Capítulo 85 - Nada mais importa.
O céu dourado brilhava acima. Enormes emaranhados de nuvens brancas lhe davam uma aparência celestial. Júlia caminhava pelos corredores vazios da escola. Seus passos ecoavam no vazio silencioso que tomava o lugar. Seus pés a levavam, mas não sabia para onde iam, apenas que seguiam para algum lugar. Sentia-se submersa em um transe profundo que adormecia todo o seu ser, porém lúcida o suficiente para perceber o que se passava ao seu redor.
Ela relutava contra o seu corpo, tentando pará-lo, mexê-lo, mas em vão. Sentia uma ansiedade crescente pelo que viria. Não por não saber, mas pela certeza do que a esperava.
Seu corpo entrou em uma sala – a sua sala. Estava como na última vez em que a vira. A lousa, os cobogós, as cadeiras. Julia sentou-se na sua. Um lugar que lhe era familiar, percebeu, em que estava acostumada a ocupar e onde deveria se sentir confortável. Mesmo assim, uma angústia crescia em seu interior. Ela então olhou para frente e esperou.
Ouviu um som familiar. O sino da escola. Por algum motivo Julia conseguia mover seu corpo novamente. Então um frio a percorreu de cima para baixo, como se tivesse sido mergulhada em uma piscina de gelo. Logo após, um homem entrou na sala e apagou o que estava escrito na grande lousa branca à frente de Julia. Ela reconheceu-o. O rosto era de seu professor de matemática, Mauro. Os olhos, no entanto, eram de outra coisa.
Bastou apenas um olhar naqueles poços sem alma para Júlia estremecer em seu lugar, agradecendo por já estar sentada.
A coisa sorria, causando em Júlia arrepios. Aquele rosto não deveria sorrir, não daquela forma.
— Olá, portadora — disse a coisa. — Pergunto-me quanto tempo se passou.
Júlia não respondeu. Não sabia o que falar.
— Se encontramo-nos, significa que já tens essência o suficiente para tal — A voz da coisa ressoava em seus ouvidos. A seriedade do professor unida à vulgaridade daquilo que usava seu rosto.
— Essência? O que é isso — Julia ouviu sua voz perguntar. Sua garganta parecia ter recuperado o som.
A coisa caminhou por entre as cadeiras enquanto olhava para ela.
— É o sangue que cobre e corre na carne de todos os seres deste mundo, mas não precisas saber disso. Pelo menos não por agora — O “professor” respondeu enquanto a rodeava.
Julia torceu os lábios. Aquilo sempre lhe falava coisas pela metade e dava as mesmas desculpas: “Você não está pronta para ouvir”. O motivo, no entanto, nunca revelou.
— Por que me trouxe aqui? — Julia perguntou, seguindo com os olhos a coisa que usava a aparência de seu professor.
— Para lembrá-la — A coisa parou ao terminar de contorná-la, retornando a mesma posição de onde saíra.
Julia se sentia desconfortável por aqueles movimentos repentinos. A coisa parecia se divertir com suas reações a julgar pelo sorriso jocoso.
— Lembrar de que? Do que está falando?
O falso professor voltou a se mover. Dessa vez, seguiu ziguezagueando entre as cadeiras na direção oposta a que caminhava antes. Então tornou a falar:
— Eu já lhe disse várias vezes, “sou uma memória”, o que acha que isso significa.
Julia abriu a boca e fechou, sem respostas.
— De que uma memória serve? — O falso professor continuava sorrindo e olhando para ela enquanto rodeava a sala com movimentos aparentemente desorientados, porém rápidos.
Julia continuou sem respostas, mas ainda assim tentou responder, incomodada pelo silêncio que se formará a partir da pergunta do deus, que a fitava com aqueles olhos de serpente.
— Para lembrar?
— Do que? — O falso professor continuava a andar.
Julia franziu as sobrancelhas.
— De tudo — respondeu bruscamente, sem saber o que pensar além daquilo.
— Errado.
Julia se levantou.
— Pode parar de falar em códigos? — bramiu. A voz pareceu ecoar pelos corredores e salas e então voltar para os seus ouvidos.
A coisa parou mais uma vez. Ombros retos, peito erguido para frente, um braço posto para trás e o outro próximo ao peito. Uma pose elegante que Julia não estava acostumada a ver.
— Como desejar — A coisa disse com uma voz completamente diferente de todas as outras que Julia já havia escutado. O que a fez vacilar.
— O que você é? Responda de forma que eu entenda — perguntou Julia em um tom mais brando, surpresa pela mudança de atitude do ser.
— Sou uma memória. Uma que você recebeu ao escolher a dádiva. Uma memória desse mundo — A coisa respondeu.
— O que isso significa?
— Que tenho conhecimentos e capacidades que lhe podem ser úteis, como deveis ter percebido anteriormente.
Julia lembrou-se de sua última memória antes de a escuridão de sua consciência lhe tomar. Eduardo de olhos abertos, respirando. Vivo.
