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    Com nada além de um graveto pontudo e bastante ódio no coração, Kalira se aproveitou da paz temporária para seguir seus planos. Ao tocar no braço do emissário, conseguiu sentir o fluxo místico que estava dentro do seu corpo. Graças à sua maldição, estava uma bagunça completa. Porém, não ficaria assim por muito tempo, pois a magia não seguia a lei da entropia. Então, aquela desordem iria se reorganizar com o tempo.

    — Ainda devo ter umas duas horas com seu corpo desacordado. Irei me aproveitar muito bem dele, seu desgraçado!

    Usando um cipó e bastante força de vontade, assim como força nos braços, a bruxa arrastou o corpo desacordado do emissário selva adentro. Se havia um lugar bom para realizar rituais por ali, era a região do templo. Enquanto seguia seu caminho, sua mente divagou sobre as palavras usadas por Huan Shen para se referir as bruxas das sombras: traiçoeiras, manipuladoras e vingativas.

    — O desgraçado fala o que quer como se fosse a verdade absoluta! Tudo bem que ele não errou, mas não é tão simples assim.

    Lembranças de um passado distante passaram sobre sua cabeça, fazendo-a se questionar o motivo de ter abandonado sua vida anterior para se unir com o Oculto. O que a fez trocar sua humanidade pela obsessão, sua empatia por ganância e a pureza pelo poder? Já tinham se passado tantos anos, tantos corpos, tantas memórias consumidas, o que era real e surreal na sua mente? O que era seu e o que era das suas vítimas? Talvez nunca mais soubesse da verdade. Essa era uma das consequências do poder que tanto quis buscar.

    E quer saber? Não importava mais. Para uma bruxa, o ontem é uma lição, o hoje é uma oportunidade e o amanhã é a recompensa. Quem era a pessoa antes do nome Kalira não era tão diferente da garota que tinha acabado de possuir.

    — Merda! Que fome! Não tem nada de útil para comer nesse lugar além de cadáveres, plantas venenosas e mutantes. Bem que poderia ter algum humano perdido por aqui perto.

    Não demorou muito para alcançarem o templo. Embora Huan Shen estivesse desacordado, ainda era possível ver o estrago que seu despertar tinha causado naquele lugar.

    A coisa mais chamativa eram os enormes cristais de gelo dividindo o templo em dois. Várias colunas estavam repletas de neve e obviamente, o clima por ali estava bem mais fresco que em todo o resto da selva. A bruxa se aproximou de um dos cristais, olhando-o atentamente. Embora à primeira vista parecesse gelo como qualquer outro, sua transparência e pureza poderiam facilmente confundir um leigo, levando-o a pensar que se tratava de vidro. Era possível sentir a energia espiritual sagrada sendo canalizada por aqueles cristais, que não aparentavam ter o menor sinal de degelo.

    — Nunca vi gelo canalizando magia dessa forma. Não tem como isso ser do nosso mundo, não mesmo! E olha que eu já vi todo tipo de bizarrice por aí.

    Vendo que não conseguiria respostas satisfatórias naquele bloco de gelo, ela resolveu se apressar antes que o emissário acordasse e resolvesse não ter piedade. Colocando-o completamente reto no chão, suas mãos começaram a se mover ao seu redor, utilizando o graveto afiado que arranjou mais cedo. Em questão de minutos, um círculo completo estava formado ao redor de Huan Shen.

    A bruxa olhou para seus dedos da mão direita. Seus olhos captaram pequenos vestígios de fumaça negra saindo pelos poros, indicando que uma pequena quantidade de poder ocultista tinha retornado ao seu corpo. Quase ínfima para usar qualquer feitiço, mas o bastante para ativar um círculo místico.

    — Antes de colocar você em uma coleira, eu vou descobrir os mistérios que habitam no seu corpo e na sua mente.

    Canalizando sua magia através do círculo, as gravuras começaram a se mexer pelo solo, liberando uma névoa negra que se movia sinuosamente na direção do emissário. Lentamente, ela penetrou através das suas narinas, boca e ouvido. Isso fez com que seu corpo levitasse alguns centímetros do solo, em completo estado de suspensão.

