    — Pare de baixar a temperatura da água, por gentileza! Você está estragando meu banho relaxante.

    — Eu não posso evitar — Lua fez um olhar tristonho. — Sempre que eu entro na água, ela esfria.

    — E esse é o melhor momento para isso! Ele já tá melhor. Aquela freirinha garantiu isso. Além do mais, não tenho tanto tempo assim. Amanhã a irmã dele vai chegar… e além disso, tem aquela questão no Inferno. Baalat convocou todo mundo. Sabe-se lá o que vai acontecer!

    Lua de ombros.

    — Eu posso filmar?

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