Capítulo 11: A Dança dos Predadores - Gelo.
O ar ao meu redor estava mais denso, carregado por um frio que não pertencia à noite. Meu olhar percorreu a casa às minhas costas, os rastros das explosões que causei ainda vibravam em brasa pelo chão de pedra, iluminando a rua deserta com tons alaranjados. Mas agora, esse calor era lentamente sufocado pela presença dele. Por um momento a figura encapuzada permanecia imóvel, exceto pelo vapor gelado que escapava de seu manto a cada movimento sutil. Frio contra fogo. Escuridão contra luz.
Eu sentia a energia pulsando em minhas veias, uma força indomável que queria se expandir, consumir, transformar tudo ao redor em cinzas. Mas não era hora de agir sem pensar. Analisei meu oponente. Ele era alto, esguio, e mesmo parado, exalava aquela quietude ameaçadora de um predador esperando o momento certo para saltar. O frio que emanava dele não era natural, era intenso demais, quase como se drenasse a vida ao redor. O gelo se acumulava no chão pouco a pouco, espalhando-se sutilmente, tornando o terreno traiçoeiro. Ele estava preparando o campo.
Então, ele atacou.
Sem aviso, sem hesitação, uma rajada cortante de lâminas de gelo rasgou o ar na minha direção. Meu corpo reagiu antes que eu sequer pensasse. Saltei para trás, os pés tocando o solo apenas o tempo necessário para impulsionar-me novamente. Movi os braços, e uma explosão carmesim irrompeu em minha frente, derretendo as primeiras lâminas no instante em que se aproximaram. Mas ele não parou. Outras espadas se formaram ao redor dele, girando em uma dança precisa antes de dispararem em um ataque contínuo.
Sorrindo, ergui a mão e invoquei o fogo. Uma serpente incandescente se desenrolou dos meus dedos, chicoteando as lâminas e reduzindo-as a vapor. Mas o maldito já havia se movido. Surgiu ao meu lado em um piscar de olhos, o ar congelando em seu rastro. Uma estocada veloz veio em direção ao meu peito. Girei o corpo, desviando por pouco, e aproveitei o movimento para deslizar uma explosão de chamas em sua direção. O fogo rugiu, engolindo o espaço entre nós.
Mas então, um estalo ressoou. O calor encontrou resistência. O gelo se ergueu diante dele. Eu travei os dentes. Esse filho da mãe não ia cair fácil…
O gelo resistia ao fogo, estalando, rangendo, insistindo em não derreter. Meu olhar afiado percorreu a cena em busca de brechas, qualquer falha no padrão do inimigo. Ele mantinha uma postura rígida, as mãos se movendo como um maestro conduzindo uma sinfonia gélida. As lâminas de gelo giravam ao seu redor, e mesmo no breu da noite, o brilho azulado refletia a luz das brasas ainda crepitando pelo chão.
Meu sorriso se alargou.
— Se está esperando que eu congele no lugar de medo, vai ter que tentar mais do que isso — provoquei, sentindo a energia pulsar em minhas veias.
Deslizei a mão até a empunhadura da espada presa à minha cintura e, com um único movimento, saquei-a. A lâmina reluziu com um tom avermelhado, refletindo o calor crescente ao meu redor. O fogo respondeu ao chamado, serpenteando ao longo da lâmina como se fosse uma extensão dela. Agora, eu não estava apenas controlando as chamas, eu as estava empunhando.
Ele não disse nada. Apenas ergueu a mão, e mais lâminas de gelo se formaram. Dessa vez, não eram apenas espadas dançantes no ar, mas lanças finas, afiadas, prontas para perfurar.
Ele atacou primeiro.
Os projéteis cortaram o espaço entre nós em alta velocidade. Eu girei o corpo, desviando de um, depois de outro. O terceiro passou rente ao meu rosto, deixando um fio de ar gelado que fez minha pele arder. Eu não podia perder tempo apenas desviando. Meus pés firmaram-se no solo congelado, e com um golpe ascendente da espada, liberei uma torrente de chamas que subiu como um rugido selvagem, devorando as lanças antes que pudessem me atingir.
Meu adversário recuou um passo. A primeira hesitação.
— O que foi? Não está gostando do calor? — avancei sem esperar resposta, girando a lâmina no ar e golpeando em sua direção.
