Capítulo 214: Momentos
Kalish girou o copo entre os dedos antes de levá-lo à boca, sentindo o líquido morno deslizar pela garganta. Seus olhos se fixaram em Rashid e Zimbra, os dois jovens de pé diante dele, rígidos como estátuas, os punhos cerrados ao lado do corpo. A tensão entre eles era palpável, quase um terceiro presente na sala. Kalish não se surpreendia com isso. Os mais novos tinham uma sede estranha por servir, fosse em um ideal político, fosse na guerra. A juventude ainda acreditava em causas, diferentemente dele, que havia se desiludido há muito tempo.
Seu olhar percorreu os trajes de batalha negros que os rapazes usavam, o tecido escuro destacando suas feições duras. O negro parecia cair bem nos mais jovens, talvez por falta de opção, talvez porque estavam sendo moldados pelo próprio ambiente em que viviam. Na Zona Cega, a sobrevivência exigia mais do que simples coragem – exigia adaptação.
Kalish suspirou, empurrou a cadeira para trás e se sentou pesadamente. As dores nas costas diminuíram levemente quando ele se afundou no estofado surrado.
— Muito bem. Falem logo — gesticulou com a mão livre, impaciente. — O que houve?
— GreamHachi, senhor — Rashid começou, a voz ligeiramente apressada. — Nós fomos até lá, mas… estava tudo destruído.
Kalish ergueu uma sobrancelha, inclinando levemente a cabeça para o lado. Seu interesse foi despertado, mas não demonstrou surpresa.
— Destruído como? — inquiriu, pausadamente. — Felroz costumam tentar entrar de tempos em tempos, mas a cidade sempre teve defesas fortes. Não era de se esperar uma destruição total.
Rashid balançou a cabeça imediatamente, negando com veemência.
— Tudo mesmo, senhor. A cidade inteira parecia ter sido virada do avesso. Casas desmoronadas, parte da muralha arrancada. Até o chão estava coberto de destroços, como se uma tempestade tivesse passado por lá e levado tudo com ela.
— O pessoal de lá também não queria conversar — completou Zimbra, com a voz mais grave e contida. Apesar do tom sério, havia um leve tremor em suas palavras. — Eles evitavam qualquer explicação. Disseram que tinham medo do Demônio de Kappz aparecer de novo.
Kalish riu, um som seco e irônico, antes de virar o rosto para o lado. No espelho envelhecido da parede, viu seu reflexo encará-lo de volta – um rosto que já vira tempos melhores. Os cabelos brancos dominavam seu crânio, as rugas cortavam sua pele, e o ressecamento fazia seu rosto parecer mais áspero do que nunca. O tempo cobrava seu preço, até mesmo dos mais poderosos.
— Deixa eu adivinhar — disse ele, voltando-se para os dois. — Vocês acham que foram os Felroz que atacaram e destruíram a cidade inteira?
— Senhor… — Zimbra hesitou, mas se manteve firme. — Não há outra explicação. O que mais poderia ter feito aquilo?
Kalish suspirou profundamente. Garotos ingênuos.
— Estão cansados — disse ele, observando-os de relance. — Vieram direto de lá pra cá, certo? Então ouçam bem. Maethe era uma das mulheres mais respeitadas entre nossos compradores.
— Mas ela não estava lá — Rashid murmurou.
— Exatamente. — Kalish assentiu. — E isso já diz muito. Vocês acham que um bando de Felroz seria capaz de arrasar GreamHachi? Eu já vi Maethe dobrar um Felroz com um simples estalar de dedos, sem esforço algum. Acham mesmo que algo assim teria acontecido só por causa dessas criaturas? Francamente, vocês me envergonham.
Os dois jovens abaixaram a cabeça, sentindo o peso do comentário. Eram exploradores, treinados para observar e analisar o mundo ao redor, mas, ainda assim, estavam longe de compreender o verdadeiro jogo em que estavam envolvidos.
Kalish recostou-se na cadeira, tamborilando os dedos no braço de madeira. Os outros dois Soberanos pareciam estar ocupados demais lidando com o comércio maior, ignorando as movimentações nos setores menores. Um erro, pensou. Ele próprio não se preocupava tanto com os negócios de alto escalão, pois esses dependiam deles para sobreviver. Mas as pequenas transações, os mercados que se mantinham à margem, esses sim eram instáveis. E instabilidade era um risco que ele não gostava de correr.
