Índice de Capítulo

     O cheiro metálico de sangue impregnava o ar. Era espesso, pesado, tão forte que parecia grudar na pele e se infiltrar na garganta. Meus olhos demoraram alguns segundos para se ajustar à escuridão opressora da sala, mas quando consegui enxergar com mais clareza, desejei não ter visto nada.

     Manchas escuras cobriam o chão e as paredes como pinturas macabras, desenhando um cenário de puro horror. Ossos humanos espalhados pelos cantos, alguns inteiros, outros quebrados como se algo tivesse mastigado até alcançar a medula. Pequenos pedaços de carne, ainda úmidos, se misturavam ao piso irregular. O ar ali dentro estava morto, saturado pelo cheiro da putrefação e da desesperança. Eu não sabia o que esperava encontrar do outro lado daquela porta, mas certamente não era aquilo.

     Então, meu olhar se fixou em uma figura acorrentada à parede. O cabelo caía desgrenhado sobre o rosto pálido, os braços estavam cobertos de hematomas, e as correntes de metal estavam apertadas ao redor dos pulsos, mordendo sua pele. Ela não se movia, mas sua respiração era perceptível: leve, fraca, mas presente. O garoto ao meu lado prendeu a respiração.

    E então, do outro lado da sala, algo respirou fundo.

    Minha espinha congelou. Meu corpo travou. Como se o próprio ar tivesse se tornado sólido dentro dos meus pulmões.

    Havia uma criatura ali…

     Deitada, ocupando uma parte significativa do espaço, seu corpo gordo subia e descia em um ritmo pesado e irregular. A pele laranja, grossa como couro, era coberta de manchas de sangue seco, principalmente ao redor da boca, dos braços e dos pés. Pequenos chifres tortos despontavam de sua testa, enquanto asas minúsculas, atrofiadas, repousavam inertes contra suas costas largas. O ronco baixo e profundo reverberava pelo cômodo como um aviso silencioso do perigo que se escondia ali.

    O garoto ao meu lado tremeu. Sua respiração ficou irregular, e percebi que ele queria correr, mas seus pés estavam cravados no chão. Eu não podia culpá-lo. Eu sentia o mesmo. Só que então, ele desviou o olhar da criatura e voltou-se para a mulher acorrentada. Sua mãe.

    Eu soube o que ele faria antes mesmo que ele se movesse.

     Ele deu um passo hesitante para frente. Depois outro. A madeira sob seus pés rangeu, e eu quis gritar, quis agarrá-lo pelo braço e impedir, mas era tarde demais. Ele se movia devagar, muito devagar, como se o próprio ar tivesse se tornado viscoso ao seu redor, prendendo-o em sua hesitação.

     Aquela visão me atingiu como uma lâmina fria. A hesitação, a impotência, a paralisia que me acompanhava desde sempre. Eu já estive naquele lugar antes… presa em minha própria hesitação, incapaz de decidir, impotente diante do que precisava ser feito. Mas eu não podia continuar assim. Não quando aquela mulher precisava ser salva. Não quando aquele garoto estava arriscando a própria vida.

    Se eu não agisse agora, então quando?

     Respirei fundo, varrendo o pavor para longe da mente. Fiquei ao lado do garoto observando aquela cena, varrendo com os olhos aquela mulher presa a parede notei algo importante se quiséssemos resgatar sua mãe e sussurrei o mais baixo que consegui:

    — Precisamos de uma chave para soltá-la. Não podemos simplesmente puxar as correntes.

     Ele hesitou, mas assentiu. Seu olhar dizia tudo: ele não queria perder tempo, mas sabia que era a única opção. Precisávamos encontrar aquela chave. E fazer isso sem acordar a coisa que dormia diante de nós.

                                            ***

     Eu não podia me dar ao luxo de hesitar. O gelo rastejava ao meu redor, cada movimento do inimigo parecia minuciosamente calculado para me forçar à defensiva, mas não era isso que aconteceria. Com um único pensamento, canalizei minha energia na lâmina, fazendo-a vibrar em um brilho carmesim intenso. O calor se espalhou no ar ao meu redor, ondulando a atmosfera e derretendo pequenos flocos de neve que haviam começado a se formar pelo campo de batalha. O inimigo percebeu minha intenção e firmou sua posição, esperando meu avanço.

