12 / O que mora nesse escudo
— O que você quer ser quando crescer?
— Quero ser um capitão da Força de Defesa!
— Ooh, menino ambicioso! Mas pra quê isso?
— Eu vou poder proteger o país todo e ganhar bastante dinheiro, aí você nunca mais vai ter que trabalhar, mamãe!
Faz bastante tempo, mas me lembro, como se fosse ontem, do dia em que ela ouviu essas palavras. Ficou quieta me olhando por alguns segundos com sua face pálida e magra e depois me abraçou, em lágrimas. Eu me senti mal. Pensei ter falado algo que a deixou muito triste. Em resposta, eu a abracei de volta e disse:
— Não fica triste mamãe, eu vou te proteger também!
Eu tinha o quê, seis anos? Crianças são mesmo engraçadas…
— Deixem ela em paz!
Eu gritei isso, na frente de um beco com dois meninos mais velhos se aproximando de uma garota. Ela estava mais que assustada e não posso dizer que eu também não estava, mas tinha colocado na cabeça que devia ajudar todo mundo se quisesse alcançar meu sonho. Meus pais dependiam de mim, era o que eu pensava.
— Segura ele aí pra mim, cara! — disse um dos grandes para o outro, depois de já ter me dado um bom soco no nariz — Vamo lá, heróizinho, vai fazer o quê agora?
O outro cara soltou fios de arame pelas mãos e me prendeu na parede, enquanto o outro preparava um soco.
Eu costumava me envolver em confusões várias vezes, quando era mais novo. No fim, não conseguia mudar muita coisa e só chegava em casa surrado… Parando pra pensar, com certeza eu só dei trabalho pra minha mãe que mal tinha tempo pra descansar em casa. Eu estava tão focado nessa ideia de defender todo mundo que só prestava atenção em mim mesmo, mas naquele dia, enquanto estavam para bater em mim, olhei pela primeira vez para a pessoa que eu estava protegendo.
Um rosto chorando, com lágrimas que se desculpavam por me envolver nos problemas. Um choro de angústia, torturando-se no pensamento de ser fraca. Pessoas se culpam por coisas que nem ao menos têm controle… Foi então que, naquele mísero instante, eu entendi. Era para isso que eu tanto buscava seguir o meu sonho: para acabar com esse choro que tanto lembrava o rosto da minha mãe.
A partir daquele momento, lembro de poucos detalhes. Meu corpo ficou quente e meu coração acelerou. Eu gritei. Não sei como, mas havia me soltado dos fios de arame. Quando me dei conta, os dois valentões estavam desacordados no chão, com hematomas no rosto, e eu, de pé, com um escudo dourado de mais de um metro no meu braço esquerdo. Um escudo belo e reluzente, magnífico, cujo único propósito era limpar lágrimas de culpa e proteger os fracos. Se nesse mundo existissem mesmo tantas pessoas que não podem se defender sozinhas, eu faria isso por elas. Essa era a razão da minha existência. E esse foi o meu Despertar.
Então, a partir de que momento, eu deixei de agir assim?
Não, é claro que sei quando foi. No último ano do ginasial, a inocência desse sonho de criança, morreu.
— Eew! Que nojento!
— Para, por favor, não faz isso!
Lembro dessa cena. Um menino que amava insetos. Ele conseguia se comunicar com eles. Por isso não consigo imaginar o tamanho do sofrimento ao enxergar sua caixa de besouros no chão, com um deles sendo esmagado pelo sapato de um garoto, por ordens de uma elfa ruiva, a minha namorada.
— Alguém devia chamar o controle de pestes! Ninguém tem inseticida, não?
Eu só fiquei olhando isso acontecer, assim como todos naquela roda de pessoas no pátio, observando a situação sem mover um único dedo. Sei que não posso culpar apenas a influência dela. Eu não agi. Nada mudará isso, ou o fato daquele menino ter ido embora.
— Yunni… não acha que… pegou pesado demais dessa vez?
— Hm?
— Já é o segundo que você faz sair da escola…
Lembro-me daquele rosto doce, distorcendo-se em um sorriso estranho.
— Eu fiz ele ir embora? Álli, esperava mais de você. Está dizendo como se eu tivesse feito algo ruim.
Eu não pude fazer outra coisa senão arregalar os olhos. Ela se aproximou de mim, como sempre costumava fazer naquela época, e segurou a minha mão.
— Você não acha mesmo que o que eu fiz foi errado, ou acha?
— M-mas… alguém pode falar pro diretor…!
