Os desertos de areia e gelo se estendiam em todas as direções e Zarek observava tudo com atenção, absorvendo os detalhes do ambiente como se quisesse gravá-los em sua memória.

    — Já está quase na hora de irmos — disse Zahara, enquanto trocava de roupa.

    Zarek apenas assentiu, ainda imerso na observação. Mas, ao terminar de se arrumar, Zahara pegou a mochila, abriu sua boca e a apontou para ele.

    Zarek piscou, confuso.

    Ele olhou para a escuridão da mochila e depois para ela. Por um momento, considerou questionar aquilo, mas, no fim, apenas deslizou para dentro, sentindo o espaço ao seu redor se fechar.

    O tempo passou estranhamente.

    A princípio, ele sentiu um leve balanço enquanto ouvia vozes abafadas trocando algumas palavras, nada que parecesse urgente. Depois, veio um ritmo monótono, um trepidar contínuo sacudindo seu corpo, em um ritmo que logo se tornou parte do fundo.

    Houve pausas. Pequenos momentos em que o sacolejo cessava e o silêncio tomava conta, até ser enfim substituído por novos sons. O de pássaros cantando com folhas farfalhando ao fundo.

    Depois, um ranger de porta.

    A sensação mudou de novo. A mochila balançou até que, finalmente, a luz voltou quando a bolsa se abriu e Zahara o retirou, colocando-o sobre uma mesa.

    Ela suspirou e se jogou em uma cadeira, exausta.

    Zarek piscou.

    — … Humm, não foi tão ruim.

    Zahara apenas riu, apoiando a mão na testa.


    Foi então que ele começou a deslizar o olhar pelo cômodo. Era seu mesmo quarto de confinamento de sempre. Mas seu foco não estava ali.


    A porta do escritório, aberta à sua frente, deixava a luz externa invadir o ambiente, projetando uma claridade contra a penumbra do cômodo.


    Zahara se levantou ao seu lado, distraída, caminhando até a lareira. O som da madeira seca estalando preencheu o quarto quando ela bateu algumas pedras e acendeu as chamas.


    Mas Zarek não olhava para isso. Seus olhos permaneciam fixos na saída, as brasas em suas órbitas oscilando levemente.


    Zahara percebeu e, sem dizer nada, ela se moveu até a porta e a fechou, posicionando-se em frente a ele.


    — Certo — disse, cruzando os braços e olhando diretamente para ele. — Vamos aos termos.


    Zarek piscou a chama de seus olhos algumas vezes antes de assentir com seu crânio e Zahara começou a falar, andando de um lado para o outro.

    — Você pode sair da cabana, mas nunca além da floresta ou das trilhas dentro dela, e nunca se deixe ser visto por ninguém… — Seus olhos se direcionaram de relance para Zarek, confirmando se ele estava prestando atenção — e se em algum momento você for visto, corra e se esconda em algum buraco, mas não venha de imediato para a cabana… não queremos atrair olhares indesejados. Você me entendeu?

    Zarek piscou a chama de seus olhos algumas vezes antes de assentir novamente com seu crânio.

    Zahara o encarou por alguns segundos, hesitante.

    — De qualquer forma, depois sairei com você para mostrar as redondezas. Assim, você terá mais ciência de quais são os limites.

    “Se for apenas isso, não parece ser um problema…”, pensou Zarek, enquanto ponderava sua nova circunstância. “Parece que ganhei mais algum espaço. Mas…”

    Foi quando sua voz rouca saiu vacilante:

    — Mas… qual é a minha parte do acordo?

    Zahara arqueou as sobrancelhas, surpresa com a pergunta.

    — Oh, é verdade! Eu ainda não falei, não é mesmo?

    Zahara parou de andar, cruzando os braços, e inclinou a cabeça levemente para o lado, analisando Zarek. E depois de alguns segundos de silêncio, puxou uma cadeira e se sentou, apoiando os cotovelos sobre a mesa.

    — Você vai me auxiliar nos meus estudos para entender as aparições.

    — Entender? — Zarek inclinou a cabeça, pensativo. — Entender o que elas são?

    — Entender de onde elas vêm — corrigiu Zahara — e como as impedir de vir.

    Ela entrelaçou os dedos e apoiou o queixo sobre as mãos.

    Seus olhos cravaram-se nas brasas oculares de Zarek, com aquele brilho alaranjado parecendo emanar de seus olhos novamente.

    — Preciso dos seus olhos, Zarek.

    Zarek piscou com a chama em suas órbitas oscilando.

    — Meus Olhos?

    Zahara suspirou e se levantou, indo até uma das prateleiras da cabana. Pegou uma pequena vela, acendeu-a com o fogo da lareira e depois a colocou sobre a mesa entre eles.