    E eu avancei.

     Em um instante, disparei para frente, minha velocidade aumentando com cada passo até que o mundo ao meu redor se tornou apenas borrões quentes e frios. Minha lâmina cortou o ar com um brilho ardente, um golpe ascendente que, como esperado, encontrou uma muralha de gelo erguida no último instante. Chamas e cristais colidiram em um chiado violento, faíscas e vapor se espalhando em todas as direções. Mas eu já contava com isso. Uma faísca de diversão brilhou dentro de mim. Ele era forte, sim, mas eu estava apenas começando…

    — INFERNO CARMESIM!

     Do solo abaixo dele, uma explosão de fogo rugiu para cima, um pilar de chamas que engoliu sua silhueta. O calor era intenso, as labaredas se retorciam como serpentes famintas, tentando consumir tudo em seu caminho. Mas no último momento, uma barreira de gelo emergiu ao redor dele, rachando sob a pressão do fogo, resistindo apenas o suficiente para impedir que fosse carbonizado de imediato. Mesmo assim, o impacto foi forte o bastante para lançá-lo para o alto.

    Eu sorri.

     Sem perder tempo, deixei que minha energia se expandisse em minhas costas. Asas de fogo se formaram, tremeluzindo com tons de vermelho e dourado. O calor gerado por elas evaporava a umidade ao redor, deixando o ar seco e carregado. Disparei para cima, alcançando meu oponente antes que ele pudesse recuperar o controle da queda. Não dei tempo para que reagisse. Com um giro rápido, chutei seu peito com força total, enviando-o em um arco selvagem para longe do vilarejo. A onda de calor da minha investida deixou um rastro no céu noturno, e o impacto fez o chão tremer quando ele caiu em um campo mais aberto, afastado das construções.

     Flutuei no ar por um instante, observando o local da queda antes de pousar com firmeza. A terra ali estava coberta por uma fina camada de neve, que já começava a derreter sob o calor que emanava de mim. Meu adversário se ergueu lentamente, sacudindo os destroços ao redor. Seu corpo havia sido parcialmente queimado, revelando que ele não conseguiu mitigar todo o dano. Seu olhar, brilhando em um tom etéreo, se cravou em mim com uma mistura de irritação e algo que parecia… diversão?

    —Hah… nada mal — ele murmurou, girando uma nova lâmina de gelo em sua mão. — Mas isso foi tudo? Porque se for, vou me decepcionar.

    Soltei uma risada curta e dei um passo à frente, deixando minha lâmina girar lentamente na mão. O calor em minha volta se intensificou, oscilando com minha respiração.

    —Você ainda não entendeu, não é? — Meus olhos se estreitaram, minha postura se tornando mais firme. — Agora que estamos longe do vilarejo, não preciso mais me segurar.

     Ele ergueu uma sobrancelha e sorriu de lado, a lâmina em sua mão pulsando com uma névoa gelada.

    — Então, me mostre.

                                            ***

     A poeira ainda pairava no ar: resquícios do impacto dos ataques da luta que ocorria do lado de fora. Mas eu não tinha tempo para me preocupar com isso. Meu coração martelava enquanto minhas mãos deslizavam pelas gavetas e prateleiras, revirando cada canto do cômodo à procura da chave. O garoto ao meu lado fazia o mesmo, os olhos arregalados, mas determinados. O tempo não estava a nosso favor.

     Depois de vasculharmos os corredores escuros da casa, encontramos uma porta ligeiramente diferente das outras.

    — Deve ser o quarto do sequestrador — sussurrei.

     Meu estômago revirou ao entrar. O lugar era um caos de papéis amassados, velas derretidas e livros empilhados de forma desordenada. Mas um objeto me chamou atenção em meio à bagunça: um diário, sua capa desgastada e suas páginas manchadas.

