Índice de Capítulo

     Meus joelhos cederam, e tudo ao meu redor se tornou um borrão. A voz de Selene soava distante, como se ecoasse através de um longo túnel. Eu lutei para manter os olhos abertos, mas foi como se o peso da batalha caísse de uma vez sobre meus ombros. 

    Tudo ficou escuro…

     Quando recuperei os sentidos, não sabia quanto tempo havia passado. O som suave da chuva chegou aos meus ouvidos primeiro, um ritmo constante e reconfortante. O cheiro da terra molhada enchia o ar, trazendo um estranho alívio. Senti o toque de um cobertor macio sobre mim e percebi que estava deitada. Pisquei algumas vezes, tentando entender onde estava, até que os contornos familiares das paredes me trouxeram uma sensação de lar. Lar doce lar.

     Vozes vinham do cômodo ao lado, abafadas, mas carregadas de seriedade. Esforcei-me para me levantar, mas meu corpo parecia feito de chumbo. O mínimo esforço drenava o pouco de energia que me restava. Respirei fundo, tentando focar, quando a porta de madeira rangeu, permitindo que a luz do cômodo adjacente invadisse meu quarto, intensa como o sol da manhã. Meus olhos arderam, e eu virei a cabeça, buscando qualquer sombra que trouxesse alívio.

     Foi quando duas sombras adentraram no quarto, bloqueando parcialmente aquela luz. Eram Selene e minha tia. O alívio em seus rostos estava misturado com algo mais profundo… cansaço, talvez até preocupação.

     — Vejo que finalmente acordou — disse Selene, com um sorriso meio cansado. — Teve um bom descanso?

    Eu tentei falar, mas minha garganta estava seca. 

    — O que… aconteceu? — consegui murmurar.

     Minha tia se aproximou, seu sorriso tentando esconder a tensão. Ela acariciou minha testa com a ponta dos dedos.

     — Você desmaiou depois da luta, Ashley. Usou muita energia. Mas você vai ficar bem — assegurou.

     Enquanto tentava processar suas palavras, fragmentos do combate voltaram à mente. Os momentos de caos, o calor que tomou conta do meu corpo… e toda aquela energia. Por um instante, eu coresci. Mas agora…, eu voltei ao que sempre fui. 

    — Tia, preciso saber… — Minha voz vacilou, medo e esperança brigando por espaço em meu peito. — Durante a batalha… aquilo foi real? Eu nunca ouvi falar de alguém que coresceu tão tarde… e ainda mais que voltou a desbotar.

     A possibilidade de que tudo tivesse sido apenas um sonho, e que na verdade, nada daquilo ter sido real me assustava um pouco. A expressão dela se fechou, e Selene trocou um olhar preocupado com minha tia antes de falar. 

    — Conversamos sobre isso, Ashley — disse Selene, ainda sem acreditar completamente no que ouvia. — Nunca vi ou ouvi falar de alguém que coresceu e depois voltou ao estado anterior. 

    — Então… realmente aconteceu — sussurrei, mais para mim mesma do que para elas.

    A realidade era um peso esmagador. Eu já havia aceitado minha falta de poder, minha condição. Por que isso agora? 

    — Eu estava explicando para a Selene o que eu me lembro da batalha, mas não consigo recordar bem do que aconteceu — afirmou Sienna. — Talvez possamos descobrir pistas sobre o que aconteceu.

     Minha memória ainda estava um pouco confusa, mas tentei relatar o que aconteceu à medida possível. Expliquei para Selene como consegui salvar Sienna da padaria em escombros e o que ocorreu em seguida, o ataque da criatura e Sienna ferida nos meus braços. Descrevi o calor intenso que começou a irradiar das minhas mãos, todo o poder que emergiu de mim como chamas azuis… apenas para perdê-lo em seguida. 

    — Ela estava ferida? Mas como pode estar bem agora? — perguntou Selene, com uma expressão de incredulidade. 

