Capítulo 21: Essa é a minha coroa, lástima
“‘Estou caminhando em um precipício. Há terras de coragem ao lado, e terras ainda mais sustentadas e firmes ao outro: covardia. Se agarrá-la, ficarei vivo’, tentou confortar-se, mas não tinha ciência de que nenhum dos caminhos era menos perigoso do que o outro.”
Izandi, a Oniromante.

— Dona Ofina, talvez possa ser pretensiosa minha fala, mas tenho uma curiosidade: como aguenta o frio daqui?
Ezekel assentiu internamente com a pergunta do irmão Natharel, que manejava as rédeas da casa rolante. Ofina escolhera um vestido recifano de cetim carmim puro, com um decote que chegava ao umbigo e faixas de linho adornando o pescoço.
Por favor, não vista algo assim no inverno, principalmente nas ruas, dissera. Enrubesceu com outro que ela pusera. “Ao menos não é tão escandaloso.”
Por sorte, Natharel os trouxera roupas que não seu terno woulevita e o camisão de cetim translúcido que usavam na noite do atentado.
O Canal das Flores corria vagaroso ao leste, esbranquecido pela marcha das nuvens cinzentas e álgidas; dentro da casa rolante, um pequeno braseiro esquentava o casal real, além de suas peles.
Ezekel segurava Notações da Lei Principia, de Arneld Hian — que fora id Baene há meia centena de anos —, enquanto sua esposa o segurava pela cintura.
Os sofás de veludo estufado e almofadas de plumas e marilã foram secundários em relação às magras coxas do marido.
Ezekel tocou o canto do lábio carmim da esposa.
— Parece tão inofensiva, assim — sussurrou, diminuindo a distância entre as cabeças.
Ela fez um sorriso perverso.
— Um perverso homem espreita minhas virtudes? E agora, quem defenderá a donzela?
Os dois riram um pouco antes que Ezekel a calasse com os lábios.
— Serei ignorado por pombinhos, mesmo?!
— Ora — bradou Ofina, ajustando suas costas e olhando as costas de Natharel pela janela —, se tivesses uma esposa, então estaríamos nós quatro com ótimas conversas.
— Meu emprego priva-me desse tempo, dona Ofina.
— Mulheres sabem perceber mentiras de homens, meu querido novo-irmão — deu uma sonora risada. Ezekel deu-a uma fatia de torta de limão, que jazia sobre uma pequena mesa feita sobre o assoalho, e fitou as costas do irmão. “Já deveria estar casado também.” — Diga-me a verdade, ó, Draconeiro!
Natharel olhou por detrás da janela, com um sorriso entreaberto e olhos azuis saltitantes.
— Gosto de mulheres mais altas do que eu, que sabem brandir espadas, vestir armaduras e montar em dragões-reais — voltou o rosto para a estrada. — E que possa me vencer em um duelo, é claro.
Ofina ficou calada, com o rosto feito pedra. Ezekel deu uma risada sonora. “Era assim desde sempre, a mesma desculpa.” Rei Rikard já o arranjara noivados, lembrou-se Ezekel, e certa vez Natharel até mesmo levou uma de suas noivas para a Mata dos Grilos, nos últimos meses antes que fossem para Ocas Ciled.
“Jeyne Lockh, se não estou enganado.” Fora uma tão bela presença que Sesje praticamente a roubou do noivo: seus cabelos eram folhas de ouro, e os olhos eram como observar um lago parado. Mais velho, Ezekel começara a se lembrar que…
“Ofina é mais bela”, concluiu. Como não seria? Era a mulher mais linda do mundo, tinha certeza. “Sua voz é mais bela, é mais alta, não brande uma espada ou monta em dragões-reais, porém esconde as fraquezas do marido…’
‘Fraquezas essas que não existem mais”, obrigou-se. “Não existem mais, não existem mais.”
A Cidade de Diamante surgiu no horizonte poucos minutos depois. A Proa dos Pântanos estava, como sempre devera, aberta. O alto arco retinto e altivo refletia as réstias de luz pouco amanhecidas em verde-marinho acinzentado, enquanto seus portões de metal projetavam sua sombra por centenas de metros de distância, protegidos por meia centena de escudiamantes cingidos de lanças e controlando a fila de carroças de mercadores. Eles reconheceram Natharel e seu brasão real, os deixando passar.