Ela soltou um risinho e se virou, voltando a andar. Olhando para aquele cabelo esvoaçante, perfeitamente cuidado e perfumado, eu entendi: “Ah, não daria em nada, né?”
Fazendo tudo que queria, como e quando queria. Construindo e forçando a sua própria verdade. Sem medo, sem consequência; assim é Yunni Heartz.
Naquele dia, me dei conta da maior força nesse mundo: a dominação. Ou você se impõe e domina, ou será então dominado. Por isso Yunni era tão popular. Frente a isso, é impossível manter desejos ingênuos de criança. Nesse mundo que gira em torno da dominação, não existe algo tão nobre quanto proteger os fracos.
Pouco tempo depois do incidente, ela terminou comigo. Pensando bem, me pergunto se houve algum momento em que ela realmente gostou de mim, nisso tudo.
Tenho que admitir. Ter você me fazendo lembrar disso tudo…. me irrita, Sora.
•
— Álli. Você é um defensor, né? Não foi isso que me falou?! Então vem, me mostra seu escudo!! — disse Sora.
— Vê se para de falar como se soubesse de tudo! — Álli ergueu o braço e fechou o punho. Sua mão bateu fortemente contra o próprio peito, emitindo um brilho dourado.
Sora fechou os olhos perante o brilho, seu erro.
BAM!
Um impacto bem no peito o jogou para trás.
“Isso foi metal?!”, pensou. Antes que caísse no chão, Sora abriu os olhos e firmou os pés. Na sua frente, o garoto loiro segurava um escudo circular dourado, um pouco sujo e riscado, preso ao antebraço através de uma luva. Em seu rosto, uma expressão desconcertada e irritada.
Após acertar o primeiro golpe, ouviram-se alguns gritos de empolgação na plateia. Em meio a ela, a elfa apenas sorria.
Na seção mais alta da plateia, o homem de uniforme azul quase coberto por distintivos se sentava numa cadeira elevada.
— Diretor Oda — disse Falcon, aproximando-se do outro homem — o que acha do desempenho dos alunos nestes primeiros três combates?
— Hm, cada um deles mostrou tudo que sabe, isso é fato. O que me preocupa mesmo agora são…esses dois. E pensar que iriam cair um contra o outro. Coincidências podem ser bem esquisitas. Diga-me um pouco, como vai esse Sora?
— É um aluno razoável, mas ainda é cedo para pegar o seu perfil. Aceitamos ele apenas por recomendação da senhorita Nobléte, mas ele ainda tem que mostrar o porquê disso.
— Muito bem… Vejamos como o combate vai se desenrolar.
De volta ao campo, Álli voltou à sua posição inicial e levou o braço com o escudo até a frente do corpo. Não servia de muito; aquele escudo não conseguia cobrir nem mesmo o braço todo. Ele soltou um breve resmungo.
— Aê! Isso que eu queria ver! — soltou Sora.
— Para de falar como se isso fosse grande coisa… Assim como na primeira vez que eu te contei do meu poder, você continua falando como se fosse o máximo!
— E não é? Tipo, flechas não são nada pra você!
— Você… você não sabe de nada! — gritou Álli.
— Ué, então me conta.
— Tsc, agora não é hora de conversa!! — Ele levantou o escudo e disparou em corrida. O escudo à altura do peito não lhe servia de muita proteção, mas não é como se fosse necessário muito mais para se proteger de punhos.
“Ele vem pro corpo-a-corpo! Beleza, a tia me ensinou um pouco disso, eu consigo!!”
Os olhos de Sora se fixaram na imagem do outro: no corpo, nas juntas, no menor dos movimentos. “Para evitar muito bem um golpe é preciso antes entendê-lo. Ler um ataque é essencial para seguir o caminho da vitória, assim como você fez contra o fantasma”, lembrou-se de algumas palavras que Aisaka o disse no treinamento.
“Ele não vai se mover? Que irritante…!”, pensou Álli, levantando seu braço esquerdo com o escudo a menos de um metro de distância do seu alvo.
O braço desceu, desenhando um arco na direção do ombro do adversário, mas não conectou; Sora viu a resposta antes do golpe chegar. Sua palma aberta bateu violentamente contra o antebraço de Álli na horizontal, quebrando a trajetória do ataque.
— …eh? — Álli perdeu o equilíbrio graças ao peso extra do escudo, carregando seu braço para o lado oposto. Ele tentou pisar firme com o pé esquerdo e recuperou a postura. A perda de equilíbrio foi rápida, durou um segundo, mas era o que Sora precisava.
