A lua tímida espreitava por entre as folhas reluzentes dos pinheiros, sua luz fria refletindo nas poças deixadas pela recente chuva. Duas jovens mulheres avançavam pela floresta, o som de seus passos abafado pela terra úmida.

    Os uniformes militares azuis que vestiam mal podiam ser vistos sob as capas escuras, que caíam pesadas sobre os ombros, ainda gotejando água. A primeira, alta e negra, tinha cabelos crespos que emolduravam um rosto liso de nariz torto. Ela franzia a testa enquanto lutava para ajustar uma luva que parecia decidida a não cooperar. Ao seu lado, a companheira, mais baixa e de pele parda, possuía cabelos ondulados castanhos claros que escapavam de seu capuz. Uma espingarda estava firmemente apoiada contra seu ombro e os óculos redondos brilhando sob a luz difusa enquanto ela olhava em todas as direções, seus olhos cor de mel revelando uma tensão mal disfarçada.

    — Será que ele realmente se perdeu, Strivia? — murmurou a mais baixa enquanto seus dedos apertavam o cabo da arma.

    Strivia desviou o olhar da luva teimosa e encarou a parceira por um instante, notando o leve tremor em suas mãos.

    — Não sei, Kalina — respondeu, a voz baixa e arrastada. Seu foco voltou à luva. — Mas que inferno! — resmungou.

    — Hã? O que você disse? 

    — Nada — com um suspiro frustrado, Strivia acabou desistindo de ajustar a luva.

    Enquanto caminhavam, Kalina sentia uma inquietação crescente, os dedos brincando com a alça da espingarda que segurava. A ideia de estar ali, naquela hora da noite, apenas na companhia de outra mulher, sendo ela a única armada, não era exatamente reconfortante.

    — Hm… Ei… — a voz de Kalina saiu suave, interrompendo o silêncio da conversa. — Por que essa floresta é considerada tão perigosa?

    — Você não leu o contrato?

    — Eu li, sim.

    — Então por que a pergunta?

    — É que… eu só não entendi bem a história — Kalina respondeu, desviando o olhar.

    — Bem, dizem que há algo nesta floresta. Algo que não é deste mundo — Strivia respondeu olhando para frente. — Pessoas desaparecem aqui. Ninguém nunca encontra vestígios.

    — Pessoas desaparecem? — os olhos de Kalina se arregalaram e um calafrio percorreu sua espinha. — Você… acredita nessas histórias?

    Strivia parou, virando-se para a companheira.

    — Não sei se acredito, mas pelo que já ouvi, elas têm uma morte horrenda. Uma criatura monstruosa de oito pernas e cem olhos as tortura por dias. Há relatos de gritos aqui, gritos que fazem o sangue gelar. E quando veem ver o que é, tudo o que resta… é nada.

    Kalina engoliu seco. Strivia continuou, a voz baixa:

    — Dizem que, se você ouvir passos atrás de você nessa floresta, não deve, de maneira alguma, olhar para trás. Porque, se olhar, a criatura verá você com os seus cem olhos e a caça começará. E uma vez que ela começa, não há como fugir — Strivia olhou melhor para Kalina, que parecia mais tensa do que nunca. Ela tentou suavizar o clima com um leve sorriso. — Relaxa! É só uma lenda do povoado próximo. Mas se for verdade, é só não olhar para trás e me avisar, que saímos dessa juntas, tá bom?

    Kalina assentiu, apertando mais forte a espingarda e suspirando fundo.

    — Está bem… 

    Por fim, continuaram a caminhada. À medida que Kalina e Strivia avançavam pela floresta, um detalhe inesperado chamou a atenção: manchas de sangue maculavam o solo úmido. Com um gesto silencioso, Kalina sinalizou para Strivia, e ambas se aproximaram dos vestígios rubros coagulados entre as folhas caídas.

    — É recente. Algumas horas no máximo — Kalina afirmou, examinando o ambiente ao redor.

    — É o tempo que ele sumiu — Strivia acrescentou.

    O sangue era escasso e superficial, sugerindo que o ferimento não era grave, mas Kalina não podia ter certeza. Apesar de sua habilidade de rastrear, ela olhou para Strivia.

    — O que você acha? 

    — Por que tá me perguntando? Não é você a rastreadora aqui? — Strivia arqueou uma sobrancelha.

    — Bem… é, eu acho… Você tem razão — Kalina se agachou, ajustando os óculos sobre o nariz. — Vamos ver o que encontramos aqui… 

    Ela manipulou sua aura para as lentes de seus óculos redondos, que brilharam em um azul suave. Com essa nova visão, ela foi capaz de observar até os menores detalhes no sangue espalhado na grama.