— Salve, Vossa Graça! — disseram a Ezekel.
E então uma colossal sombra alada zurziu os céus e rasgou um caminho entre as nuvens como um milhão de águias velozes — o brasão da sua Casa antes dos dragões-reais. “Artreni”, deduziu o id Baene.
Rumava até a alta torre no centro da Cidade, o Ninho-do-Dragão, detrás do Palácio dos Cinco. Ezekel não tivera coragem de sair do esconderijo, nem quando a reunião tinha chegado ao seu fim e todas as suas ideias de como deveria agir fossem assentidas pelos mais experientes irmãos.
Natharel mesmo Artreni para o irmão. Ela é perfeita para chamar atenção, além de ser a mais delicada, gentil e amável entre os nossos, falou na Língua, então suas costas estremeceram, e Ruyach nunca deixaria Ezel montá-lo. Jamais.
“Não sei dizer se é algo bom ou ruim”, refletiu Ezekel. Um colossal dragão-real púrpura e de protuberâncias ósseas em lança e asas tão grandes quanto casas de plebeus com certeza chamariam atenção também.
Deixara o sofá para ver Artreni, mas o ar quente que fizera vapor branco invés de neve o repeliu. Não queria vê-la. “Mas preciso. De outro modo, não me levarão a sério. Pelos Quinze, nem eu me levo a sério.”
— O que é, amor meu? — Pôs a mão na testa do marido. Ezekel suspirou e fechou os olhos, suavizando a expressão. — Assim é melhor; é belo demais para o rosto de carranca.
— Eu te amo.
— Ai de ti se não amasse.
“Ah”, pensou, e viu-se sem ar, vermelho. “É por ela”, tocou o ventre opado da esposa “e por eles.” Enfrentaria a dragão-real. “Tenho que aprender a montar, e retornar a praticar com a espada para não ser salvo novamente.” Seu irmão dissera que Artreni era gentil. Estava contando com isso.
Atravessaram o Caminho do Pântano rapidamente. O Canal das Flores libertava um tíbio vapor quente graças aos queima-gelo armados à sua beira; dezenas de donas de casa lavavam suas roupas enquanto crianças brincavam ao lado das mães.
“É por eles também”, concluiu. E o tropel dos cavalos os levou ainda mais longe, onde o rio tornava-se um grande e vasto lago, onde há duzentos anos ergueram um porto — o Porto de Jaspe.
O Canal das Flores já era utilizado como rota de comércio em Aavier desde séculos antes de se tornar Aavier e, pelo que lembrava das aulas de história em Ocas Ciled, fora razão de guerra inúmeras vezes.
Certa vez, os Lievhen quiseram aumentar sua influência pelo sul, por sua vez, os Hoones envenenaram a água e acertaram os Lennarsen… Um canto surgiu do caos. “Tiel e Nira, o Traidor e a Rainha Rubra…”
Não gostava nem de imaginar erros que levassem Ofina a ter um caminho semelhante ao da rainha Nira Beesh. Balançou o pescoço como a cauda de um cão.
“Se as informações de meu irmão Rikard estiverem corretas, o séquito de rei Rheider Bloemennen deve chegar ao Vale em breve, prestes a pegar os portos rumo à Bennevir.”
Logo chegaram a colina do Palácio dos Cinco. Paredes de tijolos brancos uniam-se tão uniformemente que não pareciam ser tijolos, mas puras paredes de mármore para um frontão debruado e altivo.
No portão esquerdo, um profundo talhe de uma loba de três cabeças fora preenchido com jaspe, enquanto no direito, um entalhe de um dragão-real rugia seu temor pelo longo pescoço e protuberâncias de joias azuis.
— Vossa Graça! — cumprimentaram os escudiamantes, entrando em riste e batendo seus escudos retangulares no chão.
— Descansar — rugiu Natharel, saltando do lugar do cocheiro. Ezekel ajudou a esposa a ficar de pé, cobriu-a com um manto de raposas e seu alto irmão abriu as portas da casa rolante.
Ezekel pisou o chão primeiro, com a mão erguida para dar suporte à esposa, que descera graciosamente o estribo. Ela lançou ao marido um olhar cansado e provocante, e assim que ela terminou com a escadaria, respirou fundo.