    — Quando nossos ataques colidiram, uma névoa se formou. Enquanto tentava usar a névoa para nos escondermos, os ferimentos da minha tia começaram a cicatrizar… como se a própria névoa estivesse a curando.

     Selene começou a andar de um lado para o outro. Seus olhos cintilavam com o mesmo fogo que eu tinha visto algumas vezes… determinação e frustração caminhavam lado a lado. 

    — Estou tentando compreender, mas essa história fica cada vez mais inacreditável. Por que uma pessoa que nasceu e cresceu no reino da água, acabou corescendo uma chromaga de fogo? Isso não é muito comum, além do mais, chamas… azuis? Essa é nova.

     Selene tinha muitas perguntas, mas minha mente estava uma tempestade de dúvidas. Eu não tinha respostas, apenas um mar de perguntas que crescia a cada instante. Toda essa situação parecia um enigma, complicado demais para que eu o pudesse solucionar agora.

     Então, Sienna se aproximou mais uma vez, e, pela primeira vez, notei algo diferente em seu olhar…, um brilho enigmático, como se carregasse segredos enterrados há muito tempo. Ela segurou minha mão com delicadeza, seus dedos firmes, porém gentis, e sua expressão se tornou resoluta.

    — Eu preciso mostrar algo a vocês — anunciou, sua voz carregada de significado.

     Ergueu a outra mão, e um brilho suave começou a irradiar de seus dedos. Seus cabelos, antes discretos, captaram a luz com um novo fulgor, reluzindo com uma intensidade quase etérea. Foi então que uma pequena chama se formou na palma de sua mão. Dançava de maneira sutil, frágil na aparência, mas repleta de uma força indescritível.

    — Flâmula da Vida.

     A chama moveu-se lentamente em minha direção, ao tocar minha pele, senti seu calor envolver cada parte de mim. Mas não havia dor… pelo contrário, era como se braços invisíveis me abraçassem, afastando todo o peso da exaustão. A fadiga da batalha desapareceu, substituída por um vigor renovado, como se cada célula do meu corpo tivesse sido despertada.

    — Ainda consigo fazer isso, ao menos — murmurou minha tia, esboçando um sorriso que misturava alívio e cansaço.

     Selene observava em silêncio, mas seu olhar falava por si. Seus olhos arregalados não expressavam apenas surpresa, mas algo próximo à reverência.

    — Chamas que concedem vida… — murmurou, quase sem voz. — Em toda a minha vida, apenas uma pessoa foi capaz de emitir tais chamas.

    Sienna assentiu, seus lábios curvando-se levemente, mas havia um peso em seu semblante.

    — Você era jovem quando precisei partir, Selene. Já faz muito tempo que não a vejo… e você se tornou uma mulher incrível.

     A respiração de Selene vacilou, como se de repente fosse incapaz de processar o que ouvia. Sua voz saiu trêmula, quase inaudível.

    — Não pode ser… tia Sienna…?

    — Sim… Sienna Emberfell.

     O impacto daquelas palavras foi imediato. Selene avançou para ela em um impulso irreprimível, e as lágrimas começaram a escorrer antes mesmo que pudesse contê-las. Abraçou Sienna como uma filha que reencontra sua mãe após uma eternidade de separação. O tempo ao redor parecia suspenso, carregado de emoções que as palavras jamais poderiam traduzir.

    — Quinze anos… você estava viva?

    — E pensando em você todos os dias — respondeu Sienna, sua voz carregada de tudo o que nunca pôde dizer. — Pelo visto, devo um pouco da minha história a vocês duas.

     Selene secou as lágrimas e respirou fundo, recompondo-se antes de voltarmos nossa atenção para Sienna. Seu olhar carregava uma gravidade que nos fez silenciar de imediato.

     Ela começou a contar sua história, revelando que, no passado, era conhecida como uma das princesas da Casa Emberfell: uma das famílias mais influentes e poderosas do reino do fogo.