A análise, a resposta e a oportunidade criada, o levaram para o soco perfeito, dado bem no meio do peito.
— Ghh!! — o loiro tossiu, caindo no chão. E tossiu mais duas vezes.
Ouviu-se a plateia vibrando pelo golpe. Apesar disso, Yunni era a única na fileira rangendo os dentes.
— Eita! — Sora se aproximou de Álli, que estava com os dois braços pra trás no chão. — Foi mal, isso deve ter doído! — E estendeu-lhe a mão.
Álli ficou quieto.
— Ei, consegue continuar? — disse o monitor da luta, dando um passo à frente.
“… Essa irritação…”, Álli pensou, dirigindo o olhar para a mão estendida e aquela cara inocente e preocupada. “Entendo, vem disso…”
— Te machuq—
— Sora. — Álli se levantou, sozinho.
— Hum? — Sora recolheu a mão e contorceu o rosto, depois do soco no estômago recebido de supetão. — G-gah!
Álli suspirou, puxando o punho de volta. Sora ajoelhou, com as duas mãos na barriga e um olhar de dor.
— Isso vai te fazer muito mal, isso de estender a mão pra qualquer um — continuou Álli.
Sora ergueu a cabeça para encará-lo de volta, encontrando um par de olhos estranhos. Estavam tristes? Irritados? Talvez uma mistura disso tudo e mais coisa? Não sabia, mas não gostou deles.
— Agora entendi — disseram os olhos do loiro — É por você se parecer tanto comigo antigamente que me irrita.
Sora arregalou um pouco os olhos.
— Dando as respostas mais bestas pra tudo, sorrindo, indo atrás das pessoas mesmo quando não querem você…— mesmo dizendo estar irritado, não era isso que transparecia na sua voz.
Aquilo era verdade, a tamanha inocência naquele rosto de criança o irritava, então por quê não conseguia brigar?
— …Tenho certeza que já se intrometeu em muito lugar onde não foi chamado só pra ajudar alguém, né?
— Hm? Pensando bem — disse Sora, levantando-se com a mão na barriga — Acho que sim, hah! — Conseguiu encaixar um sorriso, meio ao olhar de dor.
— Tsc! Pessoas assim vão sofrer enquanto não perceberem que seus sonhos são só uma ilusão. “O ideal de proteger. O desejo de defender o mais fraco, tal coisa… Não! Álli, foco.”
— Eu…não sei se entendi direito. — Sora olhou para o chão.
Álli cerrou os punhos, firmando o escudo.
— É. Você não precisa entender. “Isso mesmo. Só tem uma coisa que eu preciso fazer. Se eu não fizer isso, então…”
“Vê se detona com ele!”. Aquela maldita voz corrosiva na sua cabeça o lembrava do que precisava ser feito. Com olhos marejados, frustrados, ele ergueu o punho do escudo, olhando para aquele que não lançava de volta nenhum rancor.
“Eu preciso te derrotar aqui. Eu preciso vencer. Se eu não fizer isso, ela com certeza vai…!”
— Você não precisa entender, só precisa não ficar no meu caminho, Sora…!
O poder que Yunni tinha sobre os outros -era isso que ele precisava ter. Se Álli não fizesse isso a partir de agora, derrotando Sora, então todo o esforço de ter chegado até ali seria em vão.
O punho desceu sobre Sora, carregado de sentimentos. A frustração, angústia e culpa. Talvez tenha sido por isso que…Sora agarrou aquele punho sem nenhuma dificuldade.
— O-o quê? — Álli ficou surpreso. Tentou puxar a mão, mas sem resultado. Tudo bem, se uma mão estava presa, era só usar a outra. Entretanto, antes que ele pudesse terminar um soco com a outra mão, essa também foi agarrada. — E-ei! Me solta! — Álli pediu, mas em resposta, Sora apertou ainda mais. Olhando para o rosto dele, pela primeira vez, Álli viu raiva.
— Você tá certo. Não sei muito do que você tá falando, mas ainda assim…!!
Naquelas mãos que havia agarrado, Sora sentiu o peso da frustração. Para livrar o outro daquilo, precisava acordá-lo. Em um ímpeto, curvou o corpo e bateu a cabeça contra a testa de Álli, como um martelo em um prego.
Os dois resmungaram de dor na mesma hora. Sora soltou os braços do loiro, deixando-o cair no chão.
— Ainda assim, tá óbvio que você tá sofrendo! — disse Sora, conseguindo se manter de pé depois de cambalear.
