Índice de Capítulo

     O ar dentro da sala parecia denso, pesado como se a própria escuridão pressionasse meus pulmões. O som da passagem se fechando diante de nós ecoou em meus ouvidos como um aviso cruel. Estávamos presos.

     O Demônio da Gula se moveu lentamente, sua silhueta grotesca e alaranjada se projetando contra a luz fraca que vinha de fora. Ele não parecia com pressa. Pelo contrário: saboreava o momento, como se já sentisse o gosto do que estava por vir. Seus olhos famintos se fixaram no garoto ao meu lado, e um sorriso se alargou em seu rosto deformado.

    — Que maravilha… — sua voz carregava uma satisfação repugnante. — Desta vez, meu jantar veio com um aperitivo.

     Meu estômago se revirou. O garoto ao meu lado enrijeceu, seus olhos arregalados e cheios de pavor. O demônio deu um passo à frente. Depois outro. Cada movimento era um golpe contra meu próprio desespero crescente. Eu precisava fazer algo. Qualquer coisa.

     Meus olhos correram pela sala, buscando algo… qualquer objeto que pudesse ser usado como distração. E então vi. As algemas de metal.

     Sem pensar duas vezes, as agarrei e, com toda força que consegui reunir, arremessei-as contra a cabeça do monstro. O impacto fez um som metálico seco, e a criatura parou por um instante, piscando. Depois, virou-se para mim, como um adulto impaciente lidando com uma criança irritante.

    — Não se precipite. — Ele lambeu os lábios, como se saboreasse a espera. — Ainda não é sua vez.

     Meu coração batia descompassado. Minha pele formigava de medo. O que eu poderia fazer contra algo assim? Era como tentar parar uma tempestade com as mãos nuas. Eu estava tentando ser corajosa, tentando agir, mas a verdade era clara: eu não tinha poder suficiente. Não contra aquilo.

     Um soluço escapou do garoto. Em choque, ele tentou correr para longe, mas antes que pudesse dar um passo, garras grotescas o agarraram pelo braço. O grito que rasgou sua garganta me fez estremecer.

    O demônio o ergueu no ar com facilidade, girando-o levemente como se estivesse avaliando um pedaço de carne.

    — Hmmm… — Ele franziu a testa, insatisfeito. — Tão magro… Nem mesmo para uma entrada.

    O pavor me paralisou por um instante, mas então um outro som cortou o ambiente. Um gemido de dor.

     A mulher começou a se mover, seus olhos arregalados encontrando a cena diante de si. Seu filho, pendurado nos braços da criatura. Sua expressão se torceu em puro desespero.

    — Solte ele! — Sua voz saiu rouca, carregada de medo e fúria.

     A água começou a se formar ao seu redor, primeiro em pequenas gotas, depois em correntes fluidas que dançavam ao seu comando. Seu olhar varreu o chão, desesperado por algo que pudesse usar, até que seus dedos se fecharam ao redor de um osso caído. Sem hesitar, ela o ergueu, e a água se moldou ao redor dele num fluxo cortante e veloz.

    Com um grito, ela avançou e cravou a arma improvisada contra o demônio.

     O golpe acertou em cheio, a lâmina líquida penetrando sua carne pútrida. Mas em vez de um grito de dor, ele apenas franziu o cenho, sua diversão evaporando em um instante.

    — Que coisa irritante… seus ataques são enfadonhos humana — murmurou, seus olhos faiscando com um ódio recém-despertado.

     Antes que a mulher pudesse reagir, ele disparou contra ela, rápido demais para que eu ou ela pudéssemos fazer algo. Com uma mão, ainda segurava o garoto. Com a outra, golpeou o peito da mulher com suas garras afiadas.

     O som do corte foi seguido por um grito estrangulado.  Sangue quente espirrou no meu rosto. Meus pulmões se recusaram a puxar o ar. O corpo da mulher caiu pesadamente no chão, a luz de seus olhos tremulando como uma vela ao vento.

    O demônio soltou uma risada baixa e satisfeita.

    — Quem sabe assim a comida pare de resistir — murmurou, voltando seus olhos famintos para nós.