Ele ergueu uma parede de gelo para se proteger, mas eu já esperava por isso. Meu fogo explodiu contra a barreira cristalina, e no mesmo instante, desfiz o ataque e deslizei para o lado, acelerando em um arco. Meu inimigo ainda estava fixo na defesa, e era esse o momento perfeito.
Girei a espada com ambas as mãos e disparei em um movimento cortante, minha lâmina ardendo como um cometa.
O som do tecido se rasgando cortou o silêncio da noite. O manto negro que ocultava seu rosto deslizou pelo ar e caiu ao chão. E então, eu o vi… minha respiração ficou presa na garganta. O calor ao meu redor oscilou por um instante.
— Mas que diabos…?
Os olhos dele brilhavam como lâminas de gelo sob a luz da lua, e sua pele… não era apenas pálida, era quase translúcida, entrecortada por veios azulados como se o próprio sangue tivesse sido congelado dentro de seu corpo. Rachaduras finas cobriam parte de seu rosto, parecendo vidro prestes a se partir. O cabelo, de um tom azul celeste, caía sobre a testa em mechas desalinhadas, e sua expressão…
Ela não carregava fúria, nem surpresa. Apenas um vazio aterrador. O que quer que ele fosse… aquilo não era normal. E eu precisava entender que tipo de inimigo estava enfrentando antes que fosse tarde demais.
***
Eu continuei olhando para a janela gradeada, os olhos fixos na penumbra lá fora, tentando decifrar o que tinha passado por ali momentos antes. Seria um rato? Algum outro animal? Meu corpo ainda estava tenso, a mente dividida entre a urgência de fugir e o medo do que poderia estar me esperando caso conseguisse.
O estalo de um movimento atrás de mim fez minha pele arrepiar.
Virei o rosto devagar, prendendo a respiração por um instante. A silhueta pequena entrou na sala, movendo-se com agilidade, mas sem qualquer hesitação. Meu primeiro instinto foi recuar, o desconforto rastejando sob minha pele. Mas então, uma voz se ergueu no silêncio do porão, carregando um tom que me fez franzir a testa.
— Humm… humana fedorenta, mas humana bondosa. Sim, sim. Cheiro de medo, um cheiro forte.
Meus olhos se arregalaram levemente quando reconheci aquela forma peculiar. Pequeno, olhos grandes e brilhantes sob a pouca luz, a cabeça em formato de um cogumelo azulado.
— Você…?
O chefe dos homúnculos da floresta. Ele inclinou levemente a cabeça para o lado, como se tentasse me analisar melhor.
— Homúnculo ouve estrondos, muitos estrondos. Vila assustada, sim. Homúnculo vem ver. E então, homúnculo sente o cheiro da humana que ajudou, um cheiro amargo… cheiro de medo.
Ele se aproximou com passadas curtas, observando ao redor com olhos atentos, analisando cada canto do porão. Depois de um momento, soltou um som baixo de satisfação e disparou em direção a um canto escuro.
— Humanos perdem coisas demais. Descuidada, descuidada — cantarolou, enquanto puxava algo do chão e o erguia.
A luz fraca revelou o brilho metálico de uma lâmina. Minha adaga. O alívio veio tão forte que quase suspirei em voz alta. Selene havia me dado aquela adaga antes, insistindo que eu deveria carregá-la o tempo todo.
— Posso cortar, posso soltar, sim, sim.
Ele saltou para cima de um barril e, com a lâmina pequena, começou a serrar as cordas que prendiam meus pulsos. Minhas mãos estavam dormentes, os dedos formigando com a volta da circulação.
E então, um novo som preencheu o porão. Dessa vez, não era o silêncio opressor da noite, nem os resmungos do homúnculo.
Era o eco de um impacto violento do lado de fora, seguido de outro. Estrondos secos, como trovões partindo o chão. O choque percorreu o ar como uma onda invisível, fazendo as tábuas do teto vibrarem e soltarem farelos de poeira. Minha respiração travou. Aquilo não era um barulho qualquer. Era uma luta.
— Você… realmente me ajudou. Obrigada.
Minhas palavras saíram baixas, quase hesitantes, mas eram genuínas. O homúnculo apenas fez um som satisfeito, recolhendo minha adaga e me entregando. Suas mãos pequenas ainda estavam manchadas com pedaços das cordas cortadas.
