Capítulo 19 - Kamhongshan (Parte II)
O barco celeste começou a descer lentamente, ao reduzir sua altitude. O único ponto de desembarque disponível era um vasto hangar para dirigíveis, localizado no topo de uma das imponentes construções da cidade. Kamhongshan, uma cidade de goblins fundada há pouco mais de quinhentos anos, não possuía a infraestrutura necessária para receber um barco celeste. Esse tipo de transporte, comum entre os elfos, era amplamente utilizado pelos heróis por sua praticidade em atravessar Testfeld por meio dos atalhos celestes.
Assim que desembarcaram, foram recebidos por um anfitrião peculiar. O goblin, com pouco mais de um metro de altura, possuía a pele vermelha, orelhas pontiagudas e um sorriso largo, revelando dentes de ouro brilhantes. Sua figura era robusta para alguém daquele tamanho, e os botões de sua camisa pareciam prestes a se soltar devido à sua corpulência. Ele trajava uma roupa digna de um nobre vitoriano: um terno preto bem ajustado e uma grande cartola, que completava sua aparência excêntrica.
— Bem-vindos à nossa cidade, heróis! É um prazer imenso tê-los conosco — disse o goblin, sua voz entusiástica. — Sou Cheegnac, representante da prefeitura, e estou aqui para recebê-los. Ficamos muito felizes em contar com sua ajuda. O dirigível de vocês partirá em uma hora, então sintam-se à vontade para explorar nossa amada cidade. Apenas se lembrem de ter cuidado ao entrar em nossos estabelecimentos ou usar a infraestrutura. Ela foi construída para os nossos, e não para humanos.
— Não viemos aqui para matar goblins? — sussurrou Alice para Vítor. Ele não moveu um único músculo, fingiu estar surdo. — O que estamos fazendo aqui?
— Como disse? — Cheegnac inclinou a cabeça, seus grandes olhos vermelhos fixos nela. — Vejo que não conhece muito sobre a cultura goblin.
O grupo de heróis começou a murmurar:
— Como?
— Ela mal chegou e já virou aprendiz de um vice-líder de guilda?
— É aquele cara… o Marionetista.
— Dizem que ele matou um dragão de quatro estrelas sozinho…
Os murmúrios aumentaram, até que alguém decidiu botar ordem naquela confusão.
— Calados! — gritou Adrian, sua voz impositiva cortou os cochichos. — Estão apenas atrapalhando a explicação do Senhor! — bufou, impaciente. — Ele é da guilda dos Dragões do Sol, com aquele bastardo do Uriel é o líder. Não é difícil para uma mulher entrar na guilda deles.
— O que está insinuando? — Vítor abriu um leve sorriso, não ofendido com o comentário.
— Você sabe muito bem! — Adrian se aproximou, a mão sobre a bainha de sua espada, pronto para atacar ou se defender. — Aquela sua namorada monopolizou uma guilda… Uma guilda com apenas quatro membros! Enquanto lutamos para conseguir algo, ela desperdiça um potencial absurdo!
Vítor permaneceu impassível, mas seus olhos brilharam com a expectativa de uma luta divertida no futuro.
— Resolveremos isso depois. No momento… — Ele se virou para o goblin, e lhe deu a permissão para continuar a falar. — Vamos nos concentrar na missão.
Adrian resmungou algo inaudível, mas deu de ombros, e recuou para o seu lugar. Seu rosto ainda carregava a arrogância de quem se considerava superior.
— Pois bem… — O goblin esfregou as mãos antes de voltar o olhar para Alice. — Nós, goblins, somos divididos em duas classes: os civilizados, como eu e todos os que residem nesta cidade, e os bárbaros. A missão de vocês é nos ajudar a lidar com esses bárbaros.
— Então é isso? — Alice franziu a testa, ainda um pouco cética.
— Nossos dirigíveis os levarão até as florestas das montanhas ao norte, na fronteira com um dos reinos élficos. Recebemos relatos de goblins selvagens atacando vilas na região. Nós, como goblins civilizados, não podemos permitir que esses bárbaros manchem nossa reputação como comerciantes e artífices respeitáveis ao redor do mundo.
— Partimos em uma hora? — Vítor perguntou, e desviou o olhar para o horizonte antes de dar as costas para o grupo.
— Sim. Aonde está indo? — O goblin moveu a cabeça, ao ver a atitude nada educada do herói.
— Explorar a cidade. Venha, Alice — ordenou para a garota, sem sequer virar-se para ela, as mãos nos bolsos e o caminhar tranquilo, como se já soubesse exatamente para onde ir.
E então, os dois deixaram o hangar e começaram a caminhar pela parte alta da cidade. Kamhongshan se revelou um espetáculo inesperado aos olhos de Alice. Construída às margens de um vasto lago, a cidade não se assemelhava em nada à medieval Cidade Celestial. Seu urbanismo se desenrolava em camadas, os níveis superiores abrigava as áreas mais modernas e reservadas à elite.
As ruas, estreitas para eles, pareciam espaçosas para os goblins. Era como caminhar por uma cidade encolhida, feita sob medida para habitantes menores. Os goblins que passavam por perto lançavam olhares surpresos à dupla no primeiro instante, mas logo retomavam suas rotinas sem maiores preocupações.
O ar era quente e úmido, carregado pelo vapor que escapava das paredes das construções. Pequenos veículos movidos a vapor trafegavam pelas ruas, com seus assobios metálicos a cada curva. Estruturas de ferro conectavam edifícios, e formavam passarelas elevadas e redes de encanamentos que exalavam nuvens brancas
— Eu esperava algo mais… primitivo — murmurou Alice, os olhos nos transeuntes da cidade.
Todos estavam sempre bem vestidos; alguns usavam cartolas, outros apoiavam-se em bengalas de madeira bem trabalhadas. Durante toda a caminhada, um detalhe chamou sua atenção: não havia cruzado com nenhuma goblin fêmea.
— A civilização deles avançou muito nos últimos milênios. Kamhongshan é apenas o centro comercial das muitas cidades espalhadas pelo território goblin — explicou Vítor. — Os goblins vermelhos são conhecidos como ávidos comerciantes e possuem as cidades mais ricas do sul deste continente. Negociam minerais com os anões, compram e vendem suprimentos dos elfos e firmam qualquer acordo que lhes seja vantajoso.
Ele se aproximou da borda de um mirante, de onde se avistava o vasto lago que se estendia até o horizonte.
— E, como pode ver, eles se saem muito bem! — disse. Gostava da sensação da brisa fresca do lago tocava seu rosto.
A água era de um azul cristalino, e refletia a cidade abaixo como um espelh quase perfeito. Lá do alto, as pequenas embarcações pareciam formigas distantes, seus tripulantes ocupados com a pesca ou o cultivo de algas.
— Caramba… — Alice ficou boquiaberta. — Está tão limpo…
— Eles são goblins, não humanos… — Vítor suspirou. Pensou em se recostar no parapeito do prédio, mas ele mal chegava à altura de seus joelhos. Não querendo arriscar uma queda, desistiu da ideia e apoiou-se na parede atrás dele. — Se fossem humanos, talvez a história fosse outra. Goblins são naturalmente ligados a natureza, não irão destruí-la sem motivo, e eles ganham muito com o acesso de água fresca.
Os dois permaneceram ali, admirando a paisagem, enquanto aguardavam a hora de partir para a missão.
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