Virou-se aos escudiamantes. Enrijeceu os ombros. Ofina falara para deixá-los para trás, erguendo o peito. Peito duro, rijo como o semblante furioso e intransponível, mas não para frente demais. Já tem rosto de mulher, acharão que tem seio também, dissera, quase rindo. Sentiu o lábio secar. Encorpou a voz…
— Onde estavam na noite que parti? — indagou, dando um passo surpreso fronte os homens armadurados. “Não sabia que era tão fácil assim… engrossar a voz.”
Um dos escudiamantes foi a frente dos outros. Possuía uma armadura mais detalhada, com ombreiras ornamentadas e braceiras azuis, além de uma capa cinza pendida sobre o ombro esquerdo, com um brasão de uma Casa menor de Flassam.
A forma que andava exibia os espadaúdos ombros e um quê de confiança; e Ezekel estava ciente de que não mais o veria outra vez.
“Logo os Ceis que rei Rikard convocou chegarão.”
— Maioria dos que estão aqui — respondeu, dando uma leve batida respeitosa no peito — estavam no dormitório ou em suas casas, Vossa Graça. Os… invasores foram argutos demais. Invadiram enquanto trocávamos os turnos…
— Entendo — respondeu o id Baene. — Príncipe Natharel Godwill, por favor.
Natharel assentiu com um sorriso largo pelo belo e dourado rosto. Pôs a mão no peito e prestou uma vênia profunda. As suas ordens, Vossa Graça, respondeu e partiu de imediato. Os outros escudiamantes pareceram enegrecer a vista. Ezekel entendeu. “É asfixiante.”
— Significa que precisaremos de mais escudiamantes aqui. Há presos?
— Sim — respondeu. — Conseguimos jogar alguns dentro das grades, Vossa Graça, mas eles não colaboraram conosco. Maioria fingia que não falava nossa língua, fazendo um leque de barulhos estranhos e desfigurados, isso quando ao menos tentavam fingir. Alguns outros nós observamos muito bem.’
“Havia uma vadia faladora, confesso, mas ela não durou muito. Ela conseguia pronunciar nossa língua, e sentia tanto medo do que achava que os outros prisioneiros fariam com ela que começou a falar, mesmo que um monte de nada com nada. Então, no dia seguinte, vimos que um dos seus parceiros de cela estava deitado no chão, fedendo. Abrimos a jaula, todavia os outros dois saltaram contra mim e meus dois companheiros.’
“Tinham facas escondidas e afiadas. Facas não deveriam ser tão afiadas assim. Estávamos com armaduras… Atravessaram a garganta de meu amigo Kollis e a barriga de um novato, porém consegui matar os dois no último momento. A vadia fingiu que estava ferida e tentou esfaquear-me também, e acabei por matá-la. Kollis deu um jeito de sobreviver, mas o novato, eu vi ele tentando pôr os intestinos e estômago de volta na barriga.”
Ele clicou a língua. O id Baene engrossou a voz, de repente sentindo-se furioso, e ordenou que levassem sua esposa em uma liteira antes que continuassem. Dois escudiamantes retiraram a liteira da casa rolante e gentilmente levaram Ofina Palácio adentro. O id Baene pôs as mãos detrás das costas, segurando a adaga na cintura e começou a andar.
— Continue. — Entrou no Palácio, a princípio o mesmo corredor que Ofina seguia, mas entrou à direita. O cavaleiro de Flassam moveu uma alavanca, então uma porta sem aldrava foi aberta por dentro. Os dois seguiram, acompanhados por mais quatro cavaleiros.
O ar era úmido e fedorento.
— O resto tentou fazer o mesmo, senão arrancar a própria língua. É coisa de imperial, tenho certeza. São eztrielizianos sujos, mas o garoto com certeza é woulevita.
— Garoto? — “Por que, Deuses, não a mulher que tentou tirar minha vida e de minha esposa?” De todos os responsáveis pelo morticínio… Ezekel cutucou a cicatriz na têmpora.
— Um traidor, aposto.
— Ainda está vivo? — engoliu em seco. Seus passos ecoavam pelo fedor e odor de ferrugem.
Um grande salão de pedra e mofo surgiu adiante: rochas esverdeadas e fedorentas escorriam gotículas de água pelo corredor estreito onde dois homens mal conseguiriam andar lado a lado sem esbarrarem os ombros, iluminado por fracos archotes e lampiões de latão e óleo, deixando à luz toda a sujeira no chão.
