Capítulo 15: Tradição da neve (2)

“Que dor de cabeça…”
Uma brisa gelada lambeu sua bochecha com gosto. O frio jamais a incomodou, todavia agora seu corpo fervia. “Seja lá o que verdadeiramente for o Sangue, não me fez bem… Estou ficando sóbria de novo?” Rapidamente bateu o punho na palma, ignorando o barulho. “Meus dedos estão azuis. Estou com alguma doença? Bem, ao menos agora tenho mais manchas na pele do que mamãe.”
Não havia nada circundando o castelo além de uma vasta planície de neve e nevadeiras até os sopés das grandes montanhas, que se elevavam ao redor da outra como muralhas feitas pelos deuses. Faina viu servos, escravos e guardas munidos de lanças subindo as ameias de neve e caibros. Não gostava do que via, então decidiu ir para a planície. Deu um, dois, três passos longos para fora dos caibros quentes e tocara a neve com os pés.
“Deve haver ao menos seis metros de neve aqui”, pensou. “É bom que eu ande leve, então. Que dor de cabeça!” Pisou com cuidado em direção das nevadeiras. Elas são tão grandes que poderiam servir de casas, disse uma vez sua mãe.
Outra vez a contara que havia uma floresta em um reino que não era nem suas ilhas e nem as Ilhas Coral de Auta, uma floresta com árvores ainda maiores do que esta, com um fruto cuja semente poderia ser queimada, moída e comida ainda mais doce do que o mel.
“Meu Krazhii vai adorar”, gargalhou. “Será um grande comedor de doces como eu, tenho certeza.”
Cresceu ouvindo coisas assim. A única coisa doce que Faina conhecia além do mel era hidromel e a carne de cervos marinhos. “Estou ficando mais sóbria.” Notou-se ficando com o rosto quente. “Tanta vergonha! Mãe deve ter adorado os primeiros instantes do meu desgoverno! Ao menos desta vez não voltei com uma criança na barriga.”
Cobriu o rosto e sentou de costas a uma nevadeira de galhos tão longos que tocavam o chão. Agarrou uma fruta da neve e a puxou. “Uma pena”, não tinha nenhuma faca consigo. Bateu com toda sua força a fruta contra o tronco da nevadeira. “Esqueço que não sou tão forte quanto alta.” Decidiu deitar. O chão estava quente, e agora percebia que Mirta não parecia muito contente com seu tratamento recente.
O frio da neve parecia ótimo.
— Gostaria de senti-lo.
Fechou os olhos; assim que os abriu, sentiu como se espetos mordessem seus pés e neve invadisse suas orelhas.
— Hmm! Humm! — tentou gritar, porém sua voz saía obstruída.
— Kwala-ga! Kuili-sai! Kwala-ga!
Balançou os pés e as mãos, todavia isso a causou dor — discerniu que um a amarrou com alguma coisa que doía. Pouco a pouco sua boca foi ficando entreaberta, franziu a testa e sentiu o coração acelerar. Roxo, como se sufocado pelo frio… “Um homem roxo?! Não, não!”
— Hmm!
— Kwala-ga!
Faina sentiu seu coração queimar falhar primeira vez quando o homem roxo virou o rosto. “Um cara-queimada?! Aqui?!” Tentou mover seus pés; não adiantou de nada. Gritou mais uma vez. “Kwala-ga!”, respondeu ele em grito com sua voz seca como se gelo tivesse machucado a garganta. Debateu-se de novo, e de novo, implorando ao Deus Branco, ao Deus Gritante e ao Deus Rígido, a todos os seus deuses para que a soltassem…
— Hmmmm!
— Kwala-ga!
— HMMMMMMMMMMMMMMMMMM!
— Serin-char! Kuili-sai, falher!
O homem soltou a vara que segurava e virou-se com o rosto branco e enrugado de queimaduras contorcido de raiva. O cara-queimada agarrou uma galho da nevadeira e o quebrou, e apontou contra a Primeira, gritando na sua língua palavras que Faina tinha certeza de serem uma ameaça — principalmente porque assim que ela gritou de novo, a bateu na face com o galho.
Começou a chorar e fora agredida de novo.
