Capítulo 86 - Epílogo: Sombras do passado.
— Mais de sessenta mortos. Uma tragédia — lamentou sir Alóis. Seus olhos avelãs, levemente manchados de cinza pelo uso de mana, refletiam o brilho dourado das velas acesas que iluminavam o escritório.
Todas estavam acesas, à exceção de uma.
O cheiro do melgráz quente nas canecas temperava o cômodo com um agradável aroma.
— Não se poderia esperar algo diferente dada a situação. Por que demoraste tanto para ir à vanguarda do combate? — perguntou Thierry. Uma dor começara a latejar em seu joelho esquerdo. E piorava conforme a conversa se estendia.
O cavaleiro andriano virou a caneca de melgráz na boca antes de responder.
— Desejava que eles ganhassem experiência de combate. Afinal há necessidade de tal se desejarmos os planos no senhor Freive sejam postos em prática. Mas não esperava que esse embate se mostrasse tão… sanguinolento.
Thierry observou a boca do homem se contorcer enquanto falava. Via a amargura que as lembranças do ocorrido lhe traziam.
“Um homem preocupado com seus subalternos, esse!”
Para Thierry, essa era uma importante qualidade em um comandante, mas também podia revelar uma perigosa fraqueza.
— Seis basiliscos, e de uma espécie tão distinta. Não é comum ver tal monstro por aqui, é? — perguntou Thierry a Alóis, já sabendo a resposta que receberia.
O andriano apenas meneou negativamente a cabeça. A carranca a fechar-lhe o semblante.
— E o jeito como nos atacaram. Devias ter visto, sir! Pareciam coordenados como se soubessem onde mirar e como nos abater.
— Como se alguém os controlasse, hã? — Thierry se inclinou para frente e franziu as sobrancelhas.
Alóis cruzou os braços com um olhar pensativo no rosto.
— Já viste algum feiticeiro capaz de tal encanto, sir? — Thierry perguntou.
O andriano olhou-o, remexeu a boca e então respondeu.
— Sim, apenas um. Mas ele está longe. Muito longe daqui. Enterrado em alguma ruína das terras desoladas — respondeu ele.
— Um feiticeiro da guilda? — Thierry sentiu uma sensação ruim.
Alóis confirmou com um aceno de cabeça e então revelou um resquício de temor no olhar austero.
— Acreditas que a guilda pode ter descoberto os segredos para tal arte da magia? — perguntou Alóis.
Thierry se recostou na cadeira, temendo as implicações que aquela afirmação continha. A guilda e seu poderio unida ao inimigo. A simples ideia de tal coisa lhe causava calafrios na espinha. Imaginava o que deveria significar para o cavaleiro andriano sentado à sua frente, cuja glória, e o nome, dependiam dos anos que viriam.
— Sabes de que escola esse feiticeiro era afiliado? — questionou.
Alóis negou.
— Não o conhecia bem o bastante para saber. Apenas tive um breve contato com ele em uma missão de eliminação de orcs.
O nome perverso das criaturas malignas aborreceu os ouvidos de Thierry, que fez o possível para manter a compostura.
“Criaturas vis e nojentas.”
— Qual era o nome de tal feiticeiro? — perguntou ele.
— “Colómano, o domador”, o chamavam.
— Um nome do leste — Thierry tomou o melgráz que ainda jazia na caneca. Já estava frio.
— Ele tinha as feições de um Eulíta — comentou Alóis.
— Euler! — reparou Thierry — É seguro dizer que este homem possa ter vindo de uma das cidades sábias.
— Um feiticeiro das cidades sábias? De fato é verdade que o sir é bem humorado! — Alóis abriu um sorriso que se fazia orgulhoso em seu rosto.
“Orgulho, oh que vil pecado.”
— Não há piadas onde não há sorrisos meu caro amigo. E eu não estou rindo. Saem mais feiticeiros de Êutico e Hélia do que sábios de Dargho’dracma, isso posso garantir.
O andriano recostou-se no assento. Sua feição era pensativa.
— As criaturas que ele controlava eram lobos de hatti e sapos goliath, além de tartarugas-dragão. Nunca o vi controlar ursos carmins ou basiliscos.
— Há diferença entre esses? — Thierry perguntou, atento a voz da experiência que o companheiro tinha a oferecer.
Embora houvesse lutado e comandado por anos no campo de batalha, pouca experiência tinha a respeito de monstros. Havia se especializado em matar apenas homens.
— Armas feitas com cristais extraídos de basiliscos são mais difíceis de se usar por conta da natureza fria das criaturas. Da mesma forma os ursos carmins. Eles são violentos e brutais. É difícil para um homem suportar tal furor.