    — Não é sangue de tosse. Não vejo saliva, e… e tem detritos aqui… talvez de um impacto contra algo áspero. Uma pedra, sabe? E olha isso… — ela fez uma pausa, retirando um fio de cabelo castanho da mancha de sangue. — Cabelo castanho, comprimento médio. Tem… um pouco de caspa, talvez de estresse?

    Strivia, acompanhando o olhar de Kalina, notou uma pedra com sinais de sangue próximo à mancha.

    — Parece que foi a arma — ela apontou. — Um golpe bem dado na cabeça. Dorme feito bebê.

    Kalina olhou para a direção que Strivia apontava e abriu um sorriso fraco.

    — Sim… feito bebê. Deve ser mesmo a arma. Tem sangue, e… mais fios de cabelo com caspa.

    — Ainda bem que eu trouxe remédio para dor de cabeça — brincou Strivia.

    Kalina soltou uma risada nervosa. Depois, tocou seu dedo no sangue e o levou até o nariz. Ficou cerca de cinco segundos cheirando-o.

    — É de alguém com Aura do Leão — concluiu, limpando o dedo na grama.

    — Aura do Leão? 

    — Você sabe né? As três partes da quimera…

    — Eu sei disso, Kalina. Mas como você sabe que é a Aura do Leão?

    — É o meu olfato — ela apontou para o seu nariz. — Como possuo a Aura da Cabra, eu estudo bastante as Técnicas Selvagens. E por isso eu uso o olfato de um urso para saber os cheiros. E como cada aura tem um cheiro de sangue característico, é fácil descobrir. A do Leão por exemplo, é um odor… azedo, se assim posso dizer. 

    — Então é ele?

    — Se é o sangue dele? Eu não sei… Estamos na fronteira; poderia ser qualquer outra pessoa com essa aura. Mas olhe… — ela apontou para marcas de pegadas. — Três pessoas estavam aqui. Duas adultas… e uma criança.

    — Uma criança? — Strivia ecoou, surpresa.

    — É, eu acho. A não ser que tenha sido um anão — Kalina riu, mas Strivia não reagiu. Sem graça, a rastreadora ajeitou uma mecha de cabelo atrás da orelha e desviou o olhar. — Vamos ver o que aconteceu aqui… — murmurou, concentrada nas pegadas. — Não há muitas marcas espalhadas, então parece que não houve luta.

    Ela seguiu os passos pequenos no solo, inclinando-se levemente para examiná-los.

    — Essas pegadas da criança… — Kalina avançou alguns metros, observando como elas se alinhavam com marcas maiores. — A criança estava andando com um dos homens. Mas aqui, eles se separaram.

    Indicando com a mão, apontou para uma árvore próxima.

    — O homem se escondeu ali.

    Ela voltou para perto de uma pedra próxima, estudando outra série de passos que pareciam seguir o primeiro homem.

    — Há rastros de outro homem. Ele estava atrás deles.

    Depois de uma pausa, Kalina ergueu o olhar e declarou com convicção:

    — Acho que entendi!

    — Então? — Strivia perguntou. 

    — É apenas uma suposição, mas eu acho que o nosso prisioneiro foi capturado por alguém. P-por duas pessoas, talvez. O homem e a criança. É. Isso mesmo.

    — E conseguimos seguir os rastros?

    — Com a chuva as pegadas estão menos visíveis. Mas nem vamos precisar delas — Kalina ajeitou a espingarda na mão, e começou a caminhar para frente. — É só eu seguir o cheiro de sangue. Eu já estou sentindo ele indo pra cá…

    Com cautela, Kalina e Strivia avançaram, seguindo o cheiro de sangue que as guiava pela floresta. A cada passo, o cheiro se intensificava, até que avistaram uma cabana ao longe. Elas se esconderam entre as árvores, observando atentamente o local.

    — Tem sangue lá… Acho que é aqui, Strivia — Kalina disse.

    — É, deve ser — Strivia deu uns tapinhas no ombro da parceira. — Olha, eu não tava colocando fé, mas até que você é uma ótima rastreadora.

    — Obrigada!… — Kalina desviou o olhar, sorrindo. — Então, e agora?

    — Agora nós vamos até a cabana e batemos na porta.

    — O-oque?! N-não! Olhe, eu estou sentindo o cheiro de muito sangue lá dentro. E se houver inimigos?! E se… e se eles atacarem a gente? — Kalina disse disparadamente.

    — Calma, Kalina! Calma! Olhe… — Strivia se aproximou mais. — Não diga a ninguém, mas eu tenho umas técnicas que estudei por fora da Arte de Medicina. Então, caso algo dê errado, eu consigo tirar a gente dessa, está bem?

    — Você tem certeza?

    Strivia pegou no ombro direito de Kalina e olhou no fundo de seus olhos. 

    — Eu não vou deixar nada acontecer com você. Confie em mim — disse com um sorriso.

    — Tá… — Kalina respondeu, fechando os olhos tentando manter a calma.

