Capítulo 37 — O Acordo (Parte 1)
“Porra, se eu soubesse que seria assim, eu teria ficado lá nos arredores do Palácio Congelado mesmo…”
Parcialmente desorientado, Huan Shen abriu os olhos e massageou as têmporas, como se tivesse tentando se recuperar de uma dor de cabeça que não se lembra de ter tido. Então, seus dedos sentiram algo úmido na região próxima aos seus olhos. Gotas negras, com um gosto meio salgado.
“Isso são lágrimas?”
Foi então que uma melancolia começou a tomar conta do lugar onde seu coração costumava ficar. Um sentimento de perda, luto e culpa começaram a florescer em sua mente. Isso o deixava confuso, pois não conseguia determinar a origem de tudo aquilo. Apenas acontecia.
“Que merda é essa que estou sentindo? Por que logo agora?”
Quando viu que estava no centro de um círculo mágico, a dor interna foi substituída imediatamente pelo seu senso de autopreservação, fazendo-o imediatamente saltar para trás e checar o próprio corpo, atrás de qualquer sinal ou maldição sobre ele.
— Merda! Eu tenho que parar de ficar sendo apagado por qualquer coisa!
Foi então que se deu conta que não estava mais em um lugar aleatório na Selva de Concreto, mas sim de volta ao lugar onde recebeu uma segunda chance. O antigo templo que tinha perdurado durante anos contra o tempo foi simplesmente partido ao meio graças a falta de controle da sua criomancia. Vários cristais congelados residiam espalhados por todo o canto daquele território, renovando a estética centenária de lá.
“Xue Ling teria me dado uma surra se visse o que eu fiz com uma relíquia tão antiga quanto essa…”
Huan Shen sentia a energia mística sagrada do ambiente recuperando a própria magia do seu corpo. Aquilo o impressionava, pois estava sendo reabastecido em uma velocidade aberrante. Não era atoa que os sulfurizados eram poderosas máquinas de destruição. O que um mago poderia recuperar em uma hora, ele poderia fazer em dez minutos.
“Essa quantidade absurda de energia no meu corpo estimularia meus nervos ao máximo, podendo até mesmo me deixar em coma por tanta dor. Deve ser por isso que os receptores de dor não funcionam nesse corpo, para evitar a perda de desempenho. Me sinto como uma máquina manifestada, mas não em um bom sentido.”
Ele não precisou ir muito longe para encontrar quem procurava. Debaixo de uma das poucas colunas que permaneceram intactas, Kalira meditava em silêncio com os olhos fechados, criando uma distorção no ar e na luz ao seu redor. Aparentemente, essa era a forma que as bruxas das sombras recuperavam sua magia.
Com passos lentos e precavidos, o emissário se aproximou da bruxa. Suas mãos emanavam seu tradicional vapor frígido, indicando que estavam prontas para qualquer coisa. Sua mente ainda estava em conflito sobre o que fazer com ela. Se por um lado as bruxas não eram confiáveis e demonstrar fraqueza era letal para os desavisados, aquela mulher poderia ser a única coisa que poderia salvá-lo da morte perpétua.
— Você não está sendo muito sutil com seus passos, Huan Shen — disse a bruxa, abrindo seus olhos negros.
O emissário conteve seus passos e encarou a bruxa com seus olhos esbranquiçados.
— Como você sabe o meu nome?
Kalira esboçou um sorriso prepotente em seu rosto.
— Eu sou uma bruxa, é minha função descobrir o que existe de oculto no mundo. Felizmente, seus segredos não estão fora do meu alcance.
Ela não queria admitir que usou um ritual para invadir e controlar a mente dele, o que poderia prejudicar ainda mais o seu plano. Acima de tudo, era importante fazê-lo abaixar a guarda e demonstrar o mínimo de confiança na sua pessoa.
— Então a toda “poderosa” bruxa precisou possuir, consumir e roubar o corpo de uma garota que nem soube o porquê teve que morrer. Como você consegue fazer isso e nem hesitar? As pessoas não significam nada para você?
