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     A lua imperava no céu noturno da Selva de Concreto, devolvendo o cenário escuro e enevoado que o emissário teve que encarar no seu primeiro dia. Agora que tinha se tornado uma criatura nativa de lá, os barulhos assustadores e misteriosos tinham se tornado consideravelmente silenciosos. A única coisa que chamava sua atenção era o silêncio sepulcral interrompido ocasionalmente pela passagem do vento.

    — O que estamos procurando? — perguntou Huan Shen, atento aos arredores.

    Kalira o acompanhava com alguns passos de diferença. Mesmo o emissário querendo seguir saltando pelas árvores como um macaco, o fato de ter uma mulher na sua companhia o fazia instintivamente seguir pelo solo, mesmo que fosse mais devagar.

    “Ela provavelmente sabe se defender melhor que eu! Por que diabos ainda faço isso?”

    — Algo estranho acontecer — respondeu a bruxa.

    O emissário ergueu uma sobrancelha.

    — Esse lugar inteiro é um poço de bizarrice, que tal ser um pouco mais específica?

    Ela o encarou com seus olhos negros enquanto seus lábios se contraíam para formar um singelo biquinho.

    — Não seja tão impaciente. Você saberá quando encontrar. Heferus não é tão modesto quanto gosta de fingir que é.

    Com uma resposta nada satisfatória, Huan Shen balançou sua cabeça em negação e seguiu em frente, olhando para qualquer coisa que chamasse sua atenção. Sua mente estava inquieta, pensando em todas as possibilidades do que poderia acontecer quando se encontrasse com o druida. Como ele lidaria com todo aquele exército? O quão forte ele seria em comparação com Hinoka? Ele conseguiria salvar todo mundo?

    Com sua mente no plano dos questionamentos, um som distante capturou sua audição. Era como se algo estivesse se rompendo enquanto se expandia, em um constante crescimento orgânico.

    — Acho que captei alguma coisa.

    Seus pés cravaram no solo momentaneamente, canalizando a energia em seu corpo e gerando um poderoso impulso, que o arremessou para frente em uma velocidade arrebatadora, movimentando as folhas secas no chão e deixando a bruxa para trás. Pela primeira vez, sentia que estava completamente sincronizado com a sua nova realidade como um morto-vivo.

    Seus pés alcançavam os galhos mais altos das árvores e pousavam com a suavidade de uma pena, permitindo uma sensação de liberdade única. Por alguns segundos, esqueceu completamente do fardo que era estar naquela forma.

    Quando atingiu a copa da maior árvore que viu, se deparou com um panorama que nunca tinha imaginado visitar. Sob a luz branca da lua crescente, um mar verde e vermelho se estendia em todas as direções que seus olhos alcançaram, mostrando toda a força e mistério que aquele lugar guardava em si. No meio de tudo aquilo, algo se destacava.

    “Que porra é essa?”

    No meio de tanto verde, uma árvore se sobressaía entre todas. Huan Shen estava a cerca de vinte metros do solo, mas se sentia pequeno em frente a tamanha exibição de poder da natureza. Seu tronco enorme, seus galhos frondosos e retorcidos, com uma folhagem tão plena que quando o vento carregava suas folhas, parecia uma garoa a distância.

    Como se isso não fosse o bastante, os galhos na parte superior da árvore começaram a se retorcerem ativamente, como se algo as controlasse. Suas extremidades tocavam no corpo do tronco, como se estivessem rompendo seu próprio interior para expulsar algo dentro dele.

    — Será que eu achei o que estava procurando? — indagou o emissário, bastante perturbado.

    — Então é aqui que você estava — respondeu uma voz sussurrada diretamente em seu ouvido.

    Imediatamente, Huan Shen olhou para trás, mas não encontrou nada. O vapor em suas mãos começou a condensar, prestes a formar alguma arma.

    — Aqui em baixo, garoto — disse a voz misteriosamente familiar.

    Inclinando sua cabeça, ele se deparou com uma cena bastante incomum. Nos mesmos galhos que seus pés se apoiavam, garras afiadas residiam cravadas ali, proveniente dos dedos dos pés de outra pessoa. A bruxa residia de ponta-cabeça, como um morcego numa caverna.