Eu esfreguei os pulsos, tentando dissipar a dormência, e então olhei ao redor do porão. O espaço parecia ainda mais opressivo agora que eu podia me mover livremente. Meus olhos pousaram no garoto que continuava imóvel, os olhos arregalados e vazios. Ele sequer tinha reagido ao que aconteceu.
Engoli em seco e me abaixei ao lado dele.
— Ei… vamos sair daqui.
Ele piscou lentamente, como se precisasse processar minhas palavras, antes de assentir.
Ajoelhei-me para cortar as cordas que o prendiam, e ele soltou um som trêmulo quando finalmente pôde mover os braços. Eu o ajudei a se levantar, e juntos nos movemos em silêncio até a porta do porão.
Devagar, empurrei a madeira gasta, sentindo a brisa fria do lado de fora da pequena abertura. O som da batalha continuava distante, cada estrondo ecoando como um trovão abafado.
Eu já me preparava para sair, quando meus olhos captaram algo mais à frente, no fim do corredor estreito: Outra porta.
Um arrepio subiu pela minha espinha. O ar ao redor daquela porta parecia… errado. Como se algo invisível pulsasse ali, distorcendo o espaço ao seu redor.
Foi então que notei as manchas. Marcas de sangue espalhadas pelo chão de pedra, formando um rastro irregular que levava até a base da porta. Algumas eram apenas borrões, como se algo tivesse sido arrastado para dentro. Outras eram mais nítidas, impressões de dedos trêmulos tentando agarrar o solo.
Minha respiração ficou presa na garganta. A mulher que foi levada…
Minha mente gritava para que eu corresse, para que saísse dali o mais rápido possível antes que fosse tarde demais. Mas algo em mim travou.
Se eu fosse embora agora, estaria abandonando alguém à própria sorte.
Minha mão se fechou em um punho trêmulo.
— Escute — sussurrei para o garoto ao meu lado. — Quero que você corra. Se esconder se for necessário. Mas saia daqui.
Ele me encarou, a expressão vazia se transformando em incredulidade.
— O quê?
— Eu… eu preciso ver o que tem ali.
A cada palavra, eu sentia o nó no meu estômago apertar.
O garoto virou o olhar para a porta e então voltou a me encarar, e foi nesse momento que percebi.
A forma como ele engoliu em seco. Como sua mão se fechou ao lado do corpo. Como seu rosto se contorceu com uma angústia contida.
— Eu… não posso fugir — ele sussurrou, a voz trêmula. — Eu e minha mãe fomos atacados. Se… se aquela mulher for ela, eu…
Minha garganta secou… ele não podia sair dali sem saber. O medo ainda agarrava meu peito como um peso sufocante, mas agora havia algo mais ali, algo mais forte. A memória de como me senti quando perdi minha avó veio à tona… eu não queria deixar aquele garoto passar por isso sem ao menos lutar. Inspirei fundo, os dedos apertando o cabo da adaga. Então, sem mais hesitação, dei um passo à frente.
— Vamos descobrir — disse parecendo determinada.
— Humana idiota — murmurou o homúnculo, sua voz carregada de desconfiança.
Eu me virei para encará-lo, notando a forma como seus olhos arregalados não se desviavam da porta à nossa frente. Sua expressão parecia ainda mais contraída do que antes, os dedos pequenos crispados no chão de madeira como se estivesse pronto para fugir a qualquer momento.
— O que foi? — perguntei, ainda ofegante pela tensão.
— Meus instintos não erram. Aquilo ali… — Ele franziu o rosto, inclinando-se para frente e farejando o ar. — Tem algo além dessa porta. Algo ruim.
O tom seco e definitivo fez um arrepio subir pela minha espinha. Eu já sabia disso, mesmo sem precisar de seus instintos para confirmar. Desde o momento em que vi as marcas de sangue próximas à porta, senti um aperto no peito, um aviso silencioso que me implorava para me afastar. Mas, ao mesmo tempo, algo dentro de mim insistia em avançar. A mulher que havia sido levada… ela ainda poderia estar viva. Será que eu conseguiria salvá-la? Ou estaria apenas caminhando para a minha própria desgraça?