Ezekel sentira um fedor pungente atingir seu nariz. Podridão de fungos, de suor seco e dejetos em baldes de madeira decrépita vinda de centenas de celas gradeadas, ladeadas por cavaleiros armadurados e com lanças enormes. “Isso, abaixo de minha cama…” E se bifurcava. Havia mais, mais e mais corredores…
— Da última vez que o vi, sim — respondeu. — Está logo ali, Vossa Graça.
Dois escudiamantes o guiaram até uma cela no final do primeiro corredor, uma que os archotes não conseguiam iluminar mais do que dois palmos depois das grades de ferro áspero.
O cavaleiro nobre elevou um lampião para revelar o que quer que houvesse lá dentro. O id Baene viu um balde de dejetos quase vazio ao redor de uma cama de pedra vazia, e um rapaz quase da sua idade, ferido. “Não tire os olhos dele, não retire!”, obrigou-se.
O rapaz não vestia camisa senão um enovelado de ataduras no lombo, ainda sujo de sangue seco; ele fedia até mais do que os restos nas outras celas, seus cabelos loiros desgrenhados como se agarrados para rasgar seu escalpo em dois.
Mãos de unhas quebradas agarravam onde imaginava que ele fora ferido, enquanto lábios secos expiravam um ar sem luz, nenhuma luz.
— Abra — ordenou.
— Ele pode estar arma…
— Abra.
O escudiamante estralou o punho e partiu, e os olhos do rapaz cravaram-se no Godwill por cima do ombro; cerrados dentes faziam um barulho que causava dor até no príncipe, e quando notou os punhos em carne viva graças as correntes alaranjadas, sentiu ânsia de vômito.
“Olhe, não retire os olhos! Acostume-se. Essa é sua minha coroa!” Logo, o garoto pôs forças para ficar de pé, e o id Baene viu uma compleição furiosa e muito mais alta que a sua.
— Fala minha língua?
— …
— Peço que me responda — pediu. Tocou numa das grades. — Se puder, é claro. Também sei ler gestos, se tiver dificuldades, e falar em sântico.
— Quem é você e o que quer de mim? — grasnou o rapaz, semicerrando os olhos.
— Eu? Alguém que quer te soltar, só isso — mentiu. Se ele fosse um traidor, preferia-o preso, e bem distante. “E então, contaria de novo onde durmo, ou talvez voltasse para ceifar-me à noite.”
— Ah… Conta outra. Contem outra maldita mentira!
— Por que mentiria? — Uniu os braços e inclinou o pescoço. Rikard o contara que era arrogante gesto e fazia os tolos abrirem a boca sem querer. — …Não venço nada mentindo sobre sua libertação; se ficares privado, ambos saímos derrotados. Os Quinze se comprazem na verdade, e nenhum de nós quer faltar com os Deuses.
O garoto franziu o cenho. “Não é muito inteligente”, supôs. Ele abriu e fechou a boca. Expirou um hálito fedorento, mas o id Baene ignorou. Deixar os ombros eretos por tanto tempo começava a pesar na sua coluna, mas um fraco ânimo o fez sentir orgulho e erguer o queixo. “Está funcionando.”
— Me diga, rapaz.
— Você não é mais velha do que eu…
Ezekel enrubesceu, virou o rosto e mordeu o lábio.
— Eu…
— Jura pelos Quinze? — Moveu-se para frente, tentando agarrar as grades, mas as pesadas correntes o fizeram gritar de dor e abaixar-se.
— Pela graça da Mãe… — Abaixou-se. — Sim, eu juro. Sou Ezekel Godwill, filho de rei Wicing Godwill e atual id Baene dos Cinco Reinos. Ainda que há pouco tempo… Mas tentaram matar-me, e você estava entre os assassinos. — Fechou os olhos, traçou o Sinal da Mãe e pôs os cabelos para trás. — Mas você não parece querer tirar minha vida. — Suavizou a expressão, mas não tirou os olhos dos olhos do rapaz alto. — Você não esperava que fossem fazer isso.
O rapaz fechou o rosto; uma expressão pálida de grito parecia estar prestes a explodir do seu crânio. Ele balançou a cabeça, ronronou consigo como o ladrar de um cão triste, olhou para o próprio peito e deu para trás. Seu cenho saltou em veias grossas e ardis; seus dedos cravaram nos musgos do chão.
— Eu… trabalhava no Ninho-do-Dragão…
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.