Capítulo 184 - Mausoléu ao Sol

Ana despertou com o som do vento sussurrando ao seu redor. Era fraco, mas constante, como se carregasse os ecos de tudo que havia desabado ali.

Ela abriu os olhos lentamente, piscando contra a luz forte que atravessava o vazio onde antes havia uma cobertura. A claridade era implacável, forçando-a a ajustar a visão enquanto tentava entender o que restava do castelo de Insídia.

“Não foi só um sonho… Nunca é só um sonho…”

Encarou a própria mão por um instante, vendo o relevo da cicatriz distorcida, e sem dizer uma palavra, se levantou.

Cada movimento vagaroso, como se o peso do que havia acontecido estivesse ancorado em seus ossos. Ela ignorou a dor, havia algo mais urgente para processar.

Alex sentado no chão, visivelmente debilitado, mas já consciente. Miguel estava ao lado dele, ajudando-o a ajustar a postura.

O domo de pedra que os havia protegido não existia mais.

Na verdade, nada existia mais.

O castelo que outrora fora símbolo de Insídia agora era um campo de escombros. Com a intensa iluminação da manhã, se assemelhava a um mausoléu ao ar livre. As paredes, ou pelo menos as que ainda estavam de pé, eram apenas fragmentos que mal sustentavam sua própria existência.

O chão ao redor de Ana estava irregular, uma fusão de diferentes níveis que haviam colapsado uns sobre os outros. Muitas partes afundaram profundamente, formando crateras cheias de destroços. Era como se o castelo inteiro tivesse sido comprimido, esmagado pela força de algo muito maior do que ele. 

Ana suspirou.

Ela já havia visto destruição antes. Tinha sido a causa dela mais vezes do que gostaria de admitir. Mas havia algo particularmente opressivo naquele cenário.

“Matar conhecidos tem um sabor ruim…”

O pensamento caiu junto com seu olhar, repousando sobre sua arma negra, que a esperava a seus pés.

Sem pressa, a pegou e a girou levemente, analisando a forma. Agora teve mais tempo para verificar as duas protuberâncias deformadas na ponta que chamaram sua atenção. 

Parecia uma pequena cruz na ponta da arma, e ela, desgostosa, passou o dedo pela lâmina, testando sua afiação.

— Bom, ainda corta… — murmurou, com um sorriso cansado.

Assim, riu, mas um riso sem real humor. Apenas um reflexo, uma reação automática que não chegava aos olhos.

Quando levantou o olhar, viu Nyx.

Seu corpo permanecia onde havia caído, imóvel e sereno.

Por um instante, Ana tentou manter o sorriso, mas o gesto morreu em seus lábios antes de voltar a se formar completamente. A barda jazia no mesmo lugar onde sucumbiu, e algo no silêncio ao seu redor fazia com que cada pensamento parecesse pesado demais para ser verbalizado.

A encarou por mais alguns segundos antes de franzir a testa. Algo estava faltando.

— Onde está a Jasmim?

Miguel ergueu a visão, seus movimentos lentos e deliberados, como se estivesse reunindo forças para responder.

— Você talvez não acredite… mas ela simplesmente sumiu no ar  — disse ele, e mesmo em sua voz havia um tom de dúvida, como se ele estivesse lutando para aceitar o que havia visto.

Ana estreitou os olhos, observando-o por um momento. O mascarado não mentiria para ela.

— Certo… — respondeu ela finalmente, soltando um suspiro.

De que adiantava insistir no assunto? Se Jasmim havia desaparecido, então havia forças maiores em ação. 

Não adiantava pensar no que não compreendia.

Virando o rosto, Ana notou então outra ausência.

Ou melhor, meia ausência.

A parte inferior do corpo da Colecionadora havia desaparecido completamente em uma das profundas crateras.

Já o resto de seu corpo estava caído perto de um monte de escombros, sua cabeça virada na direção de Ana.

Seus olhos permaneciam abertos, fixos, carregando uma surpresa que nunca teria tempo de se transformar em qualquer outra coisa.

Caminhou até ela, e com um movimento de seu pé, Ana virou o corpo de Natalya.