     Sienna e Selene haviam passado muito tempo juntas naquela época, compartilhando momentos que pareciam intocados pelo peso do destino. Mas tudo mudou em uma manhã específica. A líder da Casa Emberfell reuniu todos os membros da família para um anúncio solene: sua saúde estava debilitada, e o reino precisava de um novo governante.

    Seguindo as tradições ancestrais, deu-se início ao processo de sucessão entre as princesas da casa.

    — Sempre considerei minhas habilidades como uma dádiva — disse Sienna, sua voz serena, mas carregada de lembranças. — Chamas que não destroem, mas que trazem vida. No entanto, aos olhos dos anciãos da Casa Emberfell… eu era fraca demais para liderar nosso povo.

     Suas palavras me pegaram de surpresa. Nunca, em nenhum momento, eu poderia ter imaginado que a tia Sienna foi uma princesa de outro reino. Como alguém que já esteve em uma posição tão alta havia descido até nós, e se adaptado a uma vida tão diferente?

    — Com o apoio dos anciãos, minha irmã, Sylvia Emberfell, foi escolhida como líder — continuou Sienna, sua expressão se tornando mais sombria. — Mas nem todos ficaram satisfeitos com as mudanças que vieram com seu governo. Sylvia, por sua vez, passou a desconfiar de mim. Ela acreditava que eu estava tramando algo…, que pretendia usar Selene para tomar o trono.

    Selene piscou, surpresa.

    — Me usar? Mas como uma criança poderia ser vista como ameaça?

    Sienna suspirou.

    — Desde pequena, você sempre foi especial. Sua força era notável, e Sylvia temia que, um dia, você pudesse almejar o trono. Seu receio cresceu tanto que começou a encontrar desculpas para afastá-la de qualquer um que pudesse enxergar em você um futuro governante. Quando a confrontei diretamente sobre isso, discutimos… e meu destino foi selado. Fui exilada da Casa Emberfell.

     O silêncio que se seguiu foi denso, carregado de emoções reprimidas. Os olhos de Selene começaram a brilhar em um vermelho carmesim intenso, e sua aura escaldante preencheu a sala. Do lado de fora, a chuva que antes caía brandamente pareceu hesitar, como se temesse se aproximar da casa. O calor era sufocante, como se estivéssemos no centro de um incêndio prestes a fugir de controle.

    Sienna não hesitou. Aproximou-se e pousou uma mão firme sobre os ombros de Selene.

    — Está tudo bem, Selene. Você não tem culpa alguma.

     O calor oscilou. A aura intensa começou a diminuir, dissolvendo-se aos poucos até o ar voltar a ser respirável. Com palavras simples, Sienna dissipou a raiva que ameaçava consumi-la.

    Mas Selene ainda não parecia satisfeita. Sua voz carregava indignação.

    — A senhora merece justiça pelo que aconteceu. Ser exilada sem ter feito nada… simplesmente não é justo!

    Sienna sorriu suavemente.

    — Não se preocupe comigo. Eu estou bem aqui… e, de certa forma, acredito que o destino me trouxe para este lugar. Se as coisas tivessem sido diferentes, talvez eu nunca tivesse conhecido Esther e Ashley.

    Selene apertou os punhos, lutando contra a frustração.

    — Mas mesmo assim, eu posso…

    — Não se preocupe, Selene. Acho que já falamos o bastante por hoje.

    O peso da conversa parecia ter exaurido Sienna, mas ela manteve o tom acolhedor ao mudar de assunto.

    — Preparei algo para comer. Vocês precisam se alimentar e descansar.

     A tensão que pairava sobre nós aos poucos se dissipou, substituída por um cansaço silencioso… não apenas físico, mas emocional.

     Toda aquela história parecia um conto distante e cruel, mas era real. Demasiado real. Ainda tentava organizar meus pensamentos quando algo veio à mente. Meu poder…, Selene mencionou que nunca viu chamas azuis, e Sienna revelou sua capacidade de criar as chamas da vida. Poderiam ser essas as peças que faltavam para entender o que aconteceu comigo?