    “Como ela consegue manter a túnica sem cair e revelar tudo que tá por baixo?”

    — Como chegou aqui tão rápido? — perguntou ele.

    Kalira esboçou um sorriso. Isso estava ficando estranhamente comum.

    — Eu sou uma bruxa das sombras. Se eu não conseguisse detectar a sua, seria muito ruim em meu trabalho.

    Huan Shen se agachou e se pendurou com apenas seu braço esquerdo no tronco que estava apoiado, apenas para ficar no mesmo nível que a bruxa.

    — É confortável estar de ponta cabeça?

    Seus olhos negros pareceram indagar sobre alguma coisa. Considerando o seu tamanho consideravelmente menor que a estatura do emissário, a proximidade dos seus corpos e onde a posição da sua cabeça estava rente, sua mente começou a maquinar.

    — Já estou acostumada com isso. Porém, com você desse jeito, acho que estou começando a ter algumas ideias.

    “Olha pra essa mulher!”

    — Mantenha suas ideias para si! Você sabe alguma coisa que possa nos ajudar? Que árvore é aquela?

    — Aquela é uma Colonizadora. Uma variação rara do Salgueiro Sanguinário, que tem a capacidade de influenciar no crescimento de todas as árvores da região. Normalmente ela apenas segue seu curso natural de vida e morte, como todas as árvores. Porém, caso esteja sob o domínio de alguém, essa pessoa é capaz de dominar todo o ciclo da vida de uma região, graças ao fato do Salgueiro Sanguinário ser um apex predador.

    “Isso é informação demais para mim.”

    — Então Heferus basicamente controla todo o ciclo da vida nessa selva?

    — Embora poderoso, ele ainda é apenas um druida. Como acha que ele conseguiu um exército de cadáveres para seus experimentos? Ou como ele conseguiu afastar ou eliminar qualquer tipo de predador natural daqui que possa atrapalhar seus planos? Tenho que admitir que ele jogou certinho dessa vez.

    Aquilo fez Huan Shen pensar profundamente. Desde o momento em que viu as marcações druídicas nas árvores, o fato da selva estar muito mais calma do que tinha escutado falarem sobre e a sensação constante de estar sendo observado, tudo era um indicativo de que algo muito pior estava para acontecer.

    — Está na hora de colocar um fim nisso.

    Seu braço soltou da árvore, deixando a gravidade levá-lo até o chão. A bruxa o acompanhou, planando suavemente até seus dedos enegrecidos atingirem o solo.

    — Há uma grande chance dele estar lá, assim como todo o seu exército de sulfurizados. Mas não se preocupe, eu tenho um plano — disse Kalira.

    “Agora que você vem com a porra de um plano?”

    O emissário olhou atentamente a direção em que planejava ir. Era como se a Selva de Concreto estivesse abrindo o caminho para a sua jornada através da escuridão, incerteza e um perigo que não tinha condições de vencer.

    — Seja lá o que você preparou, bruxa, eu espero que seja o bastante para conseguirmos vencer. Sei que vai ser difícil, quase impossível e talvez eu não consiga matar Heferus, mas não posso recuar agora. Eu me forcei através da morte para estar vivo mais uma vez, para finalmente deixar o que me prendia no passado para trás e tendo a chance nesse momento de conseguir de volta, não vou deixar passar. O medo não é o meu destino. Então é bom que você-

    Nada. Não havia ninguém ali além da sua pessoa e a enorme Selva de Concreto. Huan Shen não escutou e nem percebeu nada, nem mesmo a menor alteração no vento. A bruxa simplesmente o deixou ali falando sozinho. Ele inclinou a cabeça para os lados, como se tivesse alguma esperança de vê-la se escondendo atrás das árvores, mas ela apenas desapareceu.

    — Maldito dia que eu resolvi falar sobre meus sentimentos para uma mulher — murmurou o emissário, completamente frustrado.

    Sem nada além do seu objetivo, Huan Shen respirou fundo e adentrou nas profundezas da escuridão na Selva de Concreto, prestes a fazer o que já estava acostumado: chegar com os dois pés na porta.

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