    Após isso, Strivia começou a analisar a cabana. Era uma pequena casa de madeira, com apenas mato ao redor e um alçapão do lado de fora. Ela cogitou a ideia de entrar naquele alçapão primeiro, mas vendo a situação de Kalina, ela descartou. Após alguns segundos ponderando, finalmente disse:

    — Kalina, eu tenho um plano. Não é dos melhores, mas vou confiar em você. Eu posso confiar em você?

    Ela olhou para Kalina, que arregalou os olhos como um ratinho assustado. Continuou encarando-a esperando por uma resposta. Kalina não disse nada, apenas afirmou com a cabeça.

    Após alguns minutos, houve a batida na porta da cabana, que acabou interrompendo a conversa entre Hélio e Enki. 

    Quem será? — Enki perguntou.

    — Não faço ideia — Hélio mal conseguia esconder a frustração em sua voz. Possivelmente, seu plano de fugir estava por um fio. 

    As batidas na porta se intensificaram, cada uma soando como um trovão ameaçador na quietude da cabana. Hélio, ciente de que não poderia fingir ausência com as luzes acesas e o aroma denunciante do caldeirão, agiu com uma rapidez nascida do desespero. Ele arrastou o corpo de Brian para trás da mesa da cozinha, numa tentativa frenética de ocultar sua morte. O sangue dele agora era uma pintura macabra no chão. Mas não havia tempo para limpar a cena; cada segundo era precioso e fugaz.

    Com o coração martelando contra o peito, ele agarrou Enki e o colocou na bainha em sua cintura. Seus passos, embora hesitantes, o levaram até a porta. A abriu lentamente. Strivia estava do lado de fora, e Hélio se posicionou de forma para bloquear sua visão do interior da cabana, seu corpo se tornando uma barreira entre ela e o sangue lá dentro.

    — Boa noite, senhor! — Strivia comprimentou. 

    Hélio não respondeu de imediato, seu olhar cauteloso percorrendo a figura encapuzada à sua frente. A capa negra e o capuz ocultavam boa parte de seu rosto, deixando Hélio em um estado de alerta. 

    — Boa noite, senhorita! Em que posso ajudar? — consciente de que sua demora poderia levantar suspeitas, ele finalmente encontrou sua voz, forçando um sorriso para aliviar a tensão.

    — Desculpe chegar a essa hora da noite, mas os Herikson ainda vivem aqui? — perguntou ela, tentando espiar o interior da cabana, mas não conseguindo. 

    — Herikson? — Hélio atrasou a pergunta enquanto apenas se preocupava em impedir que ela visse algo lá dentro usando o seu corpo. 

    Diga que eles saíram — Enki sugeriu.

    Em um reflexo nervoso, Hélio esbofeteou a bainha da espada ao ouvir Enki. Strivia notou a estranha reação.

    — Algum problema, senhor? 

    Idiota! Ninguém pode me ouvir, não se lembra? — Enki brigou. 

    — Nenhum problema, não! — Hélio assegurou, engolindo seco.

    — E os Herikson?…

    — Eles… saíram! — gaguejou.

    — A essa hora?

    — Sim, eles… gostam de caminhar à noite — tropeçou nas palavras mais uma vez.

    Você está gaguejando demais, Hélio! Pare com isso ou seremos pegos! — Enki disse, quase gritando.

    — Então você é filho deles? 

    — É… sou sim. 

    — Ótimo! Preciso de ajuda para encontrar um homem.

    — Um homem? 

    Strivia retirou um cartaz da bolsa.

    — É o retrato dele? — Hélio perguntou, usando o dedão direito para arrancar uma lasquinha da unha da mesma mão.

    — É apenas uma descrição — Strivia começou a ler, sua expressão séria. — Estranho…

    — O que? O que é estranho…? 

    — Ele se parece com você. 

    — Comigo? — Hélio riu, tentando parecer confiante. — Impossível! Foragido? Eu?… Qual foi! Meus pais me matariam!

    — É, eu imagino — Strivia riu amigavelmente, mas logo fechou sua expressão. — Mas olha, é estranho porque se parecem muito. Pele parda, magro, cabelo castanho e médio… e você é baixo, além de ter um olho caído.

    Ela baixou o olhar para as pernas de Hélio, e sua expressão mudou ao notar o rasgo em sua calça que até então não havia percebido.

    — O que foi? — Hélio perguntou.

    Após não obter respostas, ele seguiu o olhar dela e viu a mancha vermelha na sua própria coxa, um lembrete cruel do ato cometido. O sangue de Vini, uma marca indelével de sua negligência, gritava a verdade que ele tentava esconder.

     Hélio se viu encurralado, sem saída visível. Travou, incapaz de decidir o próximo passo. Porém, Enki, num movimento decidido, saiu da bainha como um raio, voando em direção a Strivia.

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