    Senti que estava no caminho certo.

     Deitei-me novamente, puxando o cobertor até os ombros. O cheiro de terra molhada ainda pairava no ar, mas, de alguma forma, trazia um estranho consolo agora. “Ainda é difícil acreditar em tudo o que aconteceu…”, pensei, com os olhos fixos no teto de madeira. Pequenas gotas de água escorriam pelas frestas, refletindo a luz bruxuleante da lareira. “Serei forte o suficiente para enfrentar o destino que me espera?”

     Um rangido suave rompeu o silêncio. A porta do quarto se abriu atrás de mim, e Sienna entrou, trazendo consigo um pequeno sorriso e uma bandeja com sopa fumegante e um pedaço de pão. O aroma quente de legumes e especiarias tomou o ar, dissipando por um instante o cheiro úmido da chuva. Era um cheiro que trazia conforto, quase como um abraço invisível.

    — Você precisa comer, Ashley — disse Sienna, sua voz suave, mas firme. — Seu corpo precisa se recompor.

     Ergui-me com algum esforço e me sentei à mesa. O cheiro da comida fez meu estômago roncar baixinho, o que arrancou um olhar divertido de Sienna. Peguei a colher e levei à boca. O calor da sopa se espalhou pela garganta, dissolvendo a tensão que eu nem percebia carregar. Era uma sensação revigorante, quase familiar.

     A cada colherada, memórias surgiam: momentos tranquilos em que uma refeição não era apenas sustento, mas um gesto de amor. Percebi que talvez algo dentro de mim precisasse ser restaurado tanto quanto meu corpo.

    Sienna quebrou o silêncio, sua voz carregando um tom casual, mas com um significado profundo por trás.

    — Ashley, enquanto conversava com Selene, lembrei-me do seu desejo de sair da cidade — disse ela, observando-me atentamente. — E, em breve, Selene partirá. O que acha de viajarem juntas?

     A proposta me atingiu como um vento repentino, despertando uma mistura de excitação e ansiedade. Viajar com Selene… A ideia me intrigava. Eu a conhecia há pouco tempo, mas essa poderia ser minha chance de ver o mundo além desses muros.

    — Viajar juntas? — repeti, tentando absorver a sugestão.

    — Sim! — Sienna sorriu, com um brilho de empolgação no olhar. — Sinto que essa jornada pode ser importante para vocês duas.

    Selene mastigou um pedaço de pão antes de dar de ombros.

    — Não odeio a ideia. Não seria ruim ter companhia durante a viagem. Além disso, sinto que lhe devo uma por ter mantido Sienna a salvo. Quem sabe possamos até resolver o mistério dos seus poderes?

     Suas palavras despertaram algo em mim: uma onda de alívio e entusiasmo. Ter alguém experiente ao meu lado era exatamente o que eu precisava para dar o primeiro passo rumo ao desconhecido.

    Selene me encarou com um olhar firme, avaliando minha reação.

    — Desde que nos vimos, senti que há algo especial em você, Ashley. Se estiver pronta para essa jornada, estou disposta a ser sua mentora.

    O peso daquela promessa fez meu coração bater mais rápido.

    — Então, vamos planejar nossa partida — declarei, sentindo a hesitação dentro de mim ser lentamente substituída por coragem.

     Um sorriso se formou em meu rosto. A simples ideia de explorar novos horizontes fazia meu peito vibrar com uma energia nova. Selene retribuiu o sorriso, e, naquele instante, soube que havia encontrado não apenas uma aliada, mas talvez uma guia para o caminho que eu estava destinada a trilhar.

     Virei-me para a janela, observando a noite que se estendia lá fora. O céu escuro parecia prometer algo novo, algo que antes parecia inalcançável. Um sopro de esperança crescia dentro de mim, mais forte do que qualquer dúvida.

    Fim do capítulo 5 – Chamas Entrelaçadas.

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