     Eu não conseguia respirar. Não conseguia pensar. Tudo dentro de mim gritava, mas minha voz não saía. O sangue escorrendo pelo meu rosto. O cheiro ferroso no ar. O olhar do garoto, fixo na mãe caída.

    O monstro lambeu os lábios novamente.

    — Entrem na minha boca, sim? — um sorriso bizarro estampou o rosto do monstro.

     O riso grotesco do monstro ecoava ao meu redor, cada nota carregada de prazer doentio. O cheiro denso de sangue úmido sufocava meus pulmões. A luz fraca que entrava, lançando sombras disformes pelas paredes, enquanto o garoto ainda pendia nos braços da criatura, pequeno demais, frágil demais.

    Eu queria me mover… Queria gritar, lutar, fazer algo. Mas meu corpo, não respondia.

     Meu coração batia descompassado contra o peito, cada batida mais forte que a anterior, reverberando como um tambor de guerra preso dentro de mim. Minhas pernas estavam presas ao chão, os dedos trêmulos se fechavam em punhos vazios. O medo era uma corrente invisível, me puxando para as profundezas de minha própria impotência.

    Eu fechei os olhos, apertando-os com força.

    Era assim que tudo terminaria?

     Depois de tanto tempo sonhando com uma chance de escapar, com uma oportunidade para ver o mundo além dos muros que me aprisionavam, eu morreria aqui?

    Não era justo. Eu queria mais…

     Eu queria caminhar por terras desconhecidas, onde o céu se estendia além do que minha vista alcançava. Queria sentir o calor do sol em minha pele em um campo aberto, onde ninguém me diria que eu não pertencia. Queria ouvir a melodia das criaturas mágicas à beira de um rio cristalino, ver cidades brilhando sob o luar, explorar ruínas esquecidas, desvendar segredos antigos. Eu queria entender as cores que moldavam esse mundo, os poderes que regiam cada canto dele… e, acima de tudo, queria descobrir as minhas próprias cores.

    Porque, até agora, eu nunca soube o que realmente era…

     Sempre fui a garota sem brilho, sem importância, sem poder. Apenas um reflexo pálido de uma existência sem propósito. Mas, no fundo, uma dúvida me perseguiu. Será que eu estava errada? Será que havia algo dentro de mim que sempre esteve esperando… algo que eu ainda precisava descobrir?

     Minha mente se tornou um turbilhão de pensamentos. De repente, um som leve, quase um sussurro, se espalhou pelo ar. Não vinha do monstro. Não vinha da sala. Era um fluxo silencioso, uma melodia líquida que se entrelaçava ao meu redor. O calor pegajoso do sangue em minha pele se dissipou, sendo substituído por algo novo. Algo puro.

    Minha respiração se estabilizou. Pela primeira vez desde que tudo começou, minha mente se acalmou.

    Abri os olhos… Um reflexo azul brilhou na escuridão.

     Mechas do meu cabelo, antes desbotadas, foram inundadas pelo azul que se espalhava da raiz às pontas, se expandindo como tinta em água. Meu corpo formigava com uma energia desconhecida, fluida e implacável. Olhei para minhas mãos. Gotas de água flutuavam ao meu redor, se moldando, como se aguardassem minhas ordens.

     Foi nesse momento que eu soube. Sobreviver não era apenas um desejo passageiro e conveniente. Não era só uma ideia bonita presa em minha mente.

     Se eu queria sobreviver, se eu queria descobrir o que me esperava além dessas paredes… se eu queria, de fato, viver. Eu precisaria dominar esse poder. Eu precisaria ser mais forte, para que nem eu, nem as pessoas ao meu redor sofram.

     O monstro me observava, seu sorriso bizarro ainda estampado no rosto, mas algo em seus olhos se estreitou ao notar a mudança em mim. Eu também sentia. O medo que me paralisava antes não estava mais lá. O caos dentro de mim se reorganizou em uma clareza afiada, como uma lâmina. Meu coração ainda batia rápido, mas não era mais desespero: era adrenalina.

    O demônio apertou mais forte o garoto em sua mão deformada, um rosnado baixo saindo de sua garganta.

    — Então a garotinha resolveu reagir? Interessante…, mas isso só vai me deixar com mais fome.

