Capítulo 39 — Antes da jiripoca piar
O sol percorria os céus, gradualmente se aproximando do entardecer. Haviam se passado horas, mas o gosto forte e viscoso daquele chá ainda incomodava o céu da boca do emissário. Após andar sem rumo por bastante tempo, ele estava de volta ao acampamento onde tinha passado a noite.
“Eu não deveria ter saído para correr. Agora aquelas pessoas estão com problemas e a culpa é minha.”
Huan Shen adentrou o acampamento através das toras derrubadas pelos sulfurizados. Ao olhar seus arredores, não conseguiu deixar de reparar na bagunça causada. O solo estava revirado, as tendas derrubadas e pisoteadas, os caixotes quebrados e a fogueira remexida. Não houve um pingo de sutileza no que aconteceu ali.
“Não sei se naquele estado eu teria feito muita coisa também. Druida desgraçado!”
Com nada além de lamentações, o emissário estava prestes a dar as costas para o acampamento e seguir em frente, até que algo chamou sua atenção. Embaixo de alguns pedaços de madeira, sua mochila residia com nada além de alguns amassados. Seus joelhos se dobraram, removendo imediatamente todos os destroços até retirar o que era seu de lá.
— Merda! Como eu pude me esquecer?
Abrindo o zíper, o emissário olhou tudo o que estava dentro para ver se estava lá. Um caderno, alguns livros, sua bússola, seu relógio, algumas mudas de roupas e um envelope de papel.
Seus olhos fitaram o envelope, enquanto suas mãos insensíveis e frias deixavam marcas nele. Com cuidado, Huan Shen o abriu usando a ponta dos seus dedos. Dentro, continha um dos seus bens mais valiosos:
Uma foto em sépia, com oito pessoas a compondo. Cinco estavam no fundo, quatro estavam agachadas na frente. Todos utilizavam uma calça militar de modelo padrão do Palácio Congelado, mas suas camisas eram casuais, indicando que tinham acabado de sair do serviço. Alguns carregavam machucados, outros pareciam cansados, mas todos estavam sorrindo ali.
Na fileira de trás, uma versão mais antiga de Huan Shen, com menos músculos, cabelo mais curto e uma sobriedade bem mais intensa residia com seus braços envolvidos nas pessoas ao seu lado.
“Eu sinto saudades de todos vocês.”
O som do vento uivando nas árvores o trouxe de volta a cruel realidade, onde estava prestes a lutar uma batalha em completa desvantagem e ainda estava preso em um estado de vida e morte.
Próximo da tenda quebrada, ele encontrou o que parecia ser uma semiautomática entre os destroços. Aquilo o pegou de surpresa, pois o fato dos bandidos não terem usado aquilo nele mais cedo era muito estranho. Ainda tinha balas e parecia plenamente funcional. Embora não gostasse muito de usá-las, até porque seus poderes eram bem mais efetivos que um tiro, seria bom ter algo para auxiliar contra o que estava prestes a acontecer.
Uns bons minutos se passaram e Huan Shen estava de volta ao templo abandonado. O céu estava prestes a se por, indicando que a hora do confronto estava prestes a começar. Por parte dele, não havia mais nada para fazer.
— Bruxa! Onde você está? — bradou o emissário.
Sua voz ecoou pela selva, mas não houve resposta. O comportamento errático daquela mulher o deixava preocupado, afinal seu plano era completamente baseado nas habilidades misteriosas dela. Será que tinha sido um erro fazer um acordo com uma bruxa? Provavelmente sim.
— Bem atrás de você — uma voz suave e sussurrante surgiu atrás das suas orelhas.
Imediatamente, o emissário se virou e saltou para trás. Com seu corpo envolto em sombras, Kalira respondeu com um sorriso singelo, acompanhado dos seus olhos negros semicerrados.
— Você tem algo contra responder como uma pessoa normal? — respondeu Huan Shen, parcialmente exaltado.
