Capítulo 227: Antes de Chegar
Os cavalos trotavam sobre o concreto revestido de neve, seus cascos ecoando em um ritmo constante que parecia sincronizado com o silêncio do grupo. Fred liderava a comitiva de volta para a Zona Cega, e ninguém ousava quebrar o silêncio que pairava entre eles. O ruído das cidades ao longe, porém, preenchia o vazio com um som distante, como um murmúrio constante. De vez em quando, Kalish erguia a cabeça, observando a cidade vazia ao redor, seus olhos percorrendo as ruínas cobertas de neve.
Nas duas primeiras noites, eles pararam em um escombro — um prédio abandonado marcado com uma estranha tinta vermelha, como um aviso sombrio. Desmontaram dos cavalos, trazendo-os para dentro do prédio para protegê-los do frio e da neve que caía sem parar.
Paul, um dos subordinados mais calados, montou uma fogueira no centro do escombro. Com um estalo de seus dedos, uma fagulha surgiu e se transformou em chamas que cresceram gradativamente. Kalish, no entanto, o repreendeu imediatamente.
— Chamas atraem Felroz. Apague isso agora! — sua voz era firme, carregada de preocupação.
Dante, que estava mais afastado do grupo, mastigava uma das frutas que havia pego na Cuba. Ele olhou para Kalish com um ar despreocupado.
— Não precisa se preocupar com os Felroz. Aqui em Kappz é difícil deles aparecerem.
Seu comentário chamou a atenção de todos. Fred, sentado sobre o concreto frio, apontou uma vareta que havia encontrado no chão.
— Como fizeram isso?
— Fizemos o quê? — respondeu Dante, confuso.
— Limparam a cidade dos Felroz, é óbvio — disse Fred, com uma certa indignação na voz. — Como conseguiram tirá-los daqui? Tem vários Lagmoratos espalhados pela cidade.
— Não foi difícil — respondeu Dante, dando uma mordida firme na maçã. — Marcus e eu limpamos um deles quando cheguei a essa cidade. O Reservatório foi limpo na primeira semana, mas demoramos tempo demais. — Ele mastigou lentamente, como se estivesse revivendo aqueles momentos. — E foi quando descobrimos que os Felroz podem evoluir de acordo com o ambiente.
A fogueira ganhou mais força, e Kalish sentou-se perto dela para aquecer as mãos, ainda desconfiado.
— Não acredito que você entrou no ninho daquela criatura só com o atirador ao seu lado.
— Foi uma decisão idiota — admitiu Dante, dando uma risada. — Isso eu reconheço. Só nós dois conseguíamos entrar lá, então, tivemos que fazer. Na Zona Cega, vocês também têm Lagmoratos?
— Muitos — respondeu Pood, o mais quieto dos subordinados. Ele estava de pé, recostado em um pilar de pedra retorcido, com uma expressão indiferente. — Alguns são complexos demais para entrarmos, e também tem muita gente de fora que tenta se aventurar lá.
Dante franziu a testa, intrigado.
— Tem gente que entra por diversão nesses lugares?
— Existe um prêmio para isso — explicou Kalish. — Eles chamam de ‘Capture a Bandeira’. Há um tipo de tecnologia bem no fundo do Lagmorato Submundo que todo mundo fala que pode revolucionar a cidade, mas ninguém nunca conseguiu pegar.
— Se ninguém consegue, por que existe uma competição? — perguntou Dante, confuso.
— Muita gente gosta de testar suas forças, Dante — respondeu Kalish, sua voz carregada de experiência. — Felroz podem ser muito mais aterrorizantes do que você pensa.
Dante deu outra mordida na maçã, refletindo sobre as palavras de Kalish. Quantos Felroz ele já havia enfrentado? Não sentia medo deles, mas sim rancor. Foram aqueles bastardos que o atrasaram na Capital. No entanto, ele não podia negar que havia uma força descomunal naqueles monstros.
Muitos moradores da Capital e da Cuba ainda carregavam o temor de um passado onde viam as criaturas caminhando pelas ruas. Na Zona Cega, parecia não ser diferente. Onde haveria alegria em ver algo destruindo o que mais se queria proteger? A pergunta não fazia sentido.
— Ainda não respondeu — disse Pood, quebrando o silêncio. — Como derrotou os Felroz daqui?
— Tive ajuda para fazer tudo — respondeu Dante, levantando-se e piscando os olhos para eles. — Parece que o mundo tem mistérios demais. E eu também tenho os meus.