— Se fodeu… hehe…

Contendo o riso, se abaixou, enfiando os dedos no centro do peito metálico e puxando com força até remover seu núcleo.

Era uma peça brilhante, com energia remanescente pulsando em seu interior. O item parecia quente ao toque, como se ainda carregasse vestígios da força que havia alimentado Natalya.

— Quem sabe consigo aprender um pouco com essa merda toda — resmungou, girando o objeto entre os dedos enquanto analisava sua estrutura.

Então, algo mais captou sua atenção.

Preso entre os fios de cabelo desgrenhados da mulher morta, havia um pingente.

Ana franziu a testa.

“Não me lembro dela usando adornos.”

A peça parecia completamente fora de lugar, especialmente para alguém tão prática quanto a Colecionadora.

Sem enrolar mais, estendeu a mão e o pegou sem qualquer delicadeza, puxando-o e inclinando o objeto para a luz do sol, estreitando os olhos para analisá-lo melhor.

Era uma peça rústica, pequena, com uma superfície áspera e desgastada pelo tempo. Mas o que realmente a fez parar foram os pequenos riscos gravados no metal.

— Padrões rúnicos… — murmurou, seu tom mais curioso do que alarmado.

As inscrições eram diferentes de tudo o que ela conhecia. Não pertenciam a nenhum sistema rúnico que tivesse encontrado em suas viagens ou estudos.

Guardando o pingente no bolso por desencargo de consciência, ela lançou um último olhar para o corpo inerte.

Se preparou para continuar investigando o local, quando, ao longe, avistou algumas figuras caminhando lentamente entre as ruínas. Elas eram pouco mais do que vultos em meio à poeira, movendo-se com cuidado entre os escombros.

Ana apertou os olhos, tentando identificar se eram aliados ou inimigos, mas a distância e a fumaça impossibilitaram dizer com certeza. Podia lutar, mas optou por seguir seu caminho.

Com um gesto rápido e silencioso, chamou Miguel e Alex, apontando para que a seguissem.

Miguel se levantou sem hesitação, mas o guerreiro permaneceu onde estava.

— Não posso ir — disse ele, sua voz rouca, quebrada. — Ele ainda não acordou.

Alex olhou para o corpo do irmão com uma expressão fixada de esperança. Mas Ana sentiu o cheiro antes mesmo de olhar: o odor do cadáver era ainda mais intenso do que há algumas horas.

A rainha apertou os lábios, fechando os olhos por um instante antes de se virar completamente para a cena.

— Ele está morto, Alex — sua  voz era tão direta que parecia cortar o ar.

O homem virou a cabeça lentamente para ela, os olhos semicerrados.

— Não, ele só precisa de mais tempo. Ele vai se levantar.

— Não. Ele não vai.

O tom de Ana era gentil, apesar de conter um pequeno toque de crueldade.

— O cheiro está aí. O sangue está seco.

Alex piscou, sua expressão oscilando entre negação e desespero.

— Eu… 

Cansada, a rainha deu um passo à frente, abaixando-se e segurando o pugilista diretamente pela mandíbula. Seu tom paciente se dissipou, e uma autoridade que não costumava utilizar tomou seu lugar.

— Se ele estivesse vivo, você seria o primeiro a notar. Você sabe disso, ele está morto, e você ficar aqui não vai mudar nada. Levante-se. Agora.

Por um momento, Alex não respondeu. Seus punhos tremiam levemente, como se ele quisesse lutar contra as palavras de Ana. Mas, finalmente, ele desviou o olhar e assentiu com dificuldade.

— Tá bom… 

Ana deu um passo para trás, observando-o enquanto ele se levantava, os ombros curvados pelo peso da perda.

Por fim, lançou um último olhar para o corpo de Nyx.

Ela merecia mais. Mais do que ser deixada ali, em meio aos escombros de um mundo em ruínas.

Mas não era a hora de carregar um corpo.

Ana respirou fundo, pegou o alaúde branco que repousava aos seus pés, o prendendo às costas com uma tira improvisada de tecido, e comprimindo a dor no peito, se virou.

Os três caminharam lado a lado, em silêncio.

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