    — Sabe… faz tempo que estudo sobre as aparições. Já coletei relatos, fiz experimentos, comparei padrões… Mas ainda tem muitas perguntas sem resposta, como se faltassem lacunas.

    A chama tremulou suavemente, lançando sombras distorcidas pelo cômodo.

    — É como se tudo o que pudéssemos conhecer estivesse dentro dessa luz — Ela moveu sua mão, criando sombras que se projetaram nas paredes do cômodo. — Nossos sentidos… são como correntes, nos limitando ao que conseguimos perceber, e o que está fora desse círculo não nos pertence. Não o vemos, não o tocamos, e quando tentamos compreendê-lo, tudo o que conseguimos são suposições.

    Zahara então moveu a vela lentamente para o lado. A luz deslizou sobre a mesa, revelando novas formas e apagando outras.

    — A cada geração, deslocamos um pouco essa chama, iluminando o que antes estava escondido. Chamamos isso de conhecimento, de iluminação. Mas no fim…

    Ela soprou a vela, deixando a cabana novamente com a lareira como única fonte de luz.

    — Continuamos presos à luz.

    Mas os olhos de Zarek continuavam a brilhar naquela penumbra.

    — Mas você…

    Ela ergueu a vela apagada, apontando-a para ele.

    — Você nasceu dessa sombra… e é por isso que, estou apostando, que você possa enxergar o que há nela.

    Zarek inclinou levemente a cabeça, pensativo.

    — Você acha que consigo enxergar algo que você não consegue?

    — Acho que, se alguém pode, esse alguém é você. Poucas vezes na história da humanidade fomos abençoados com um conhecimento além de nós mesmos. Às vezes por ministros que nasceram com um dom de ver outros planos, e outras vezes iluminados pelos próprios deuses — Ela estendeu a sua mão, como se estivesse lhe oferecendo algo invisível. — Mas dessa vez, pode ser que o mundo tenha reservado algo um pouco mais… sombrio.

    Zarek olhou para a mão estendida, depois para os olhos dela. O brilho das brasas em suas órbitas oscilou novamente até que ele deslizou até subir em sua mão.

    Zahara sorriu.

    “Eu ainda não entendo… eu mal sei o que estou fazendo aqui”, pensou Zarek, sentado na mão de Zahara com um toque de frustração. “Mas ela parece tão séria…”

    Sua voz rouca soou mais uma vez:

    — E por onde eu começo?

    Zahara arqueou as sobrancelhas em surpresa, mais uma vez.


    — Humm… nada muito complexo. Na verdade, eu primeiro preciso entender você e essa sua condição. Porque… usando o pouco que se tem de tradição e material bibliográfico, as aparições profanas surgem ou de lugares contaminados, ligados ao espiritual, ou… — interrompeu a fala, olhando nos olhos de Zarek — de maldições. Ainda lembra do que eu disse sobre você?

    Zarek virou os olhos tentando recordar o que ela havia dito.

    — Ehh… uma maldição reservada para os reis…? — sua voz saiu vacilante.

    — Caídos! — Zahara o corrigiu, elevando o tom, fazendo Zarek recuar seus tentáculos, com o susto. — Esse detalhe é importante na história. Você não concorda que maldições deveriam seguir padrões estritamente preestabelecidos? 

    Zarek não sabia responder e permaneceu emudecido.

    Zahara continuou:

    — Então, de onde sairia um rei da miséria de dentro do pântano? E mais além… ainda em uma forma totalmente transmorfica, aberrante e racional.

    Enquanto ela falava, os tentáculos de Zarek se contorceram sutilmente, e as chamas em seus olhos vacilaram, como se algo em suas palavras o incomodasse. Zahara percebeu e interrompeu o fluxo de seu discurso por um momento.

    Seus olhos caíram sobre ele mais uma vez, avaliando sua reação.

    — Por que tão diferente? Há um motivo ou os deuses só estão fazendo o que querem?

    Zarek não soube dizer se a pergunta era para ele ou para ela mesma. Mas, no instante em que as palavras foram ditas, algo se acendeu dentro dele.

    Uma memória.

    Ela veio como um estalo, uma cintilação fugaz na escuridão de sua mente. Não era uma imagem nítida, mas era algo próximo de um sussurro, uma sensação estranha, como um fio puxando algo de dentro de si.

    Seu corpo reagiu antes que ele pudesse entender.

    Um ruído grave e áspero escapou de sua garganta, um som que ele não tentou emitir. Seus tentáculos tremularam por um instante, contorcendo-se levemente.

    — O quê foi? — Zahara se interrompeu, voltando sua atenção totalmente para ele.

    Zarek piscou.

    — Eu… — Sua voz rouca saiu mais hesitante do que pretendia. — Lembrei de um sonho.

    Ele mesmo se surpreendeu ao dizer isso.