    A mente sombria da bruxa começou a divagar, envolta em névoas sombrias que iam se revelando aos poucos. De repente, sua consciência despertou e seus olhos abriram, mas agora Kalira estava em um lugar completamente diferente.

    Um campo aberto, longe de qualquer forma de civilização. O ar era fresco e o clima ameno. O dia estava com poucas nuvens e o sol se estendia pelos céus de forma gloriosa. Não havia nada naquela área além de um pequeno casebre modesto.

    — Isso deve ser o subconsciente profundo dele. Que tipo de segredo ele guarda?

    Em um estalar de dedos, Kalira estava em frente ao casebre. A porta era de madeira velha. Não havia cadeado ou qualquer outra forma de segurança. Sem ter muito o que pensar, ela adentrou a pequena residência.

    Ter apenas um cômodo não foi o que chamou sua atenção, mas sim o que tinha ali dentro. Um altar funerário. O ar carregava um forte cheiro de incenso queimado, com sua fumaça saindo através das gretas do telhado. Uma estrutura de madeira envernizada tinha caracteres entalhados e revestidos em prata, na língua antiga dos anciões do Palácio Congelado.

    — Orquídea…da neve…não! Isso não é uma tradução literal, é Xue Lan a pronúncia. Isso parece o nome de alguém.

    Seu olhar afiado alcançou o quadro que residia no centro do altar. Rodeado por algumas flores modestas, o rosto de uma dama solene em pura serenidade revelava para quem toda aquela estrutura estava montada. Seu rosto era parecia pálido como a neve, mas dada a sua etnia, parecia ser algum tipo de maquiagem tradicional da região do Palácio Congelado. A forma como seu cabelo estava preso e as vestes finas que utilizava indicavam algum tipo de nobreza em sua pessoa.

    — Qual a relação desse homem com a nobreza do Palácio Congelado?

    Foi então que um sorriso surgiu em seu rosto. Aquele lugar representava o que existia no mais profundo subconsciente de Huan Shen. Se conseguisse colocar suas maldições ali, ele ficaria completamente sobre o seu domínio. Que se dane quem ele tinha sido no passado, naquele momento não era mais nada que um construto mágico e seu dever era obedecer a suas ordens.

    Suas mãos se ergueram para recitar um feitiço, mas de repente, uma força as abaixou de volta a sua cintura. A bruxa ficou confusa, pois deveria ser a única ali. Ao olhar para sua esquerda, uma figura envolta em sombras parecia encará-la rigidamente.

    Kalira não era uma mulher que se assustava facilmente, nem mesmo com coisas feias e aberrantes, mas o que a fez tremer com a aparição foi a quantidade de energia primordial pura que a criatura emanava.

    Não havia dúvidas do que aquilo se tratava.

    — UMA FADA? Eu sabia que não deveria ter me envolvido com esse homem!

    A criatura tinha sombras se movendo pelo seu corpo inteiro, do mesmo jeito que sua magia das sombras faziam. Sons de sussurros incontáveis saiam de cada movimento que ela fazia, perturbando sua mente e a estrutura do seu feitiço. Então, uma voz sussurrada surgiu em seu ouvido:

    — Você não tem autoridade aqui, bruxa! Saia dessa mente imediatamente, ou ficará presa aqui para todo o sempre.

    De repente, todo o casebre começou a colapsar rapidamente e a pegar fogo. Vendo que toda aquela estrutura mental estava sendo fragmentada e isso poderia afetar sua própria mente, a bruxa acordou do seu transe. Seu corpo instintivamente começou a afastá-la de Huan Shen.

    — Com que porra eu tô lidando aqui? — perguntou ela, ofegante.

    Desde o momento que conheceu Huan Shen, algo não parecia certo com ele. O jeito como ele lutava contra aqueles sulfurizados mesmo na desvantagem, como seu corpo e seus poderes eram diferentes de todos os outros, a sua força e poder mágico massivo, até o fato de ter uma fada protegendo seu subconsciente. Parecia que o destino estava colaborando em conjunto para a sua sobrevivência, como se ele estivesse protagonizando algum evento que estava prestes a acontecer.

    — Muito bem…se não posso ganhar controle sobre você pelos métodos tradicionais, vou ter que apelar para outras formas.

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