Depois, o cara-queimada a chutou. Faina se contorceu e chorou, e quanto mais dor sentia, mais altos eram seus gemidos e agressões. Chorou pela dor de um novo chute, gritou pela dor da vara contra suas bochechas e da pisada no peito e na barriga. A vara fez suas costas e braços arderem; riscou seus dedos e barriga mais uma vez. Não conseguiu não gritar de dor…
Implorou e gritou em silêncio quando ele tirou uma faca cônica de osso serrado e a fez roçar vagarosamente perto do seu olho.
O cara-queimada andou para trás e jogou a faca de osso no chão. Faina cerrou os dentes e chorou ao ver o homem desamarrar a corda da roupa de pelos; tremeu ao vê-lo retirar dos pelos uma faca de algo prateado. Sentiu frio pela primeira vez quando a agarrou pela barriga e a virou de costas.
— Kwala-ga, kui… — Ouviu um sibilo e um grito.
O cara-queimada de repente estava de joelhos, agarrando uma seta fincada ao ombro. Faina notou de soslaio um homem de branco vindo em um cavesão magro e rápido passá-lo no fio da espada. Gritou ao ver o corpo sem os ombros e a cabeça com os ombros escorrendo na neve.
— HMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMMM!
— Não grite, podem haver mais deles aqui. — Ouviu-o descer do cavesão, assim como reconheceu sua voz. — E eles com certeza estão.
Uma lâmina afiada libertou Faina, cuja primeira reação foi abraçar seu tio infame com tantas lágrimas que, se não fosse uma Arrundria, teria perdido os olhos por congelamento. “Tio, tio, tio, tio!”
— …Me solte — sussurrou, mas ela não parava de chorar. Pegou-a pelos ombros e a empurrou com delicadeza. — Engula o choro. Temos que voltar para o castelo. — Montou no cavesão, que tinha uma manta que Faina nunca vira. — Se chama sela. Facilita a subida. Agora vem!
— …Obrigada, tio Draziz… — fungou e secou os olhos com o ombro. — O senhor me salvou…
Draziz ficara em silêncio. Invés disso, ajudou-a a subir no animal e partiu em disparada para o castelo. “Os maus rumores são todos mentira, agora tenho certeza”, pensou ela. Parar de chorar era difícil.
— Aqueles malditos… Como conseguiram atravessar a Agulha?!
— Tio? — Faina se segurou melhor nele. Vestia uma loriga de couro, coberta por ainda mais couro e placas de um metal muito brilhoso e uniforme. Sobre a cabeça, usava um elmo de uniforme e brilhante, com chifres espetados. Faina notou até que sua espada não parecia com as das Ilhas Nevadas: era reta, limpa e lisa, com um único gume. — Por que eles estão aqui? Eles não queriam ficar longe de nós? Não nos odiavam?
— …
Imediatamente Draziz fez seu animal rumar em alta velocidade. Faina teve sua longa cabeleira esvoaçando pelo ar; nem um cavesão furioso aguentava correr tão rápido. O vento colidiu com a sua cara até transpassarem o bosque, e então viram os caibros que serviam de peso para o castelo — silencioso. As costas do castelo pareciam idênticas para Faina. Os mesmos caibros e chaminés longas cuspindo fumaça e comendo lenha, torres de neve pisada e passadiços. Draziz inspirou fortemente e desceu do animal.
— Alguma coisa está acontecendo. — Desembainhou a lâmina. — Fique aqui, princesa. Minha Prina é bem treinada. Basta que bata no seu pescoço com um pouco de força e ela fugirá sem outra ordem pra um lugar que só nós conhecemos… — parou, para o mal do coração de Faina, e a fitou. Sentiu-se devorada viva, com as feridas ardendo; seu tio somente sacou uma adaga longa da cintura. — Não tenha medo de usá-la.
— Eu já matei um homem… — disse ela, com a voz tremendo. — Você me ensinou…
— E quase foi expulsa de nossa família por isso, e por aquilo e mais outra coisa. — Ele se virou para frente, mas voltou o olhar para Faina. — Perdeu o menino?
— O tive forte e saudável!
