Capítulo 184: Inverno
Dante descia as escadas em silêncio, a mão deslizando pela parede áspera. Seus dedos arranhavam o véu de tinta fina, que descascava com a menor pressão, como se o prédio carregasse as marcas do tempo e das batalhas vividas ali. Cada passo era deliberado, quase solene, como se o peso do mundo repousasse sobre seus ombros. Ele não tinha pressa, mas também não hesitava. Sua imponência não vinha da velocidade ou da força, mas da certeza com que caminhava, mesmo que o caminho fosse repleto de incertezas.
O casaco vermelho que vestia, presente de Clara quando chegou a Kappz, estava sujo de sangue, lama e fuligem, testemunhas de uma tempestade que não dava trégua. Lá fora, a natureza rugia indomável, tão selvagem quanto os sentimentos que borbulhavam dentro dele. Quando parou no meio da escada, os sons apressados do andar inferior chegaram a seus ouvidos, e um aperto incontrolável tomou conta de seu peito. Sua mão foi instintivamente ao coração, massageando a carne como se pudesse aliviar a dor que vinha junto com a preocupação.
Clara.
GreamHachi havia tocado em alguém que era importante demais para ele. A ideia de que algo pudesse ter acontecido a ela era insuportável. Fechou os olhos, respirando fundo, tentando conter a avalanche de pensamentos. A imagem de Clara sendo solta disputava espaço com a visão aterradora de seu corpo sem vida jogado em algum canto escuro. Sua mente fervilhava, mas então a voz calma e metálica da interface interrompeu:
“Níveis de estresse elevados. Conversão Cinética em ascendência. Protocolo de Resfriamento: Estalar os dedos.”
Ele abriu a boca, puxando o ar com força, e retirou a mão da parede. Seus dois dedos se juntaram, e ele estalou com força. O som ecoou pelo prédio, e um tremor reverberou, balançando as paredes do primeiro ao último andar. Quando abriu os olhos, sentiu a raiva e a ansiedade escoarem como a onda de energia que havia liberado.
No andar inferior, a fraca luz iluminava Marcus, que o aguardava. O atirador segurava sua carabina com firmeza, os olhos atentos e a expressão impassível.
— Algo errado, velhote? — perguntou Marcus, arqueando uma sobrancelha.
Dante permitiu-se um pequeno sorriso.
— Não — respondeu, descendo os últimos degraus. — Reuniu todos no primeiro andar?
— Sim, como pediu. Os moradores estão inquietos, querem saber sobre Clara. Mas Degol e Meliah conversaram com eles para acalmá-los.
Dante assentiu e continuou descendo.
— Mesmo sabendo onde Clara está — disse Marcus, sua voz carregada de preocupação —, não temos ideia de como vamos entrar lá e tirá-la. Qual é o plano?
— Vai ficar tudo bem. Vou explicar lá embaixo.
Ao chegarem ao primeiro andar, Dante encontrou dezenas de rostos ansiosos e aflitos voltados para ele. Apesar de sua postura calma, ele sabia que sua serenidade só aumentava a tensão do grupo.
Eles precisam de respostas.
— Sentem-se aqueles que estão de pé — ordenou.
O murmúrio cessou à medida que as pessoas se acomodavam, incluindo Marcus. Dante permaneceu de pé, respirou fundo e começou a falar:
— Já devem ter ouvido que Clara não está presente. A mulher que se passou por ela se chama Decoral, uma condessa de GreamHachi. Ela veio até nós para criar caos. E, por alguns dias, conseguiu. Algumas pessoas têm o dom de nos tirar do sério, de nos fazer coisas que detestamos. Decoral usou a imagem de Clara, alguém que sempre foi muito querida por todos nós.
Ele fez uma pausa, sua voz permanecendo firme, mas o peso de suas palavras parecia ecoar pela sala.
— Clara nos manteve acolhidos. Ela nos alimentou com esperança de um futuro melhor. Hoje, ao descobrirmos que havia uma impostora, minha única vontade era destruir GreamHachi.
O tom de sua voz, embora calmo, carregava uma ameaça implícita que fez alguns se encolherem. Ele ergueu a mão, pedindo silêncio.