— Não acha meio hipócrita a sua afirmação, emissário? Eu estive na mente dessa garota, eu pude escutar os gritos de dor e o desespero dos homens que a acompanhavam. Você se move como uma tempestade, golpeia feito um raio e dilacera como um leão. Quando você luta, seu objetivo não é apenas matar um oponente, mas sim dar um aviso a todos ao seu redor: te provocar é uma sentença de morte.
Huan Shen estreitou os olhos.
— E digo mais. O que me impressiona em você é a sua capacidade de nem mesmo hesitar por um segundo em causar dor e sofrimento. Aquelas pessoas não significam nada para você?
— Você acha que eu não sei o que você está fazendo, bruxa? — perguntou Huan Shen, claramente descontente. — Eu não vou cair no seu jogo. Eu sei muito bem o motivo daqueles homens terem morrido e não me arrependo nem um pouco de ter feito. É por isso que existe código moral, né? Para justificar as nossas ações para nós mesmos.
Kalira envolveu seus braços em seus próprios joelhos.
— Código moral, hein? Faz tanto tempo que esse tipo de coisa não passa pela minha cabeça. Se eu quero algo, eu vou lá e simplesmente faço. Se tenho poder, devo usá-lo. Me diz então, emissário: o que seu código moral diz em relação a mim?
Huan Shen desviou seus olhos para o chão por um breve momento. Suas próximas palavras poderiam ser drasticamente perigosas para aquele relacionamento quase inexistente.
— Não penso muito nele em relação a você. Interprete como quiser.
— Tch! Minha cabeça ainda se encontra no mesmo lugar, por enquanto.
A névoa ficou mais densa ao redor da mão do emissário. Seus punhos cerraram, precipitando gelo ao seu redor. Do outro lado, a bruxa o encarava atentamente, permanecendo imóvel. Seus olhos se cruzaram mais uma vez, aumentando todas as incertezas do que poderia acontecer nos próximos minutos.
“Dois movimentos, um avanço e um golpe direto. Antes que qualquer um dos truques que essa bruxa possa fazer funcione.”
O emissário respirou fundo mais uma vez e relaxou a tensão acumulada no corpo. Suas mãos cederam, assim como sua intenção assassina. Sem ter muito o que fazer, apenas resolveu se agachar e se sentar no solo, ficando no mesmo nível da mulher.
— Eu tô cansado, bruxa. Não tive um momento de paz desde o momento em que eu descobri que tinha algo errado com esse lugar. Por que não negociamos uma trégua?
Aquilo chamou a atenção de Kalira. Parecia finalmente que seu plano estava funcionando.
— Não preciso de uma trégua, Huan Shen. Eu preciso é de um acordo. Nós dois queremos a mesma coisa: uma morte violenta e dolorosa para Heferus.
“Eu chegaria nessa parte, mas você claramente já se adiantou, desgraçada!”
— O que você ganha com a morte desse cara?
— A minha dignidade perdida! Nada muito diferente da sua pessoa, já que a serva dele arrancou seu coração fora.
“Não tô gostando nem um pouco sobre como essa bruxa está bem informada.”
— Que tal isso? Eu mato o druida e você restaura meu corpo humano de volta. Você conseguiu fazer esse processo, deve saber revertê-lo.
Kalira esboçou uma gargalhada.
— O ser humano descobriu como transformar areia em vidro, mas você já viu alguma vez alguém transformando o vidro em areia?
“Ela deve ter se sentido muito inteligente fazendo esse questionamento.”
— Sim? — respondeu Huan Shen, como se fosse uma coisa óbvia. — Justamente por causa da decomposição super demorada do vidro, construíram máquinas que trituram, moem e separam a areia do agregado.
— Oh — respondeu Kalira, percebendo que estava a muito tempo separada da sociedade. — Isso tinha soado melhor na minha cabeça. De qualquer jeito, existe uma forma de fazer você voltar a ser humano mais uma vez. Você só vai precisar recuperar o coração que lhe arrancaram. Pouca coisa, não é?
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