Ele deu as costas e começou a caminhar para um canto do escombro. Colocou a pequena bolsa como um travesseiro, deitou-se e virou para a escuridão. Fechou os olhos, tentando dormir. Aos poucos, as vozes dos homens foram se tornando distantes, até que ele finalmente pegou no sono.
Acordou com uma mão tocando seu ombro. Dante abriu apenas o olho esquerdo, e o rosto de um Sugador estava próximo, seus olhos brilhando na escuridão. Ele sorriu de canto, sentando-se lentamente.
— O que está fazendo aqui, pequenino?
— Rupestre…
Dante se levantou rapidamente, seus olhos fixos no pequeno Sugador que agora corria pela escuridão do prédio abandonado. Ele seguiu o garoto, guiado apenas pelo brilho fraco e esverdeado de seus olhos. Os dois saíram por uma parte do prédio onde as paredes haviam desmoronado, criando várias entradas e saídas.
O garotinho parou de repente, virando o rosto para Dante e apontando para frente.
Dante se abaixou, ficando mais perto do garoto, e encarou a rua do lado de fora. Uma sombra se movia de um lado para o outro, descontrolada, como se estivesse presa em um frenesi. Um som agudo escapava das sombras, tentando se misturar ao ruído de um tanque de guerra antigo que parecia ecoar do nada.
Quando as sombras perderam força, um brilho dourado emergiu fracamente de seu interior, como uma luz pulsante que tentava se libertar.
— Bicho — o garotinho sussurrou, sem medo algum. — Rupestre quer o bicho.
— Agora? — Dante perguntou, bocejando. — Tá um pouco tarde pra isso, garotinho.
— Nic… — Ele apontou para o próprio peito, seus olhos brilhando com determinação. — Nic.
Dante deu uma risadinha.
— Você se chama Nic, entendi. Bom, Nic, se ele quer, então ele vai ter. — Dante se levantou, esticando o corpo e respirando fundo. — Faz um tempinho que eu não entrego nada para seu pai ou irmão. Nunca sei o que Rupestre é de vocês.
— Nic.
O garoto continuou apontando para si mesmo, insistente. Ele era tão pequeno, tão miúdo, mas falava com uma força que surpreendia.
— Quer ir comigo, Nic?
— Isso.
Dante esticou a mão, e Nic pulou, agarrando-se a ele. O velho o levou para suas costas, e o garoto se pendurou em seu ombro como se fosse parte dele. Dante sentiu algo se prender à sua pele, uma sensação estranha, mas não desconfortável. Era como se Nic tivesse se fundido a ele, tornando-se uma extensão de seu corpo.
A Energia Cósmica de Dante também ficou mais acentuada, como se o garoto estivesse canalizando parte dela.
“Nova ramificação corporal” — a voz de Vick ecoou em sua mente, calma e analítica. “Aconselho a tomar cuidado com novos hospedeiros. Sem sinais de anomalia, sem sinais de fundamentação ou evolução. Consumo de Energia Cósmica aumentada em 3%.”
Dante deu uma risadinha, sentindo a leve drenagem de energia.
— Está comendo minha Energia, Nic? Safado. — Ele passou a mão nos cabelos negros do garoto, que parecia completamente à vontade. — Vamos pegar aquela pedrinha.
Com Nic em suas costas, Dante avançou em direção à sombra que se contorcia na rua. O brilho dourado pulsava mais forte agora, como se estivesse chamando por eles. Dante sabia que aquilo não era apenas uma pedra — era a Pedra Lunar, Rupestre queria. Ele não poderia ir contra a promessa que fez, e nem precisaria se segurar.
— Segura firme, garotinho — disse Dante, ajustando o peso do garoto em suas costas. — Isso pode ficar feio.
Os dois avançaram para fora do prédio. Dante não parou de caminhar, fechando os punhos com determinação. Antes de chegar até as sombras que tentavam se mesclar ao veículo abandonado, ele ouviu passos rápidos atrás de si. Fred, Jodrick e Pood apareceram de trás de alguns escombros, seus rostos marcados por preocupação e confusão.
— Velho, o que você está fazendo? — perguntou Fred, sua voz carregada de incredulidade.
Dante achou a pergunta engraçada.
— O que você acha?
As sombras reagiram à sua voz, se expandindo para todos os lados como se fossem uma entidade viva. De repente, uma imensa boca com dentes amarelados surgiu do meio da escuridão, seguida por braços alargados e ossos brancos que brilhavam como luz, contrastando com a escuridão ao redor.