Kalira recostou na coluna mais próxima, cruzando os braços. Seu corpo estava coberto pelo que parecia ser um manto negro numa olhada superficial. Porém, o jeito errado que o tecido se chocava com a silhueta que estava cobrindo tinha uma vivacidade um tanto esquisita. Não havia traços de costura ou dobras apropriadas, como também parecia estar se sobrepondo constantemente.
— Considere-se com sorte. Não costumo ter boas intenções quando apareço na sombra de alguém.
— Tch! Eu duvido muito que você tenha qualquer coisa que se assemelhe a uma boa intenção. Está tudo pronto?
A bruxa olhou em direção aos céus.
— Da minha parte, sim. Presumo que da sua também.
O emissário acenou com a cabeça.
— Então vamos! Podemos montar um perímetro e atacá-lo de surpresa, antes que consiga ativar qualquer mecanismo de defesa. A antecipação aqui pode ser a chave.
— Ainda não anoiteceu. Não há motivo de ter pressa. Vamos aguardar.
Huan Shen estreitou os olhos.
— Aguardar? Que porra estamos esperando? Quer agir quando for tarde demais?
— Huan Shen, você não é assim. Está precipitado, irritadiço! Por que não tenta pensar mais um pouco, garoto?
Era estranho ver alguém com a aparência mais nova que a dele o chamando daquele jeito, mas não deixaria seu conselho ser em vão. Huan Shen tocou em seu peito, mas a ausência de batimentos o assustava toda vez. Só de lembrar que possivelmente não estaria mais vivo após a meia-noite e todas as pessoas que confiavam nele seriam decepcionadas, sua mente perdia toda a paz.
Era necessário racionalizar. Uma selva era o território de um druida, o mestre da natureza. Possivelmente ele tinha olhos em todos os cantos, além de esconderijos para manter não só a si mesmo, como seus recursos intactos. Para piorar, ele deve ter montado diversas armadilhas para garantir que a quantidade de cadáveres seja maximizada assim que acordasse. Huan Shen não estava enfrentando um traficante ou um general, mas sim um místico que tinha muitos anos de experiência.
— Você está certa, devo acalmar minha mente antes. É que eu nunca estive em uma situação como essa antes. Sempre apostei minha própria vida contra inimigos claros e diretos, fazendo minhas próprias previsões e jogadas. Agora, estou totalmente nas mãos do destino.
Embora Kalira apenas se importasse com a parte do “Você está certa”, não podia negar que sentia um pouco de pena da situação dele. Nada a ponto de mover seu coração corrompido, mas no final das contas, ele foi só um peão em uma disputa de dois seres antigos.
— Quanto tempo teremos que esperar aqui? — perguntou o emissário.
A bruxa respirou fundo.
— Quanto tempo for necessário. Um minuto, uma hora ou duas. Apenas quando o sol se pôr, iremos agir.
“Odeio ficar parado. Será que eu deveria dar uma corrida para aquecer? Mas esse corpo já é otimizado para o combate e não sinto os efeitos do cansaço. Porra!”
— Sabe? Olhando para você nesse momento, eu comecei a cogitar algumas coisas, mas não sei se seu corpo reagiria de forma apropriada — disse Kalira, com seus olhos fixos no emissário.
“Não sei se tô entendendo, não sei se quero entender também…”
— Eu deveria ficar preocupado?
Kalira olhou para os céus novamente, soltando um suspiro.
— Esquece o que eu disse. Pegue suas coisas, está na hora.
Quando Huan Shen se deu conta, os céus estavam enegrecidos mais uma vez. Os sons sibilantes e sinistros na Selva de Concreto começavam a ganhar espaço mais uma vez. Com sua mochila nas costas e uma pistola semiautomática apropriadamente carregada, ele seguiu os passos da mulher de preto, em mais uma luta para sua vida e sua humanidade.
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