— Compreendo. Mas isso significa que até os ursos estavam sendo controlados, então? — Thierry tomou o restante do melgráz.
— Tenho motivos para acreditar em tal coisa — respondeu Alóis. — A guilda de Dargho’dracma anda a ganhar mais influência a oeste dos corredores rochosos. Procuram ricas áreas de caça e coleta para que possam explorar.
— E aqui há uma — completou Thierry.
— Não se a explorarmos antes deles — afirmou o cavaleiro.
Thierry suspirou se perguntando o que o havia atraído para aquele arranjo de teias de aranha feita entre nobres de um reino em que já não devia qualquer lealdade. Olhou para a única vela apagada em sua mesa, e lembrou-se.
“Maldita bruxa de Ash’hurr e suas palavras negras!”
— O conde Fréive continuará com seus planos, então? — perguntou.
Os olhos do andriano brilharam.
— Sim! De certo que tudo correrá como foi pensado, e até o inverno seguinte a este está vila terá um nome.
— E um lorde que a nomeie — completou Thierry.
O andriano sorriu e foi como se um leão do mar vermelho mostrasse os dentes para Thierry. “Orgulho misturado a ganância ”, percebeu.
— Mesmo considerando a óbvia interferência do velho duque Archambault?
A expressão do andriano se fechou. Seus olhos avelãs sujos com o cinza proveniente do uso de mana a tomar uma aparente intenção assassina.
— Isso depende do quanto o velho sabe — respondeu Alóis.
“Com uma cobertura de ódio.”
— O que não deve ser difícil de imaginar, visto o ataque — considerou Thierry.
Alóis suspirou longamente e então respondeu.
— O informarei ao conde Fréive — baixou a cabeça e pôs a mão direita no ombro esquerdo em uma saudação respeitosa.
Uma das velas no canto da sala, próxima a pedra sentinela, se apagou.
— Vai se unir a ele? — questionou Thierry.
— Antes que a neve se amontoe nas estradas. Partirei da vila em no máximo uma semana. Ao menos estarei presente no festival do meio de outono — respondeu o andriano, retornando a sua postura respeitosa.
— Será uma celebração lamentosa, visto o que as pessoas acabaram por perder.
— É em virtude dessas perdas que devemos animá-las. Afinal a vida segue, quer rimos ou choramos — rebateu Alóis.
— Sim, compreendo.
“E de facto deveis já ter convencido o populacho do quão altruísta é sua convicção para esta aldeia, de forma que até tu mesmo acredita nela.”
— Há um assunto, porém, que desejo tratar contigo — sir Alóis falou, com os olhos firmes no rosto austero.
— Fale!
— Deves saber que perdi alguns de meus tenentes na contenda contra os ursos e os basiliscos, assim como boa parte de minha próprias forças.
Thierry assentiu.
— E é de irremediável urgência que eu ache homens valorosos para ocupar tais vagas em minhas fileiras o quanto antes os possa achar. E temos que já os achei.
Thierry sentiu a pergunta como uma lâmina prestes a acertá-lo em seu peito.
— E por isso desejo os jovens Edwardo e Caio junto a minha comitiva.
Thierry fingiu estar pensativo a respeito da proposta.
— Estou confuso. Porque pedes a mim?
— É de conhecimento geral que eles são teus protegidos. Por isso vim avisá-lo deste meu desejo antes de propor qualquer coisa aos rapazes — respondeu o andriano.
“Avisá-lo”, o que significava que Alóis poderia levá-los mesmo contra a vontade de Thierry se quisesse. Escolhas, questões e palavras se misturavam em sua cabeça enquanto respondia.
— Não recomendaria a ti levá-los. São um pouco mais do que crianças aos nossos olhos, creio.
— Mesmo assim, lutam como homens valentes e são excelentes com as armas nos treinos — retoquei Alóis.
— Nos treinos, talvez, mas…
— Além disso, o jovem Eduardo enfrentou e matou dois ursos carmins, em ocasiões diferentes cada um, enquanto homens feitos fugiam de medo e clamavam pelas mães. Não há melhor escolha a chamar — Alóis se ergueu de seu assento. — Creio que já está tarde, devo me despedir. — Ele fez uma referência e partiu pela porta.
Roque apareceu um momento depois e Thierry o despediu, dizendo que ficaria no escritório por mais um tempo.
Esperou, pensativo. O que poderia fazer? Quais opções poderia tomar? Não poderia manter aqueles jovens na vila para sempre, mas como mantê-los lá por mais algum tempo?
