Índice de Capítulo

    “Ó, brilho negro da noite

    Não há cansaço para ti

    E não a rei que não se ajoelhe.”

    Izandi, a Oniromante. Excerto de “Mistérios da Pedra de Gelo”


    — Filha do maar, sou filha do maar!

    Faina arrotou alto como um vulcão, como se fosse a própria filha do Deus Gritante. Parecia se derreter em vários pedacinhos, cada um levando algum pedaço da sua sobriedade e devolvendo com alegria. Alegria!

    — Vamos, comemorem! Comemorem!

    Toda situação lhe fazia rir. Abriram baús de pedra e neve, serviram ainda mais hidromel gelado — pois a sacerdotisa velha não entregou mais do Sangue. A Primeira se satisfez com o hidromel só nos primeiros dois dias de comemoração do seu Rugido. 

    Parara de beber, mas nem isso acabava com a embriaguez: estava acordada por três dias seguidos sem um segundo de descanso. Sequer piscou os olhos tontos e arredondados. Às vezes tentava se levantar do cadeirão, mas despencava de volta, com o mundo dando curvas. Outras vezes conseguiu, mas fora contida pelo pai.

    Afinal, queria bater no seu bisavô.

    “Velho malditu”, pensara. “Cadê meu filho?”

    Mirta e Auta participaram da celebração quando começara. Faina ficou realmente feliz quando viu seu pai e sua mãe trocando olhares e mandou que parassem de ficar em silêncio. Quando não era isso, tentava se levantar para brincar com o filho, a única criança no meio de tantos adultos com a mente tão alta quanto as montanhas.

    Com exceção de Mirta.

    Ela estava calma, evitando o hidromel que Faina mandava. Comia pouco da carne e tentava mandar Faina dormir. Não bastando isso, não permitiam que a nova Rieq amamentasse seu filho. Houve um instante onde ouvira seu menino chorar de fome nos braços da gato, que no momento estava em conversa com um homem mais novo.

    Seu coração saltou pela boca e toda tontura sumiu de si por um instante. Levantou-se do trono em um salto impetuoso e andou com pernas firmes até os três, tirando o seu filho dos braços da gato sem hesitar.

    — Aqui, aqui — sussurrou com voz serena, balançando-o no seu braço. — Mamãe está aqui, Krazhii, Krazhii; mamãe está aqui…

    No meio dos Chefes bêbados, de servos e escravos, não pensou duas vezes antes de começar a tirar o vestido para saciar a criança. Mirta, porém, a impediu. Se ergueu na ponta dos pés e tirou o menino dos braços da amiga.

    — Tem que estar sóbria, Ay rieq! — bravejara Mirta, tão enraivecida quanto vermelha com Faina agarrando seus pulsos. — Senão fará mal para seu filhinho.

    Faina ergueu o queixo raivosamente. Sentia seu coração se enfurecer, e como nunca imaginou que faria, levantou a mão contra a amiga sóbria. Mirta engoliu em seco, mas mantinha os olhos duros contra a Primeira, que cedeu. Uma lágrima com mais álcool do que água fugira pelos olhos negros e redondos do seu rosto, que caíram rumo ao filho chorando.

    Des-gulpa.

    — De-deixe que… cuido dele, Primeira — falara a gato mais uma vez. — Me chamo Likotza. Sempre quis te conhecer. Papai falava de você com orgulho!.

    A gato sentou numa cadeira vazia e ali saciou a fome do seu filho. A imagem combinava. Algo na Primeira dizia que aquela mulher nascera para ser uma mãe. “Mas é uma gato, provavelmente não pode ter filhos… Assim como aquele velho achava que eu não podia. Vou arranjar um marido para Likotza. Terá um homem equivalente à sua voz doce!”, pensou.

    Faina fizera um muxoxo e logo voltou para seu cadeirão, fazendo esforço sincero para não olhar para o seu bisavô. Os Chefes e seus filhos a ajudavam com isso: estavam gerando situações cada vez mais cômicas para a Rieq. 