— Você fala isso depois de me dar uma cabeçada! Você tem um parafuso a menos, não é possível. — Álli se levantou com a mão no meio da testa, resmungando de dor.
— I-isso não é importante! Não tem graça lutar com você desse jeito.
— Tsc, você não entende. Não tenho tempo pra isso. Eu preciso ganhar, não posso ser… E-eu preciso de dinheiro, entende? Preciso desse tipo de poder! O jeito que você quer fazer as coisas não funciona! — Álli gritou, balançando os braços de um lado para o outro.
— Mentir é feio.
— Huh?
— Para de mentir. Foi você que falou: o mundo pode até ser assim, mas não devia ser, né?! Você que disse que era errado!
Álli arregalou os olhos.
— Aquela conversa no terraço. Por que você ainda lembra disso…?
Sora cerrou os punhos e levou uma mão ao peito.
— …Eu sou meio burro. Me confundo muito e é fácil pra eu entender alguma coisa errada. Você sabia e por isso falou isso pra mim. Então eu pensei… se é alguma coisa que faz você falar tão preocupado, então só pode ser algo muito importante!
— Tem razão! Mas…mas e daí?! — disse o loiro com um olhar melancólico. — Não devia ser assim, mas não tem nada que dê pra fazer!
— Então vai só seguir um caminho mesmo não gostando dele?
— Não tenho escolha! Eu…
Álli não conseguiu continuar a frase, graças ao tapa bem dado na lateral do rosto.
— Q-quê? — disse ele, levando a mão pra bochecha vermelha.
— Você desistiu e agora não consegue ser homem e encarar isso? Fica falando que não tem jeito ou que é muito difícil, só porque largou a mão! — Sora levantou a voz. — Não é por um motivo desse que você tem esse escudo!
— Tsc! Seu…você não sabe nada sobre mim!
— É verdade, mas o que eu sei é pelo que você tinha que usar esse escudo. — Sora abaixou um pouco o olhar, mirando seus próprios pés. — No primeiro dia depois do intervalo, ninguém veio falar comigo. Eu tentei falar com as pessoas mas todo mundo me ignorava ou mandava embora. Mas você me deu oi.
Álli desviou o olhar para o chão.
— Me perguntou qual era meu objetivo aqui na escola…
— E você falou que só queria ficar mais forte, eu lembro, e daí? — interrompeu Álli.
Com a resposta do outro, Sora abriu um discreto sorriso e levantou o olhar.
— Cê devia lembrar o que me respondeu quando eu fiz a mesma pergunta. “Eu quero proteger todo mundo da nação!” — Álli, voltou seu olhar para o menino que soltou um curto riso. — Caramba, eu achei isso foda!
— Eu… eu sei que eu disse isso.
Sora dizia a verdade, Álli realmente respondeu aquilo. Ele sabia que um ideal desses não tinha como funcionar, mas não conseguia mentir sobre o que queria parecia tão…errado.
— Mas não dá…! Não desse jeito! — continuou o loiro, olhando para o próprio escudo. Guardou repúdio no olhar, jogando-o em todos esses anos no objeto pequeno e riscado. Suas pernas por um instante vacilaram, enquanto ele apertou o escudo com a outra mão. Sua garganta pesou, como se algo estivesse preso. Não percebeu naquela hora que era ele mesmo tentando segurar o choro. — Proteger os fracos num mundo desse… Mesmo que fosse possível, como eu conseguiria defender qualquer pessoa com um escudo desse?!
E ele apertou mais forte o escudo. De fato, agora parecia tão frágil que dava a impressão de poder quebrar caso Álli apertasse mais forte.
— Isso aqui é uma porcaria miserável vindo de alguém miserável. Como eu poderia pensar em defender alguém, se o que faço é só contribuir pra essa loucura de realidade?! — disse o loiro.
— Hum… Mas mesmo falando isso você tá aqui. Se tivesse falando a real, já teria ido embora.
— Huh? — Derramando lágrimas compostas pelo remorso, Álli levantou a cabeça em direção a voz do outro, só para se deparar com um sorriso.
Uma brisa passou pelo céu aberto da arena, batendo contra os dois. Naquele ponto, muitos da arquibancada estavam reclamando da falta de ação enquanto professores tentavam acalmá-los, mas o barulho não incomodava os dois. Álli não se incomodava, porque seus olhos só estavam olhando para a expressão tranquila do outro com cabelos brancos balançando no vento.
— Se você ainda tá aqui… — Sora abriu o sorriso. — Então é porque ainda tem alguém que você quer proteger, né?
