Capítulo 176: O Projeto Secreto
A madrugada parecia congelada no coração de Kappz. Dante parou diante da porta do prédio, o som de seus passos ecoando na quietude como um presságio. Com um empurrão firme, ele abriu a porta e entrou, fechando-a atrás de si. A escadaria estreita e empoeirada parecia infinita, mas ele subiu cada degrau com determinação, o peso de suas decisões crescendo a cada passo.
No último andar, um corredor escuro o levou até a sala de Duna. Empurrou a porta, que rangeu em protesto, revelando a chama trêmula de uma luminária sobre uma mesa afastada. A sala era quase uma réplica de outro espaço mais público que ele e Duna compartilhavam, mas essa era diferente. Aqui, os dois se reuniam longe de olhos curiosos, um refúgio de conspirações e estratégias.
Dante sentou-se na cadeira de madeira desgastada e girou lentamente para encarar o quadro na parede. O mapa desenhado por Arsena estava coberto de marcas e rabiscos, um reflexo da mente inquieta de Dante. Ele lembrou-se das palavras de Arsena, ditas com uma mistura de exasperação e curiosidade:
— Vou precisar de um tempo para lembrar de tudo. — Ela havia resmungado há uma semana. — E mesmo que eu consiga fazer tudo isso, pra que vai querer algo assim?
— É pra ter uma noção de onde Duna e eu vamos colocar os pontos da Torre de Rádio. — Dante havia respondido sem hesitação.
Desde então, Duna dedicara dias e noites ao estudo dos Cubos de Comunicação, como se tivesse encontrado uma mina de ouro enterrada sob os escombros de Kappz. Mas, como ele mesmo dizia, de nada adiantava uma mina de ouro sem a ferramenta certa para explorá-la.
Clara sempre insistira em manter o abrigo calmo e seguro, uma utopia onde a tranquilidade reinaria. Mas Dante sabia que o mundo não era assim. O caos era a regra, não a exceção. Antecipar problemas era como antecipar golpes — um ato de sobrevivência.
“Não sou um herói,” pensou ele, lembrando-se do que fizera em GreamHachi. “Mas também não sou um idiota.”
Se Kappz tinha alguma chance de se reerguer, de se tornar algo mais do que ruínas e memórias, estava ali, diante de seus olhos. Ele sabia disso. Mas sabia também que sua visão raramente era compartilhada.
Enquanto ainda encarava o quadro, o som da porta se abrindo atrás dele o trouxe de volta.
— Ah, Dante. Ótimo. Eu estava te procurando mesmo, velho miserável.
Duna entrou com passos largos, parando ao lado dele, o rosto iluminado pela chama oscilante.
— O que está vendo?
— Posição das Torres. — Dante apontou para o leste, os olhos fixos em uma área marcada com linhas incertas. — Estou preocupado com aquela parte. Você disse que pra lá fica a Zona Cega, não é?
Duna suspirou, o peso da confirmação evidente em seu tom.
— É. Um lugar sem nada a oferecer pra gente. E bem, bem perigoso.
— Me fala mais dele. O que tem lá?
Dante perguntou sem tirar os olhos do mapa, enquanto Duna puxava uma cadeira e se acomodava ao lado dele. O outro homem soltou um suspiro pesado, como se estivesse prestes a mergulhar em um poço de memórias incômodas.
— A Zona Cega? É onde vai todo mundo que desistiu de ser civilizado. — Duna apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos diante do rosto. — Lá tem gente de todos os tipos, como uma colmeia infestada. Eles negociam qualquer coisa que você puder imaginar, de suprimentos a informações sobre as cidades próximas.
Ele fez uma pausa, franzindo a testa antes de continuar:
— Nós costumamos falar de um jeito errado sobre isso.
— Como assim? — Dante ergueu o olhar, interessado.
— Dividimos Kappz, GreamHachi e Rapier como se fossem cidades distintas. Mas, na verdade, tudo isso era uma coisa só, um único território. Eram distritos que foram se separando com o tempo, até que cada um virou uma espécie de feudo. A Zona Cega, por exemplo, já foi chamada de Mar Morto.
O canto dos lábios de Dante se ergueu, quase divertido.
— Um nome apropriado para a merda que aquilo se tornou.
— Era um porto, no passado. Uma das maiores construções da região, cheia de navios antigos. Mas foi tudo queimado pelo último rei deles, um lunático que preferiu destruir a própria base a vê-la cair em outras mãos.