    Jaromir Veiliodyr e Boyko Ryba haviam brigado com espadas há um dia, mas agora tinham tomado uma serva qualquer como mulher e ambos a dividiam em cima de uma mesa. O primogênito do filho de Tihimil cortejara as três aias de Faina com muito hidromel e decidiram se casar ali mesmo, um servo desafiou um escravo… 

    Os gatos do seu pai estavam brigando com filhos de outro Chefe por uma escrava…

    Outra hora estavam brigando na sua frente, provando-se dignos de cortejo à Primeira — até mesmo o homem que a olhava por trás. Razzin fora vencido facilmente por um dos combatentes, que o tirou a espada e cortou parte da sua bochecha. 

    Outros viam ao cortejo a servindo com comidas mais exóticas e estranhas a cada mordida. Houve uma hora que a mais recente esposa do Chefe Vladein ofereceu-a um machado de metal de vulcão, tão pesado que Faina não conseguiu segurá-lo; deixou-o cair, rindo descontrolada. 

    Foi então que decidiu tomar um prêmio ainda maior.

    Quando a amiga estava fitando os convivas se divertirem cada vez mais alcoolizados, com o braço esquerdo, a puxou pela barriga para o trono e forçou-a sentar no seu regaço. Bebera hidromel e comeu um bolo de mel do norte, então serviu outro pedaço à Mirta.

    — Ay rieq, você tem que me soltar!

    — Por quê? — Comeu mais um dos pequenos bolos doce. — Gosto de você aqui comigo! É minha boa amiga!

    — Ay ri…

    — Me chame de Faina! — Apertou o agarrão na cintura, a pressionando contra seu corpo. 

    — …Faina — Mirta corou —, tem que me soltar. Foi engraçado no primeiro momento, eu tenho certeza — agarrou as mãos da Primeira —, mas já passou do momento. É a tradição do seu povo e dos seus deuses que vo…

    — Mas você é a mais bonita aqui… — Faina rangeu os dentes. — Olha pra eles! Ademais, ademais, minha bela Mirta: eu disse que ia ficar com Razzin… 

    Mirta desviou o olhar.

    — Razzin é um gato, Ay rieq. Não pode ter filhos…

    — Até aí eu… eu.

    Ardendo como fogo em palha, um sorriso vermelho e perolado desenhou-se no rosto de Faina. A Primeira jogou-se para frente sem qualquer precaução, fazendo Mirta ir ao ar e cair. Caiu de joelhos também, com um barulho tão alto que chamou atenção de todos os alegres para si. Fechou a boca, que arfava como um animal furioso.

    Então olhou para o bisavô, com olhos de desdém. Seus olhos negros percorriam pela imagem do homem enrugado e coberto por mantos claros, até que ambos se chocaram. Ela deu um passo à frente, com as costas moles como água, então outro… O Forte a fitou de volta com os olhos que pareciam secos, então sua garganta se mexeu; mas nada falara. Ninguém conseguia o ouvir.

    Foi então que a Primeira percebeu que ele estava falando. Há tempos, toda vez que olhava para trás. Os lábios escuros e velhos se mexiam. 

    — Deveria ir pra cama, não? — bravejou Faina; ninguém ouviu resposta pelo bisavô. — O que foi, não consegue?! Quer ajuda, meu velhinho? — Sentiu Mirta tomá-la pelo braço, apertando com força; Faina rira. — Tudo bem, eu te ajudo. Tenho um coração cheio de amor e carinho para dar, diferen…

    — Tirem essa mestiça da minha frente — bravejou o Forte, a voz tão cortante quanto rouca fora afiada como se cortasse a bebedeira de uma vez. Os Chefes fitaram os dois de chofre, e antes que Faina sequer pensasse em responder, Jaromir Veiliodyr e Boyko Ryba a tomaram pelos braços. — Gatos não se misturam com leões.