A memória a fez relaxar. Ao menos isso era verdade, a coisa a ajudara e ao seu amado. Mas, quanto ao restante do que o falso professor falara, não tinha certeza de que conseguiria entender.
— E o que você quer? — perguntou, desistindo de pensar sobre o resto.
— Quero aquilo que você veio buscar. Aquilo que prometeu. Meu desejo é o desejo daquele que nos uniu.
— O deus! — compreendeu Julia.
— Sim! Ele nos uniu para fazermos a sua vontade nesse mundo e preparar o caminho para a sua vinda.
Julia sentia os pêlos de sua nuca se arrepiarem. A coisa falava em um tom grave, áspero e vibrante. As palavras lhe saíam quase mórbidas devido ao tempo que levava para proferi-las.
— Ele só poderá vir se reunirmos as chaves para libertá-la.
— E o que são essas chaves? — perguntou Julia.
Imagens começaram a surgir na lousa, como se desenhadas por mãos invisíveis.
— Ele as deixou gravadas em mim, para repassar àquele que me portaria.
Julia olhou os desenhos se formarem e ganharem. Um tinha o formato de uma águia verde. Outro de uma espada como as que Júlia vira em filmes medievais. Possuía uma lâmina longa e robusta, e um cabo repleto de detalhados entalhes. Um terceiro tomou a forma de um crânio humano. Uma órbita jazia negra e vazia, enquanto a segunda era ocupada por uma opala de um brilho negro que encarava Julia como se ainda pudesse vê-la do além vida. O quarto desenho era uma coroa incrustada de jóias tão belas e brilhantes quanto as estrelas mais brilhantes do céu noturno.
Julia se impressionava com o nível de detalhes e de realismo dos desenhos. Pareciam coisas tangíveis, que poderia tocar a qualquer momento.
Viu o quinto desenho se formar.
Primeiro um ponto, alvo o suficiente para se destacar na lousa branca. Então as formas se desenharam à sua volta. Dois semicírculos invertidos, um acima do outro, inversamente postos, o que lhe dava a aparência de uma ampulheta. Um anel se formou entre ambos, unindo as partes. Uma coloração marrom fosca se espalhou pela imagem, destacando ainda mais o ponto branco, que ficará no semicírculo superior. Tinha a aparência de uma pérola. Seu brilho se destacava se comparado ao restante da imagem, que era menos impressionante que os demais desenhos.
— Esses são itens antigos, tão antigos quanto o mundo — A voz do ser anunciou. — É seu dever, como de todos os outros, encontrá-los e reuni-los.
Julia olhou para o ser e então para a lousa.
— E onde eles estão?
— Isso eu desconheço. Sei apenas suas formas.
Julia suspirou.
A claridade da sala começou a aumentar. A luz dourada se tornando cada vez mais branca.
— Parece-me que nosso tempo se esvaiu — A voz do professor retornou a boca do ser, que se esticou em um sorriso de canto de lábios.
Julia então se lembrou de algo. Ela perguntou, mas a resposta não chegou aos seus ouvidos, antes de tudo se desfazer.
Ao abrir os olhos, ela mirou em um teto familiar. Estava na cama que dividia com Letícia e Carmen. Não viu nenhuma das duas, o quarto estava vazio. Ela se levantou, caminhando com passos arrastados até o armário. Permanecia com a roupa que tinha ido ver Eduardo. O que a fazia se perguntar quanto tempo havia passado desde então.
“Eduardo!”
Julia correu, passando pela porta e atravessando o corredor. Entrou no quarto dos garotos, encontrando apenas Caio, deitado de forma atravessada na cama. Ela então continuou sua busca pela casa.
Viu Roque na cozinha, que surpreendeu-se com a pressa e o nervosismo de Julia. Ela continuou a correr, sem lhe dar muita atenção. Precisava procurá-lo.
“Ele está bem, tem de estar! Aquilo prometeu!”
Correu em direção a entrada. Planejava correr do jeito que estava até o acampamento de feridos se precisasse, mas parou ao atravessar a porta.
O som de espadas se alastrava pelo ar enquanto os esgrimistas rodavam em uma ciranda. Julia reconheceu os homens. Um robusto, alto, com uma rala barba branca a cobrir o rosto sorridente. Outro, mais jovem, com o corpo bem constituído e acima de tudo, vivo.
Julia olhou para os dois, e eles a olharam de volta, parando com sua disputa ao percebê-la.
Eduardo deu dois passos em sua direção, mas parou quando ela correu e se jogou em seus braços.
“Está vivo! Está vivo! Nós estamos!”
Seus corpos se encontraram e Eduardo a apertou junto a ele. Julia então o beijou, sem se importar com Thierry a observá-los, sem se importar se aquele era outro mundo ou não. Sem se importar com qualquer outra pessoa. E por um momento, a sombra daquele que saira de seu lado sumiu de sua mente. Não havia deus ou monstros, amigos ou chaves. Havia apenas aquele momento, aquele beijo, aquele homem.
Havia apenas ela e Eduardo, e era tudo o que precisava.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.