Álli ergueu as sobrancelhas.
“O por quê eu ainda tô aqui? Alguém…”
Alguém.
Alguém que sempre olhou para ele com carinho; que chorou quando ele contou o porquê queria ser um capitão.
Alguém que ele amava com todo o coração, que jurou que sempre iria defender.
Não fica triste mamãe, eu vou te proteger também.
— Sim…! — disse o menino, perdendo a força das pernas e cedendo no chão, ajoelhado em lágrimas. — Ainda tem…alguém que eu quero proteger! — Levando o escudo para o peito, ele o abraçou. A arma que jurou usar para evitar lágrimas de serem derramadas, discretamente, brilhou no seu centro por um breve momento.
— E eu sei que você não quer desistir dela. Certeza! — Sora sorriu com os dentes e sentou no chão de pernas cruzadas, bem na frente do outro. — Tudo pode parecer bem difícil, mas querer defender as pessoas não é algo só muito foda?! — ele riu.
— Diretor, irei parar a luta. O menino parece não poder mais continuar — disse o monitor depois de muito observar a luta do canto da arena, comunicando-se com o diretor através de um walkietalkie.
— Não, não. Espere um pouco — Oda respondeu do topo da arquibancada, segurando seu rádio. Ele tinha um olhar afiado, interessado, mas também um sorriso de canto — O duelo já foi decidido, então só espere um pouco.
— Certo.
— Falcon? — perguntou o diretor para o senhor ao lado dele, que observava muito bem a luta com olhos centrados. — Conseguiu ouvir tudo lá de baixo, imagino.
— Sim, senhor.
— Pois vamos lembrar disso bem. Essa é a prova de que ainda falhamos como instituição. Vamos melhorar, Falcon. Em tudo que pudermos, para que nunca mais escutemos um garoto falar coisas assim.
Falcon riu brevemente, em baixo volume.
— Hum? O-ora, do que está rindo? — Oda arqueou a sobrancelha.
— Oh nada. Só gosto de ver como o senhor realmente ama esse lugar.
— B-bem, eu… — o diretor desviou o olhar.
— Não se preocupe, ninguém está olhando para nós agora. Apenas fico feliz de ver que a instituição que forma os soldados dessa nação possui um homem tão gentil no comando. — E ele sorriu, por debaixo da sua longa barba grisalha.
Do outro lado da arquibancada, em meio a muitos alunos, uma só mordia a unha do polegar, com veias saltando na testa.
— Yunni, cê tá bem? — perguntou uma menina do lado.
— Quieta! — A elfa respondeu, sem desviar os olhos do chão da arena. A menina se assustou e se recolheu quase como se fosse sumir. — “Aquele inútil…!!”
— E aí, tá melhor? — perguntou Sora para Álli, dando tapinhas no ombro. Um minuto se passou e eles continuaram no chão da arena.
— Que droga. Acabei de chorar na frente da nossa sala inteira… — Álli disse, secando as lágrimas. Suas bochechas estavam vermelhas e o olhar para baixo.
— Vish, verdade né? — Sora riu um pouco. — Mas relaxa, minha mãe falava que chorar assim faz bem, então se preocupa não.
— …Huh. Você é realmente esquisito. Por que falou tudo isso? Você também não quer ganhar a luta? Seria melhor só me bater e é isso.
— Pô, você é meu amigo. Não quero que fique sofrendo por qualquer coisinha.
— Você diz isso…mesmo depois do que viu naquele dia com a Yunni?
— Ah, aquele dia? É… — Sora tirou a mão do ombro do loiro. — Eu fiquei muito triste mesmo na hora, mas depois me disseram que alguém contou pro diretor o que tinha acontecido e eu pensei que você era o único que teria feito isso! — e ele riu.
— …É… Me desculpa. Queria te ajudar antes. De verdade, me desculpa…
“Mesmo que esse sonho seja ingênuo, eu não quero mais me afastar dele…”
— Tá de boa! — Sora se levantou de súbito, estendendo a mão para o amigo. — Agora vambora que nossa luta ainda não acabou!
— Han? Ah, Sora, n-na verdade… — Álli apontou para cima, guiando o olhar de Sora. Com um alto beep soando por toda a arena, o telão no alto ficou vermelho, exibindo a contagem de dez minutos chegando a zero no instante em que Sora pôs seus olhos nele. — A nossa luta acabou de acabar.
— EEEEEEEEEEEH?????!!!! — O queixo dele quase caiu no chão.