Os braços tentaram acertá-lo, mas Dante ergueu o próprio braço com um movimento rápido, e os ataques foram repelidos para o lado como se fossem insignificantes.
— É só um Felroz Mutante — comentou Dante, como se estivesse falando de um incômodo menor.
“Só?” Os três homens ficaram pasmados, observando Dante desviar de cinco golpes fatais com uma agilidade impressionante. Quando a boca do monstro se abriu novamente, Dante agarrou o focinho da criatura e a puxou para o chão com força. Com um chute preciso, o Felroz foi arremessado para dentro de um dos prédios, colidindo com as paredes e causando um estrondo que ecoou pela cidade.
— Não me atrapalhem — disse Dante, sua voz calma, mas firme, antes de se jogar para dentro do prédio atrás da criatura.
O som agudo que vinha do Felroz se transformou em gemidos altos, ecoando pela cidade vazia. As paredes desmoronavam, as pilastras tortas se quebravam, e fumaça e poeira eram lançados para fora pelas portas e janelas. Fred e Jodrick ficaram parados, travados pela hesitação, esperando para ver o que aconteceria.
De repente, a criatura foi arremessada de volta para a rua, batendo com força contra o tanque de guerra abandonado. Antes que pudesse se levantar, Dante surgiu como um furacão, seu soco explodindo no corpo do Felroz com uma força avassaladora. O impacto foi tão forte que o tanque estalou e foi arrastado para o lado, a pressão do ar enviando a criatura ainda mais longe.
Os braços do Felroz agarraram a lateral do tanque, tentando se refugiar dentro do veículo, enquanto sua boca mastigava freneticamente algumas munições que haviam caído no chão. Dante, no entanto, não deu trégua. Ele agarrou uma das pernas da criatura e puxou com força, impedindo que ela terminasse de devorar o metal. Antes que o monstro pudesse reagir, a mão de Dante adentrou seu pescoço, e a criatura parou de se mover, imobilizada.
— Nic — chamou Dante, puxando a Pedra Lunar do corpo do Felroz. O brilho da pedra irradiava entre seus dedos, pulsando como se tentasse se libertar, mas Dante a segurou com mais força, contendo seu poder. — Entregue isso para Rupestre e diga que, sempre que ele precisar, vou fazer de tudo. Peça pra ele tomar conta das coisas pra mim, está bem?
O garotinho concordou várias vezes, seus olhos verdes brilhando com determinação. Dante se abaixou e deixou que Nic corresse, desaparecendo nas frestas do prédio com a pedra em mãos.
— Dante, ele é um Felroz — disse Fred, aproximando-se com sua espada em mãos, apontando para o lugar onde Nic havia desaparecido. — Ele vai levar uma daquelas pedras. Não…
— Nic é meu aliado — cortou Dante, fitando Fred com um olhar sério e penetrante. — Não aponte uma arma para um aliado meu.
Fred deu um passo para trás, sentindo o peso das palavras de Dante. Ele concordou com um aceno, mas Jodrick não parecia convencido.
— Se aquela pedra tem um poder diferente, então deveria ser entregue para as pessoas certas — argumentou Jodrick, sua voz carregada de desconfiança. — Se for uma fonte de energia…
— Eu derrotei o Felroz — interrompeu Dante, sua voz firme e impaciente. — Faço o que eu quiser com a pedra. Então, vamos fazer o seguinte, vocês três. Não estão na Zona Cega, estão na minha cidade. Estou ajudando porque o chefe de vocês disse que vai ajudar a Cuba. Então, olhem ao redor.
Eles obedeceram, seus olhos percorrendo a cidade destruída ao redor antes de voltarem a encarar Dante.
— A cidade em que estão é minha — continuou ele, sua voz agora mais baixa, mas carregada de autoridade. — Toquem em uma das crianças de olhos verdes, e eu toco em vocês. — Ele deu um sorriso, mas não havia humor em seus olhos. — Espero que entendam isso. Não gosto de machucar ninguém sem necessidade.
Dante voltou a caminhar em direção ao prédio, bocejando alto.
— Ai, que sono!
Os três homens ficaram parados, trocando olhares entre si. A mensagem de Dante era clara: na Cuba, as regras eram diferentes. E, pela primeira vez, eles entenderam que estavam em um lugar onde a lealdade e o respeito valiam mais do que qualquer poder ou riqueza.
Kappz realmente tinha um Comandante, que era um Demônio no corpo de um homem.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.