Antes que pudesse decidir, um movimento repentino ao meu lado me fez despertar do conflito interno. O garoto. Ele se moveu rápido demais, determinado, e, antes que eu pudesse reagir, sua mão já estava na maçaneta.
— Espera! — exclamei, estendendo o braço para segurá-lo, mas foi tarde demais.
O ranger da madeira preencheu o silêncio sufocante do corredor enquanto a porta se abria lentamente. Era um som prolongado e incômodo, semelhante a um grito abafado. O ar que escapou do outro lado era pesado e frio, carregado com um cheiro ferroso que fez meu estômago revirar. De repente, tudo pareceu desacelerar, o próprio ambiente prendendo a respiração diante do que estávamos prestes a presenciar.
E então, nós vimos. Meu coração falhou uma batida. O garoto ao meu lado ficou completamente imóvel, como se seu corpo tivesse sido petrificado pelo horror. O que quer que fosse aquilo dentro daquela sala, não era algo que deveríamos ter visto. O sangue gelou em minhas veias e, por um instante interminável, sequer consegui respirar.
***
Se aquilo fosse uma pessoa, estaria à beira da ruína. A Corrupção de Cores não apenas retorcia a forma de alguém, mas também apagava sua identidade até restar apenas uma carcaça vazia, incapaz de manipular sua própria energia mágica. No entanto, o ser diante de mim não apenas mantinha sua força: ele a utilizava com precisão. Isso não fazia sentido.
O manto negro agora caído revelou um corpo parcialmente cristalizado, fragmentos de gelo azulados emergindo de sua pele como geadas amaldiçoadas. Seus olhos não eram os de alguém em agonia, tampouco os de um louco entregue ao vazio. Eram frios, cheios de propósito.
— O que foi? — Sua voz cortou o ar como lâminas afiadas. Ele inclinou a cabeça levemente, e o brilho gélido em seu olhar pareceu se aprofundar. — Está surpresa com a minha forma?
Não respondi. Não havia nada a ser dito que não fosse óbvio. Qualquer um ficaria surpreso. Mas não era apenas a aparência dele que me incomodava. Era a forma como ele se movia, a confiança nos seus ataques, a maneira como as espadas de gelo ainda giravam no ar ao seu redor, esperando o comando final.
— Hmph. — Ele riu, mas não havia humor em sua voz. — Imagino que você tenha muitas perguntas. Não se preocupe… não terá tempo para encontrar as respostas.
Com um único gesto de sua mão, as espadas ao seu redor se lançaram contra mim, tão velozes que só tive tempo de me esquivar por instinto. Rolei para o lado, sentindo a lâmina gélida de uma delas roçar perigosamente meu braço. Ele não hesitou. Em um segundo, já estava em cima de mim, o chão ao redor se transformando em gelo sob seus pés. Meus movimentos desaceleraram o suficiente para que sua investida quase me atingisse por completo.
A lâmina de gelo passou a centímetros do meu rosto, forçando-me a recuar mais uma vez. Com um estalar de dedos, invoquei chamas ao redor da espada e girei o corpo, traçando um arco carmesim no ar. O calor intenso fez o gelo crepitar, derretendo parte de suas lâminas, mas ele apenas conjurou mais. Eu precisava de algo mais decisivo.
Seus ataques continuavam, cada vez mais ferozes. Estava me pressionando, me forçando a jogar na defensiva. Cada golpe me empurrava para trás, e, embora eu conseguisse rebater a maioria, senti uma fagulha de frustração crescer dentro de mim. Esse maldito… ele era rápido.
Por fim, pisei firme no chão, permitindo que o fogo ao meu redor se expandisse em uma onda curta, afastando-o momentaneamente. Respirei fundo, ajustando a pegada na espada.
— Tsc. — Fiz uma pausa, levantando o olhar para ele. Meus olhos se estreitaram em um brilho desafiador. — Acho que não tenho escolha.
Minha voz saiu séria, carregada de uma falsa resignação. Lutar em um local tão pequeno e com pessoas inocentes não está sendo vantajoso para mim…, mas uma ideia me atingiu com clareza. O canto dos meus lábios se curvou em um sorriso perigoso enquanto ergui a lâmina incandescente diante de mim.
— Parece que vou ter que lutar a sério.
Fim do Capítulo 11 – A Dança dos Predadores: Gelo.
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