Índice de Capítulo

    Um leve cheiro de lavanda, groselha e ervas se levantou. Um estrondo soou pela porta fechada à força. As janelas estrondaram — fechadas. Hydele parou de cantar e tentou se levantar. Nianna fechou o rosto e a princesa levou a mão a boca, dando um passo longo para frente. 

    Ereken se levantou de supetão, e um dos cavaleiros do rei deu passos longos em direção à porta, vestido apenas com um tabardo de couro e brigantina como armadura — Cei Cortiz. Os nobres o fitaram, mas o conde Siward saiu de sua cadeira para averiguar também. 

    Ambos subitamente caíram no chão.

    A velha esposa do conde Siward fora a primeira a gritar, e não fora a única: logo em seguida, a esposa e as filhas do barão Bijik soltaram um grito tão agudo que as taças tremeram. Willmina não soube reagir. Algo verde lentamente escorria pela porta, o odor das ervas ficava tão forte que seu nariz ardia; seus pés coçavam como se centenas de formigas minúsculas mordessem. Parecia que tudo estava em chamas.

    Então mais pessoas caíram: um servo, dois cavaleiros e a filha de um fidalgo que começou a chorar de medo. 

    Um fantasma verde avançava. 

    Aqueles no salão testemunharam algo como o surgir de um ser maligno: escorria por debaixo das portas, surgia dentre os tijolos e de todo lugar amaldiçoado que o vento conseguia cuspir; uma parede esmeráldica que derrubava todos que tocava e os que não também. 

    — Abram as janelas! — gritou o duque. — Abram as malditas janelas!

    Ser ouvido fora um erro. No exato instante que alguém abriu uma janela, ainda mais do verde invadiu o salão. Willmina perdeu a capacidade de respirar. Naquele pequeno segundo, centenas de nobres começaram a correr, mas de pouco adiantou. Os que estavam atônitos e próximos do verde caíram; os que tentaram correr e tropeçaram mal tiveram tempo de gemer sua dor.

    A princesa empalideceu e gritou de medo, correndo em direção do cadeirão onde sentava seu pai. O príncipe meneou a cabeça em desespero e o rei se levantou e usou a espada como porrete contra a porta próxima do cadeirão, assim como seu duque. Willmina sentiu suas pernas fraquejarem. 

    Nianna agarrou Hydele, mas antes que saísse, a parede verde as tinham coberto.

    Eram os segundos mais infernais da sua vida.

    — HYDELE! 

    Não via sua filha em lugar nenhum. Vasculhou com os olhos, mas a parede móvel de esmeralda não parava de derrubar mais e mais. “A multidão poderia tê-la pisoteado. Não, não, não, não!”, ela gritou. Ereken, pálido, correu em direção dela, mas a nuvem verde o cobriu. Estava cobrindo tudo. “Não, não, não!” 

    Poucos metros jaziam entre ela e o Verde; pouco havia de pessoas tentando fazer alguma coisa. 

    Ouvira gritos de desespero, ouviu gritos de homens e tosse, vômito; viu uma gestante cair e ser consumida pela parede e suas pernas não ajudavam em nada. Respirou o mais fundo que pôde e ergueu suas mãos. Sentiu os anéis brilhantes se formarem na sua pele, porém do seu ventre uma dor subiu como se o galho de um espinheiro tivesse penetrado seu corpo.

    Caiu de joelhos e de rosto no chão. Seus olhos latejavam. Ignorou a dor enquanto tentava focar, mas a dor enregelante do que viu foi pior: a fumaça já havia coberto quase tudo. Agarrou seu colar de quinalfero-âmbar e o Sangue Prometido no colar de vidro.

    — Deuses, não! Minha filha não!  

    Sentiu a névoa tocar-lhe os cabelos, subindo como a viscosa baba de um sapo. Sentiu seu coração arder de medo, seus pulmões se encherem de dor e, assim como abandonou seu povo, seus sentidos iam embora.

    “Minha filha não… Poupem-na… Poupem… Eu imploro…”

    Seus braços vibraram, mas ela não sentia isso. Não conseguia sentir seus pulmões respirando, e mesmo com os olhos abertos, não conseguia discernir nada. “É assim que me vou…? Sem sequer…” 

    Foi então que viu a cor do leite farfalhar pelo ar como dezenas de vaga-lumes. 

    “Uma vela…”, pensou. “A névoa parou?”, percebeu. “Minha pele arde…’ 

    ‘Ainda há vento aqui?”, pensara, sentindo como se sua mente fugisse da sensação de morte. Sentiu um tremor nos seus dedos e um barulho tamborilante. “A terra treme… Deuses… ao menos poupem ela… poupem minha estrelinha.”