“As estrelas cairão… ”, as palavras da bruxa ressoavam em sua mente, “…tu colherá seis. Ruína ou riqueza trarão. Tu deves decidir se as colherá…”, relembrou sentindo as rugas afundarem a sua testa.
Devias ter matado aquela mulher quando a encontrou, assim como deveria ter dado fim aqueles jovens antes que a sombra do desconhecido se abatesse sobre ele.
Mas ela era tão jovem e frágil, assim como eles.
O tempo se passou e a noite se aprofundou madrugada adentro. Uma a uma as velas se apagaram, e o brilho das pedras sentinela iluminaram o cômodo.
Thierry olhou para as pedras.
Eram artefatos de proteção, que diferentes dos rituais pagãos dos palatinos, eram dados aos fiéis de Pérgamo em troca de água sagrada dos santos de Elday, feita com a essência do próprio Thierry, extraída por um sumo píer.
Deviam proteger aquele cômodo de qualquer invasor que desejasse entrar, fora Thierry, e mesmo assim, os jovens entraram.
“Eles não respondem a Elday”, pensou.
Não ouviu os passos deles pelos corredores. O que significava que não se reuniram naquela noite. Um livro foi o motivo de terem invadido seu escritório naquela noite. Obviamente Thierry sabia que de seus planos, apenas não imaginava que a proteção de Elday lhe seria inútil contra eles.
“Nem pertencem a esse mundo, pelo que bem disseram nessas reuniões.”
Como poderia Ellday permitir tal coisa? Thierry não tinha respostas.
Eram perigosos. Homens que não respondiam a Deus podiam destruir nações e almas, corpos e mentes. Se soubessem mais do mundo, se saírem da aldeia. Se interferissem tudo mudaria, e não havia como Thierry saber o resultado disso. E seria sua culpa por não impedir uma tragédia iminente disso.
Então porquê não erguia seu martelo contra eles?
A cena de Julia e Eduardo na tenda lhe vinham à memória.
Um homem que ele julgara como morto um momento depois estava a respirar o ar da vida em um acampamento de moribundos. Um milagre que apenas Ellday poderia realizar. Mas fora Júlia quem o fizera. Ela tinha todos os sintomas de um esgotamento de mana e não havia resquícios de magia presentes no ambiente, a não ser por Eduardo.
Sem cristais, sem cajados. Apenas ela o fizera, com as mãos nuas. Sequer demonstrava as manchas nos olhos. Assim como Théo não tinha nenhuma nos seus. Era algo anormal, contra as leis da natureza, contra as leis de Deus, e ainda assim era um milagre.
O quarto se tornou completamente escuro. Thierry se pôs de frente para a vela apagada em cima da mesa.
Ela se acendeu com uma chama de cor violeta, então laranja, verde e depois branca, até que uma cor negra iluminou o ambiente, projetando uma sombra branca de frente para Thierry. A sombra de uma formosa mulher.
— Faz tempo “são Thierry, o abençoado” — Ela disse com uma voz zombeteira. — Finalmente sentiu falta de minha pessoa?
— Falta alguma sente a ovelha do lobo — respondeu ele em tom ríspido.
— Ah, que grosseiro é o meu cavaleiro. Mas diga-me, se não é verdade, por que me procuras?
Thierry suspirou.
— Os garotos, sir Alóis deseja levá-los.
— E que problema há nisso?
Thierry se empertigou.
— Muitos! A começar, o que ocorrerá a esse mundo se eles o tocarem? Os reinos, os povos, será como se uma praga se alastrasse sobre as terras.
— Então por que não os matastes? Já fizeste tanto isso no passado.
Thierry lembrou-se daquela noite há vinte anos. Da mulher no quarto vermelho. Da voz dela, seu rosto, suas palavras.
— Eu não a matei — disse.
“Mas ela me matou!”
— Nem a eles também. Logo fez a sua escolha, cavaleiro. Como as palavras que minha irmã te proferiu o alertaram. Cuida para que não se arrependa e que colhas bem, pois a ceifa está próxima — A voz disse e a sombra branca desapareceu, deixando Thierry na meia escuridão pouco iluminada pelas pedras sentinelas.
— As estrelas cairão como sementes sobre a terra — relembrou ele para si mesmo. — Tu achará seis. Ruína ou riqueza trarão. Tu deves escolher se as colherá ou as deixará as aves do céu.
Lembrou-se mais uma vez daquela noite, daquela mulher.
Orgulho, ganância e ódio. Tudo isso já se misturara dentro dele até aquela noite. Até que ele se tornasse uma desonra para si mesmo.
“Para certas escolhas não existe volta”, lembrou. Ele as acolheu e não há como voltar atrás.
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