Draziz ficou feliz, então devolveu a atenção para a entrada vazia do castelo. Faina deu a sua para a adaga: o cabo era enrugado e grudento na sua mão; a lâmina, brilhante e lisa. Fez o exercício de contar na língua de sua mãe, cujos números eram maiores, mas de nada adiantou. “Brisa, calor, o vento calmo da manhã, água em copo, um pinheiro cheio de folhas. Neve parada… Uma floresta cheia. Pássaros dormindo. Ovelhas cansadas. Um barco parado no porto. O mar quieto. O sorrir de uma criança. Da minha criança.’
‘Krazdoro está lá dentro.”
Viu a fumaça parar de sair das chaminés e ficou parada por um instante… até sentir o odor de sangue. “Não é de um porco selvagem.”
Desceu do animal e pediu para que ficasse, então correu pelas passarelas de entrada do castelo feio e congelado. As dores latejavam quanto mais açodava, pioravam quanto mais fumaça faziam seus olhos arderem. Correu em meio da fumaça até pisar em algo molhado sobre o chão quente. Um escravo jazia com seu nariz arrancado e barriga dilacerada.
Os olhos de Faina arregalaram e sua barriga quis sair pela garganta. Caiu de traseiro ao chão, agarrando a boca e chorando mais lágrimas do que sabia ter. Tentou mover o ferido, balançando seu braço duro e ensanguentado. Conhecia aquele escravo. Ficaria livre em mais um mês de trabalho. Cerrou os dentes e mordeu o lábio de baixo. Viu as mãos brancas, azuis e agora vermelhas.
— Mãe, Mirta…! KRAZDORO!
“Ahhg!”
De longe vira a desgraça. Havia corpos jogados pelo salão de festa. A velha sacerdotisa estava caída ao chão sem metade da cabeça, o jovem que se casou com as aias estava pálido, sem uma das pernas e braços e uma de suas esposas estava com uma flecha atravessando a barriga. Um Chefe abriu a cabeça queimada de um homem roxo, que tentava rastejar em direção de uma mulher cara-queimada sendo degolada por Razin, que sangrava por seu rosto todo. Skjá Vladein, seu pai, estava caído sobre uma mesa, com quatro flechas atravessando-lhe da cabeça à virilha.
E estes eram só os que conseguiu olhar com uma simples olhadela. Havia muito mais. Faina vomitou uma massa verde e vermelha. Ao ver seu bisavô com uma flecha na barriga e outras no peito, sentiu o coração ficar estranhamente calmo; mas assim que voltou o olhar para o resto, mal conseguia ficar com os olhos abertos.
— Krazhii! Meu filho! Mãe! Pai! Mirta! — ela gritou, cada vez mais pálida e sem força. — Draziz! Mãe! Pai! Mirta! Alguém viu meu filho?!
Não conseguia olhar para lugar nenhum do salão; havia mortos demais, mais do que sabia contar. Suas pernas pareciam folhas em uma ventania. “Não posso ficar parada, não posso, não posso, não posso!!”
— Krazdoro! Draziz! Mãe! Pai! Mirta! — Vomitou. — Krazdoro! Dr-Drazis! Mãe… — Saiu do salão. — Mirta! Pai!
A Primeira subiu a escadaria com degraus manchados de sangue congelado e corpos. Subiu e correu para quartos. “Os quartos são seguros!” Tinha certeza disso. Tinha portas e paredes de metal de vulcão. “Nada pode cortar metal de vulcão! Mamãe, papai e Mirta devem estar seguros lá”
Tropeçou nos caibros secos. Quase não havia sangue neles. “Os homens devem ter defendido!”
Segurou a adaga, com um sorriso crescendo a face e bateu na primeira porta de metal de vulcão.
— Mãe! Pai! Mirta! — Bateu com ainda mais força, meneando a cabeça entre a subida e o quarto. — Qualquer Chefe, qualquer um! Abra a porta!
Ouviu um rangido metálico e viu Mirta manchada de sangue, pálida, com seu vestido de Esposa de Deus rasgado e manchado…
— Mirta… — Chorou, e chorou ainda mais ao notar sua mãe, pálida, com os lábios azuis e olhos sem cor, caída ao chão como frutos apodrecidos de uma má colheita.
Ela não fazia nenhum barulho. Nenhuma das duas fazia qualquer barulho.
Nem Faina.
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