Dante ponderou sobre o pedaço esquecido de história. Era estranho pensar que a cidade ainda carregava aquele fardo como uma cicatriz. Ele se lembrou da Capital, onde seis vilarejos e duas regiões anexas orbitavam como satélites, mas nunca eram verdadeiramente parte do núcleo. Governança era uma palavra que parecia escapar ao mundo deles.
— E qual a chance de eles virem para cá? — Dante perguntou, tentando avaliar o perigo.
Duna balançou a cabeça com desdém.
— Pouca, para não dizer nenhuma. Eles não têm interesse em expandir território. Tentaram da última vez, na direção de GreamHachi, mas foram detidos. Seu novo amigo, Leonardo Vulkaris, lutou contra os Três Soberanos de lá.
Dante franziu o cenho.
— Três Soberanos? Não era um rei?
— Ainda é. Mas soberano é o título que eles dão aos mais fortes de cada região. É como um reconhecimento de poder, uma extensão do nome. Todo ano, eles lutam entre si para decidir qual área é a mais poderosa.
Dante bufou. A explicação matou qualquer interesse que ele pudesse ter pelas disputas regionais. Para ele, era mais um jogo de vaidades que custava vidas.
— Sobre a Torre — ele voltou ao ponto principal, indicando uma área no mapa. — Quero instalar o Cubo de Comunicação lá sem que Clara saiba. Precisamos dessa rede funcionando o mais rápido possível. Como está o planejamento?
Duna girou a cadeira e puxou um projeto rabiscado sobre a mesa. Ele entregou a Dante, apontando com o dedo as partes críticas.
— Estou quase terminando. Entendi como a composição dele funciona com a Energia Cósmica, mas ainda preciso de uma bateria. Na Hidrelétrica deve ter uma de chumbo-ácido. Se você trouxer uma dessas, eu termino.
Dante examinou as anotações. Comparadas às de Talia, que passava noites inteiras mergulhada em equações e esquemas, as de Duna pareciam rudimentares. Mas funcionais. Ele sabia que Duna era mais prático do que meticuloso.
— Clara vai ficar furiosa quando souber que você fez isso pelas costas dela.
— Eu sei. — Dante desviou o olhar para os pontos marcados no mapa. — Mas ficar parado aqui só nos torna alvos. Cada melhoria que conseguimos atrai mais atenção. A Zona Cega, GreamHachi, Rapier… há inimigos demais ao nosso redor para ignorarmos.
Duna inclinou a cabeça, avaliando Dante com um olhar curioso.
— Você tem a visão de um general, sabia?
Dante soltou uma risada seca, como se o comentário fosse absurdo.
— Sou só um soldado. — Ele respondeu com menos seriedade do que deveria. – E preciso disso até o final do mês. Vou trazer sua bateria.
Duna elevou a mão aos céus, agradecendo em tom sarcástico.
— E veja se aquele seu garoto que constrói coisas consegue montar um daqueles moinhos para nós. Podemos converter energia eólica. Estão economizando muito no outro prédio.
Duna falava com a tranquilidade de quem estava acostumado a dar ordens, mas havia uma urgência disfarçada em suas palavras.
— Achei que ele já tivesse conversado com você sobre isso. — Dante respondeu, franzindo o cenho.
— Não. Acredito que você vai precisar falar com eles sobre tudo isso. — Duna coçou a barba, pensativo. — O garoto da máscara, o Heian, está tocando o projeto da cuba sozinho. Ele precisa de alguém com ele, sempre.
Dante ergueu uma sobrancelha, intrigado.
— Por quê?
— Acredito que ele esteja forçando demais o corpo. Não sei o motivo, mas, se continuar assim, vai acabar se matando. Nós ainda temos tempo até tudo ser inaugurado, então certifique-se de que Marcus fique no pé dele.
Havia uma franqueza inquietante no tom de Duna, algo que Dante não costumava ignorar. O velho era mais atento do que aparentava, enxergando detalhes que passavam despercebidos pela maioria. Dante apenas assentiu, ponderando.
— Vou falar com ele.
— E peça para ele vir me ver qualquer hora. Consegui uma coisinha que vai melhorar, e muito, a mobilidade dele.
Duna se levantou com a energia de alguém que acabara de revelar um segredo guardado por tempo demais. Ele caminhou até um canto da sala, onde algumas caixas estavam empilhadas. Bateu em uma delas com a palma da mão, o som abafado ecoando no espaço. Um sorriso orgulhoso e quase malicioso iluminou seu rosto.
— O que é isso? — desconfiado, Dante perguntou.
Duna virou-se para ele, ainda com o sorriso estampado.
— Isso aqui, velhote, é o presente dele.
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