    A cabana mergulhou em silêncio, exceto pelo crepitar fraco da lareira que ardia ao fundo. Zahara não disse nada de imediato, apenas o encarou com seus olhos agora afiados.

    — Sonho? — repetiu com seu tom mais baixo, enquanto o colocava de volta na mesa. — Aqueles sussurros de novo?

    — Eh… — Zarek iniciou um ruído como se fosse responder, mas nenhuma palavra veio.

    “O que era aquilo exatamente?”

    O silêncio na cabana parecia se estender mais do que deveria.

    Zarek começou a tentar puxar aquela memória antes que ela escapasse por completo. Mas era como tentar agarrar a água com as mãos, quanto mais ele forçava, mais parecia escorrer entre seus dedos.

    Ainda assim, ele continuou tentando.

    — Não é muito claro. Só lembro de uma forma…

    “Sim… havia realmente uma presença ali.”

    Zahara não o interrompeu, esperando que ele continuasse.

    Zarek tentou escavar um pouco mais fundo na lembrança nebulosa.

    — E eu ouvi algo como… “Faça o que tem que fazer”, ou… “Faça como quiser”.

    Ele não sabia qual das duas frases era a correta.

    — “Faça o que tem que fazer” — repetiu Zahara, levando uma das mãos ao queixo, enquanto refletia. — … Seria um comando?

    — Um comando?

    — Sim… algo como uma instrução. Um comando, uma diretriz ligada à sua maldição.

    Zarek inclinou a cabeça para o lado, as chamas em seus olhos piscando como se processassem a informação.

    — … Não entendi.

    — Basicamente, a manifestação espiritual funciona da mesma forma. Seja para conjurar, imbuir ou manipular energia, tudo precisa de um meio para se concretizar.

    Zahara começou a desenhar com os dedos na mesa e gesticulá-los no ar, como se fossem um exemplo.

    — Runas, palavras e até mesmo gestos… são como chaves que direcionam a energia espiritual. Elas podem esculpir a estrutura, conduzir o fluxo e moldar a forma. Cada um desses elementos pode reforçar o outro, tornando a manifestação mais precisa e estável. Maldições funcionam sob o mesmo princípio.

    Zahara estreitou os olhos, aproximando-se mais dele. Antes que Zarek pudesse reagir, sentiu um toque repetitivo em sua testa óssea.

    Tok Tok Tok

    Zahara começou a tamborilar os dedos contra ele, como se estivesse testando alguma coisa.

    — Por acaso, você está se sentindo mais hostil desde que acordou, ou algo assim?

    Zarek piscou suas chamas oculares, incomodado. O toque não era exatamente irritante… mas a maneira despreocupada como ela o cutucava começava a deixá-lo inquieto.

    — Não… sei ao certo — respondeu, desviando ligeiramente o rosto para escapar dos dedos insistentes.

    Zahara acompanhou o movimento, continuando a cutucá-lo.

    — Nenhuma vontade súbita de atacar alguém? Um impulso estranho?

    Zarek tentou se afastar mais, mas ela o seguiu, sem dar trégua.

    Ele refletiu por um instante.

    “Talvez um pouco.”

    A ideia de reagir instintivamente ao toque dela, afastando-a de um jeito mais brusco, cruzou sua mente. Mas… aquilo provavelmente era dele.

    Zahara parou de cutucá-lo por um instante, observando a hesitação em sua expressão e se acomodou na cadeira novamente, cruzando os braços enquanto começava a pensar em voz alta.

    — Hmmm… Se isso for mesmo uma diretriz, quem estava imbuindo seria Tamir?

    Zarek piscou, sua atenção capturada pela menção incomum.

    — Tamir?

    — Sim. O Deus do Caos… se parar para pensar no conto, é Tamir quem aparece diretamente no sonho do rei e o amaldiçoa…

    Zarek inclinou a cabeça ligeiramente, ainda mais confuso.

    Zahara soltou um riso nasalado.

    — Bem, você não cresceu ouvindo histórias para dormir, então faz sentido…

    Ela apoiou os cotovelos na mesa, entrelaçando os dedos.

    — Basicamente, o conto fala de um rei tolo e ganancioso. Ele faz uma baguncinha, até que, em um sonho, Tamir aparece diante dele e o amaldiçoa, transformando-o em um monstro.

    Zarek permaneceu em silêncio por um momento.

    — Hummm… isso tem algo a ver comigo?

    Zahara deu de ombros.

    — Bem, você disse que alguém falou algo no seu sonho. E essa lenda diz que Tamir lançou sua maldição por um sonho. Coincidência? Talvez… Mas se há um padrão, talvez isso signifique algo. De qualquer forma, é curioso. Seus sonhos estão começando a ficar mais claros.

    Ela apoiou o queixo nas mãos, olhando para ele com interesse.

    — Me pergunto o porquê agora…

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