— Sabem o motivo de Kappz ter sido um lugar tão disputado nos anos anteriores e por que desistiram dele depois de algum tempo? — perguntou Kalish, com a voz arrastada e pausada, como se estivesse testando a inteligência dos dois à sua frente.
Rashid e Zimbra ergueram a cabeça, atentos. Um deles arriscou a resposta:
— Os Felroz e os Sugadores.
Kalish balançou a cabeça em negativa, um sorriso cansado brincando em seus lábios.
— Não. O que mais tirava o sono de quem sonhava em montar uma estrutura ali era o fato de que a cidade inteira é um campo. Não só na superfície, mas também abaixo dela. E se acham que os Felroz são as criaturas mais difíceis de enfrentar, deveriam ter visto o que os Morbides faziam.
Sua risada ecoou na sala, mas não trouxe alívio. Pelo contrário, a tensão se instalou ainda mais. Os dois jovens se entreolharam, inquietos. O nome daquela criatura causava calafrios até nos mais experientes.
Kalish reclinou-se na cadeira, entrelaçando os dedos sobre o abdômen. Os olhos, mesmo cansados, brilhavam com a lembrança de um tempo distante.
— Ah, se vocês soubessem o que foi uma guerra de verdade…
Um silêncio pesado caiu sobre a sala. Rashid finalmente criou coragem para perguntar:
— Um Morbide foi até lá, senhor?
Kalish fez um som de negação com a língua e estalou os dedos.
— Não. Esses bichos não fazem reféns nem deixam rastros. Quando um Morbide passa, não sobra nada. E GreamHachi, por mais destruída que esteja, ainda está lá.
Ele apontou um dedo enrugado para os dois, como um professor repreendendo alunos lentos.
— Sabem o que eu acredito, senhores? O mundo esperou anos por um estalo. Um único som, um pequeno movimento capaz de iniciar o colapso. Sempre pensamos que a Zona Cega seria o palco disso, mas não foi. Não ainda. Enquanto a cultura se mantém por aqui, enquanto temos força e recursos, cidades menores como GreamHachi não podem se dar esse luxo.
Ele fez uma pausa, os olhos se perdendo em lembranças. Seus dedos traçaram lentamente a borda do copo sobre a mesa.
— Kappz já foi parte da Zona Cega. Há dois séculos. Os túneis foram selados, entradas bloqueadas, defesas erguidas. Nós sobrevivemos, enquanto lá fora a vida se tornou uma luta diária. Os exploradores voltam e nos contam as mesmas histórias: cidades mortas, terra infértil, um cemitério a céu aberto. Mas, de alguma forma, GreamHachi e Rapier conseguiram se erguer.
Ele suspirou e cruzou os braços.
— Claro, com Maethe no comando, aquilo não duraria para sempre. Ela sempre teve um orgulho nojento da forma como usava sua influência para manter o controle. Se tem alguém que viu o colapso chegando, foi ela.
Zimbra pigarreou, hesitante.
— Senhor, quando estivemos lá, não vimos Maethe. Nem o Carrasco da Hidrelétrica. Nem Leonardo e Fabiana. O que ouvimos foi que o tal Demônio de Kappz apareceu duas vezes. Primeiro, para salvar Leonardo. Depois, para destruir a cidade.
— Mas ninguém fala sobre isso, senhor — Rashid completou. — O medo deles era diferente. Não parecia terror de criaturas ou da fome. Eles estavam acuados, como se a própria cidade tivesse cuspido o que restou deles.
Kalish franziu as sobrancelhas. O nome “Demônio de Kappz” não era estranho, mas ouvir que ele havia feito aquilo mudava tudo.
— Cerberus… — ele murmurou, quase para si mesmo. — Um talento raro. Tentei trazê-lo para a Zona Cega, mas ele destruiu meus homens sem esforço. Nunca pensei que ele se aliaria a alguém.
Rashid se mexeu na cadeira.
— E Leonardo? Sempre disseram que ele era um homem correto. Não faria algo assim com a própria cidade.
Kalish fez um som baixo, semelhante a uma risada sem humor.
— Vocês são ingênuos. Acham que Leonardo simplesmente deixou GreamHachi ser reduzida a escombros? Não, não foi isso. O que aconteceu ali foi algo muito maior.
Os dois permaneceram calados, absorvendo cada palavra. Kalish bateu os dedos na mesa, pensativo.
— GreamHachi caiu. Mas isso significa que outro lugar se ergueu. A questão é: onde?
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