    Faina se remexeu, então percebeu que estava chorando. Sua barriga se contraia como quando entrou em trabalho de parto. Sentiu uma dor excruciante no peito ardendo como fogo, bruxuleando prestes a se tornar monstruosa. 

    Quando se deu conta, sentiu-se mais uma vez caída ao chão, aos pés da mulher com olhos de leão. Ainda assim, não sentiu o medo que sentiu quando a viu. Balançando o braço para frente, jogou o Chefe Veiliodyr para frente e deu um olhar letal para o Chefe Ryba.

    — Saia! — rugira, balançando o corpo contra o Chefe. Ele afrouxou a segurada por um instante, mas fora o suficiente para que Faina corresse até o Trono de Gelo, sem ninguém perto o suficiente para impedi-la. Olhou para trás: viu Mirta caída e não achou sua mãe, nem seu pai ou a gato com seu filho. Sorriu.

    Agarrou a polpa de pele na clavícula do idoso.

    — Há mais tecido aqui do que na sua roupa, velhote. 

    O velho abriu a boca lentamente, como se sua voz saísse do âmago de uma caverna.

    — Mestiça… — saiu, pesada e grave como uma avalanche. — Coisa impura! 

    — Disse o velho que nasceu de irmãos e trepou com a sobrinha! — gritou. 

    Então acertou um tapa no rosto esquelético do Rieq. O som reverberou alto como um vulcão, e ninguém prestou atenção em como ele ficara com a pele pálida e cinzenta. 

    Faina deu um salto pesado e embriagado para o cadeirão, com os olhos cheios de lágrimas.

    — Cadê meu filho?! 

     Ouviu passos furiosos por perto, então sentiu um puxão no antebraço. Virou-se, cerrando os dentes e com a mão para o alto, mas desceu a mão e quase despencou em cima da mãe.

    — Pare com isso, doninha — falara sua mãe. Faina estava com o rosto vermelho, soluçando. — Quando acordar, vai ter a sensação mais horrível do mundo!

    — Estou bem, estou bem! Bem, bem! Não dá em nada! Quando a Noite chegar, vou estar beeem!

    Auta balançou os olhos. Sentia um misto de desgosto e nostalgia. Tinha ficado muito pior do que isso quando ela e sua gêmea, Adela, foram à noite de núpcias com rei Ominel das Ilhas Coral, no seu primeiro casamento. Quando acordara, pensou ter uma corela inteira atravessando sua barriga e cabeça, e sua irmã, que nunca fora forte com o álcool, estava numa condição ainda pior. 

    As duas brigaram tanto que se machucaram com as unhas; mas não se comparava com o que sua filha fizera.

    — Vá dormir. Deita-te em paz. — Levou a mão para a cabeça da filha e sussurrou: — Vou levar Krazdoro comigo para os quartos, e seu pai também. Queria um irmão, não? Então trate de dormir. Amanhã, resolvemos os problemas que fizeste hoje.

    Faina fitou as pessoas ao redor. Mirta parecia bem; os Chefes foram para o bisavô, que pareceu estar ainda mais velho do que já era. 

    — Desculpa… Nunca mais vou beber…

    Auta rira. 

    — Endireite as costas e vá dormir.

    Beijou a testa da filha, então ordenou que escravos trouxessem uma cama e roupas para si. Faina vestiu um vestido de couro de cavesão e deitou-se em um canto. O sono, no entanto, demorou muito a vir. Sentiu o corpo revirar e dor na barriga. Muitas vezes se levantou para tomar água, mas a festa não diminuía mesmo assim.

    Observou de soslaio que quase não havia mais luz no céu, que Mirta manteve as mãos unidas e fazia preces na língua da sua mãe, que seu pai e mãe não estava em lugar nenhum que podia ver. Quis abraçar o sono como sua mãe pediu, mas não conseguia. Com as pernas despidas e cabeça balançando, passou por seu bisavô, que reparou estar ainda mais branco e cinza, e foi embora pelas portas do fundo.

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