    Sentiu seu coração pulsar. Suas queimaduras arderam como no dia que foram feitas. Seu coração pulsou com tanta força quanto no dia em que deu à luz à Hydele e com a dor em que Marneigg morrera. 

    “Há um deles aqui?!” Sua pele gritava. Ardia, ardia. “Niad ri nedheren draverakerter!”, gritou consigo. Willmina tinha certeza de que merecia ódio. 

    Abriu os olhos carregados de lágrimas e dor e focou na silhueta. Alguém pequeno, com as mãos erguidas apertando alguma coisa, sussurrando com um timbre sem tom, enregelante e grosso. Seus olhos eram velas de caril e açafrão, e então na sua pele cresciam retas e curvas irregulares em leite e topázio, azul-claro e brilhante. Sentia o ar, mais úmido, preencher seu nariz.

    “Resistirei! O terei no fio do meu fogo!”

    Pusera forças nos braços fracos e humilhou-se rastejando. “Maldito! Maldito seja!” Sua pele gritava com ainda mais ardor. As retas e curvas brilhantes de repente abriram feridas no corpo do mago. “Morra por tua magia!” 

    E rastejou. 

    Retas e curvas luzidias subiam pelo pescoço, indo aos pés e às pontas dos dedos do mago maldito. Sentiu o sangue escorrendo pelo mago como se o sangue fosse seu. Notou-o abrindo a boca.

    Sentiu o vórtice de sangue e névoa verde sendo sugados, como se fossem roupas sendo dobradas ao redor de bolas. Seus pulmões gritaram. Willmina sentiu como se uma mão fugisse de sua garganta; ela, que enfrentara o Lobo Branco e saíra com vida, não tinha forças para reagir. Sentiu a morte. Viu a silhueta da própria morte.

    Olhos agora cinzas e vis.

    Willmina concentrou ahnam na ponta dos seus dedos enquanto agonizava. Sentiu o fogo se formando, os anéis brilhando e queimando a luva que cobria suas mãos. “Morra, morra e morra!” Concentrou, concentrou o fogo até brilhar como um sol…

    E o zunido fora forte o suficiente para deixá-la sem ouvir nada por um breve instante.

    Só pôde sentir toda a névoa ser expelida como uma tempestade, ouvir o barulho de todas as janelas sendo quebradas. Sua raiva explodiu. Ouviu o corpo do mago cair. Sentiu o odor de sangue sobrepujar o de lavanda, groselha e ervas. Ouviu gemidos, ouviu um choro. Rastejou.

    Rastejou.

    E rastejou, com os dentes batendo de raiva.

    Rastejou, com o coração bombeando ira e ahnam fervente.

    E viu a marca da queimadura e o sangue fugindo pelo buraco aberto na barriga da filha. 

    Sua filha jazia despencada no chão como uma fruta estragada, coberta de retas e curvas de ahnam presos na pele, ferida da ponta dos dedos ao rosto. Sangue fugia pelos seus olhos, vertendo de seus ouvidos, do nariz e da boca. Sangue fugindo como um rio caudaloso; um rio que agonizava e morria à sua frente. Exceto que não era um rio: era sua filha.

    E ela a olhava com lágrimas de sangue.

    “…’

    ‘O que eu fiz?”

    Uma lufada descrente saiu do seu nariz. Sua mente ficou em branco.

    “O que eu fiz?’ 

    ‘O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?! O que eu fiz?!!!!

    ‘Eu a matei?!!”

    Imediatamente a dor de cada um dos seus órgãos virassem uma massa de sangue, cada pedaço de si como uma porcelana caindo no chão acometeu-a. O que seria mais monstruoso, um pecado maior do que uma mãe matar sua filha? Vê-la agonizando num chão encharcado do seu sangue?

    “Eu… O que eu fiz?”

    O sarônide disse que sua prole rasgaria seu ventre. “E eu a matei. Queimei-a com minha magia blasfema. A rasguei com fogo… Minha própria filha…” Suas mãos tremiam tanto que não as juntar nem para implorar aos Deuses…

    “Não! Eles a ressuscitaram uma vez, o farão de novo! Eu sei disso… Eu sei!

    Juntou todas suas forças maternas e agarrou o frasco no peito.

    “Já me deram ela de volta uma vez.”

    Agarrou e girou o frasco sem tampa. Pôs força, toda sua força, todo seu sangue. Seus músculos viraram como navalhas, rasgando cada uma enquanto o vidro fazia-se em pedaços. O sangue azul se misturou como o seu. Não tinha tempo para pensar. Não tinha tempo.

    “Já a ressuscitaram uma vez, Deuses, tragam-na de volta para mim!’

    ‘Nem que tenham que me levar em troca.”

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