     Com dedos trêmulos, o abri e comecei a ler. As primeiras anotações eram quase metódicas. O sequestrador descobriu que estava sofrendo com a Corrupção de Cores. No dia seguinte, descrevia o desespero ao imaginar-se transformado em pedra. Algumas páginas estavam faltando, rasgadas apressadamente. No próximo trecho, ele dizia ter encontrado antigos pergaminhos de um cientista preso que alegava possuir uma cura para a Corrupção. Em outra entrada, relatava ter achado o lugar perfeito para executar seu plano.

     Meus olhos correram pelas páginas conforme as palavras se tornavam mais caóticas. O pergaminho dizia que, para se curar, o corrompido deveria invocar um demônio da gula e satisfazer seu paladar, garantindo assim o desejo de consumir a Corrupção. Mas o tempo não estava a seu favor. Em desespero, ele congelou o próprio sangue dentro de suas veias para retardar os efeitos da doença. Um método brutal e insano…, mas que aparentemente funcionou.

     Na última página legível, ele descrevia sua frustração: havia trazido incontáveis vítimas, mas o demônio nunca se satisfazia. Até que, finalmente, o monstro sentiu a presença de alguém que o preencheria completamente. Aquele era o sacrifício perfeito.

    Fechei o diário com força, meu peito subindo e descendo de forma irregular. Não havia dúvidas. Ele estava falando de Selene!

     O homúnculo da floresta, que também revirava os pertences do sequestrador, ergueu um conjunto de chaves.

    — Humana achar que é essas?

     Engoli em seco e assenti, agarrando-as rapidamente. Não havia tempo a perder, precisávamos testar as chaves. Saímos silenciosamente do quarto e voltamos para onde a mulher estava presa. Suas correntes estavam frias ao toque, os grilhões enferrujados se recusando a ceder sem esforço. Meus dedos tremiam enquanto tentava destrancá-los, meu coração batendo mais forte a cada segundo que passava.

    Foi então que ouvi. Um rugido infernal do lado de fora.

    — INFERNO CARMESIM!

     A voz de Selene ecoou pelo vilarejo, seguida de uma onda de calor que fez algumas janelas ao redor explodirem. A luz do ataque invadiu a sala, projetando sombras dançantes nas paredes manchadas de sangue. O demônio da gula, que até então dormia, se moveu. Seus olhos se abriram lentamente, refletindo a chama ardente da destruição lá fora.

    —Merda… murmurei, tentando achar a chave para abrir o último cadeado com dedos apressados.

     O monstro se moveu, um ronco profundo reverberando pelo cômodo… o tempo estava acabando. Meus dedos tremiam enquanto tentava encaixar a chave na fechadura. O som metálico do ferro arranhando contra o cadeado ecoava alto demais para o meu gosto, mas o pior era a sensação crescente de urgência. O brilho escarlate que atravessava as janelas tremulava como se o próprio mundo estivesse queimando. O rugido do Inferno Carmesim de Selene ainda ecoava na minha mente, mas meu foco estava ali, na corrente que prendia a mulher diante de mim.

    O garoto segurava a mão da mãe, murmurando palavras que eu não conseguia entender. Ele queria que ela falasse com ele, que abrisse os olhos. Mas ela estava fraca demais.

    Foi então que senti.

     Um estremecimento no ar, um calafrio na espinha que me fez prender a respiração. O cheiro de sangue e carne que já saturava o ambiente ficou mais intenso, mais quente. Um estalo úmido veio da outra extremidade da sala, seguido pelo som de algo roçando contra a madeira, como garras afiadas se arrastando pelo chão.

    Engoli em seco e olhei por cima do ombro.

     O corpo do demônio se mexia, os músculos grotescos se espreguiçando conforme ele erguia a cabeça. Seus olhos, antes ocultos sob as pálpebras pesadas, agora brilhavam em um tom dourado e faminto. Ele estalou a língua contra o céu da boca, um som pegajoso e nojento que fez meu estômago revirar.

    A corrente se soltou da fechadura com um clique alto demais.

    E o demônio da gula abriu um sorriso.

    — Que aroma sedutor…

    Fim do Capítulo 12 – A Dança dos Predadores: Fogo. (1/2)

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