— Somos humanos. Alguns trabalham, outros coletam. Mas somos um grupo. Uma família. E Clara foi tirada de nós. Por isso, eu irei até GreamHachi. Mas quero que saibam: não tirarei a vida de nenhum inocente. Não machucarei pais ou mães que desconhecem o verdadeiro terror da guerra. Nunca participei de uma guerra, é verdade, mas finalizarei esta que nunca deveria ter começado.
Antes que ele pudesse continuar, Simone se levantou, o rosto marcado pela raiva.
— Acabe com eles, Dante! Não deixe que destruam nossa cidade.
— Isso mesmo! — gritou um jovem na multidão. — Clara é nossa líder. O senhor tem que trazê-la de volta!
Os clamores de vingança começaram a crescer, mas Dante ergueu a mão novamente.
— Farei o necessário para trazê-la de volta, nisso concordamos. GreamHachi a tirou de nós de forma ardilosa. Mas não sou como eles.
Ele fez uma pausa, o olhar endurecendo enquanto falava com convicção:
— Caminharemos pelas ruas de GreamHachi e marcharemos até a Cúpula. A mulher que Decoral disse ser responsável por Clara se chama Maethe. Ela não verá o fim desta semana. Juro pela minha vida.
As palavras de Dante foram recebidas com silêncio, seguidas por murmúrios de aprovação. Ele sabia que sua promessa era ousada, mas era tudo o que eles precisavam ouvir: um líder determinado, pronto para trazer Clara de volta a qualquer custo.
Eles precisavam de um líder que exalasse força e determinação, alguém que fosse o alicerce quando o mundo parecia desmoronar. Não havia espaço para dúvidas ou fragilidades; Dante compreendia isso como ninguém. A partir daquele momento, ele seria o pilar de Kappz, não apenas por causa do abrigo ou pelo sequestro de Clara, mas porque o destino de muitas vidas estava em suas mãos.
Sua mente não podia se dar ao luxo de se dividir. Ele sabia que cada decisão sua ecoaria em todos ao seu redor, como o estalo de um trovão em um vale silencioso.
— Sempre fiz questão de me apresentar aos meus inimigos — declarou Dante, sua voz cortando o murmúrio crescente da sala como uma lâmina afiada.
Os olhos que o encaravam, antes hesitantes, agora estavam presos nele. Ele ergueu o tom, a autoridade em suas palavras inegável.
— O Recruta da Capital. Foi assim que me reconheceram na primeira vez. Mas hoje, quando sairmos por aquela porta, não verão mais um recruta. Verão o Comandante de Kappz. E se eles desejam brincar no inverno, que sejam o sangue e o desespero deles a manchar a neve.
As palavras reverberaram pelo salão como uma promessa gelada, quase palpável no ar. Dante deu um passo à frente, sua postura inabalável.
— Vocês não devem manchar suas mãos com vermes e insetos. Deixem isso comigo. Se confiarem em mim, construirei, ao lado de Clara, um lugar onde ninguém jamais ousará nos prejudicar novamente.
Ele não esperava aplausos, nem palavras de apoio, e de fato, não vieram. O silêncio que se seguiu foi absoluto, exceto pelo assobio do vento que uivava contra as janelas, como se o próprio inverno estivesse atento à sua declaração.
Dante olhou para cada rosto, capturando o olhar de todos que ousaram encará-lo. Seu sorriso surgiu, pequeno e contido, mas aqueles que o observaram de perto perceberam que havia algo de inquietante nele. Um gesto quase forçado, como se carregasse um peso que ninguém mais pudesse compreender.
Sem dizer mais nada, Dante virou as costas e começou a subir as escadas. A tensão na sala era tão densa que parecia que ninguém ousava respirar. Foi então que a voz de Jix rompeu o silêncio, grave e quase em tom de prece:
— Que Deus tenha pena de GreamHachi. Nunca o vi tão irritado antes.
As palavras pairaram no ar, deixando um arrepio em todos os presentes. Dante não precisava mais de aplausos ou discursos de motivação. Ele já havia se tornado o símbolo de algo maior.
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