[ • • • ]
Além da fronteira do Norte de Nikuma, no limite do território entre duas nações, há um mar conhecido pelo nome de Mar de Levit. Recebe esse nome pela sua forte correnteza que lembra uma serpente monstruosa de lendas antigas. Apesar disso, é um belo cenário, digno de quadros feitos em sua homenagem. Talvez agora ainda mais bonita na visão de alguns, com cinco navios de guerra armados com canhões e bandeiras com uma víbora desenhada indo na direção oposta de onde vieram.
Homens armados com machados e arcos estavam no convés, pelo menos quinze visíveis em casa barco, trajando armaduras de bronze. Um barco estava mais a frente, este era ligeiramente maior e com a víbora na bandeira tingida de vermelho.
— Capitão! Isso não tá estranho? — disse um dos homens armados do barco maior para um homem no centro do convés, vestido com couro de cobra sobre a armadura. — Digo, não estava esperando muita gente protegendo esse lado da fronteira de Nikuma mas não tem nenhuma pessoa!
— De acordo com o relatório recebido eles sofreram um ataque da Ordem da Verdade na semana passada. Sabem como são aqueles caras! Nikuma deve estar agora concentrando suas forças nas outras fronteiras, ou seja, é realmente a oportunidade perfeita! — respondeu o homem com couro de cobra. Ele tinha uma barba preta muito cheia e sobrancelhas tão grossas que quase cobriam os olhos. — Não tenham medo, homens! Essa é a oportunidade perfeita! Atracamos, saqueamos as casas mais próximas e vamos embora, é simples!
— Heheh! Cê sabia dessa, cara? — disse um soldado mais atrás do convés, armado e de tapa-olho, para outro logo ao lado — Ouvi dizer que Nikuma não disponibiliza armaduras mágicas para a população!
— Hah! É realmente um reino decadente! — respondeu o outro homem.
— Capitão! — disse um marinheiro no topo de um mastro com uma luneta em mãos. — Tô vendo a praia da fronteira! T-Tem…tem uma pessoa lá!!
— Hum? Uma pessoa? E daí?
— É…um homem. É um único homem!
— Um homem? Espera, um só? — o capitão sobrancelha de tarântula gargalhou. — Nikuma realmente está nos seus piores dias! Vai valer a pena ter descumprido as ordens de cessar fogo do rei pra vir até aqui!
“Ei, tem algo estranho. Ele tá segurando uma espada? Mas que modelo mais esquisito”, pensou o marinheiro de luneta na mão, olhando para o homem na praia. “Não, espera… Um homem de cabelo preto com uma espada estranha, aparecendo sempre sozinho, com uma faixa branca na testa… Esse é…!!” — Capitão!! — chamou o marinheiro com a luneta, novamente.
— Que foi, porra? — o homem bufou.
— O homem na costa! Ele, ele tem…!! Ele!
— Fala direito, rapaz! Quer que eu te derrube daí?!
— Ah, pelos deuses!! Espada estranha e faixa branca na testa! É Yke, o Lâmina Pura!! — o marinheiro berrou, descendo apressadamente do mastro.
Aquelas palavras ressoaram no navio como se fosse uma maldição. A maioria dos homens começou a correr. Uns tiravam suas roupas e jogavam no mar. Outros apenas sentaram, com o olhar vazio.
— M-mas…. Mas o quê?! Homens!! Controlem-se!! Vão para os canhões e energizem todos!! Se o acertamos primeiro, nada poderá fazer!
A mais de 200 metros de distância, na costa, o único homem segurava uma espada. Só a lâmina já era maior que o seu tronco inteiro.
Ele ergueu a espada com ambas as mãos.
E foi como um sopro.
Não houve terror, nem agitação.
Ninguém gritou ou revidou.
Como um sopro, o mar voltou ao seu estado de paz, apenas com o barulho de suas pequenas ondas.
Finalmente, o silêncio da natureza.
Finalmente, a calmaria.
Pois agora, barco algum existia.
O homem na costa pegou um celular e levou à orelha.
— Senhor, as partidas do teste físico da academia acabaram! Precisamos que volte para a capital até o fim do dia, tá? Por favor!! — uma voz feminina e importunada falou do outro lado da linha.
— …Entendido. Estou voltando. — Com essa resposta, ele guardou o aparelho e embainhou a grande lâmina.
Enfim, ele deu as costas e se foi, deixando para trás o mar que logo iria engolir os restos do que, há pouco, eram homens em cinco barcos de guerra.

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