     Ele ergueu a outra mão, as garras reluzindo sob a luz fraca. Minha mente trabalhou rápido. Eu precisava sair da defensiva. Precisava agir antes que ele tivesse chance de me atacar.

     Minhas mãos se fecharam ao redor da adaga. A água ao meu redor respondeu instantaneamente, envolvendo a lâmina como uma serpente reluzente. Um frio percorreu meu braço, mas não era desconfortável. A energia pulsando sob minha pele, serena, mas implacável.

    Eu me movi.

     O chão rangeu sob meus pés quando disparei para frente, a adaga revestida de azul cortando o ar. O monstro tentou desviar, mas sua forma volumosa o tornou lento. Minha lâmina traçou um arco e se cravou em seu braço. Com um grito, canalizei toda a água ao redor da lâmina e forcei-a para dentro. Um rugido de dor reverberou pelas paredes da casa quando ele largou o garoto no chão com um baque.

    — Seu monstro nojento! — A voz da mulher ecoou no ambiente. Ainda ferida, ela rastejou até o filho, puxando-o para si, seus olhos brilhando com alívio e horror.

    Mas eu não podia parar. A criatura se virou para mim, sua boca se abrindo em um ângulo impossível.

    — Você… vai se arrepender!

    Um brilho laranja se acendeu em sua garganta.

     Minha mente reagiu antes do meu corpo. Eu forcei a energia azul para minhas botas, deixando que a água as envolvesse. O chão abaixo de mim estalou quando eu saltei para o lado com uma velocidade inesperada, escapando no exato momento em que uma rajada explosiva saiu da boca do monstro.

     A bola de fogo atingiu a parede atrás de mim, explodindo com força suficiente para rachar as tábuas e espalhar brasas pelo cômodo.

     Minha respiração era controlada, mas minha mente fervilhava com planos. Eu não era forte o bastante para acabar com ele de uma vez, então eu precisava cortar, enfraquecer, encontrar um ponto vulnerável.

     Meus olhos percorreram a sala, buscando algo útil. A mobília estava em pedaços, o chão coberto de destroços e sangue. Meu olhar pousou em uma cadeira quebrada no canto, suas pernas ainda afiadas.

     Um plano se formou em minha mente. Corri até a cadeira e chutei um dos pedaços soltos, envolvendo-o em um fluxo denso de água. O monstro riu ao ver minha escolha.

    — Ah, você quer brincar com pauzinhos agora?

    Eu não respondi. Apenas ataquei.

     Dessa vez, fui para o lado, usando minha velocidade aumentada para flanquear sua lateral. Ele tentou me acertar com um golpe desajeitado, mas a lentidão de seu corpo o traiu. Passei por baixo de seu braço e cravei o pedaço de madeira na lateral de sua barriga, a água girando como lâminas ao redor da estaca improvisada.

    Ele rugiu.

     O impacto foi maior do que eu esperava. Meu ataque abriu um corte profundo, e um líquido negro viscoso escorreu de sua pele rasgada.

     Ele se virou para me esmagar com um golpe de suas garras, mas eu já estava longe, deslizando para trás com a ajuda da água em minhas botas.

    — AAAAAHHH! VOCÊ VAI PAGAR POR ISSO!

    Ele inspirou fundo, e a mesma luz laranja brilhou novamente em sua garganta. Mas dessa vez, eu não esperaria.

    Saltei direto para ele.

     Minha adaga brilhou com a luz azul intensa. No momento exato em que sua boca se abriu para lançar mais uma explosão, eu deslizei por baixo de seu braço e cravei minha lâmina em sua mandíbula.

     A explosão se interrompeu. Os olhos da criatura se arregalaram, seu corpo inteiro tremendo. Eu não dei espaço para reação. O líquido pressionou sua garganta, impedindo sua explosão de ser lançada.

    O monstro se engasgou, seus olhos selvagens se voltando para mim.

    Eu retribuí o olhar.

    — Engole isso. — Girei a adaga.

     Um som úmido e grotesco ecoou quando a água que eu controlava penetrou ainda mais fundo, rompendo o que estivesse em seu caminho. O corpo da criatura estremeceu violentamente. Então, um líquido começou a vazar pelos olhos, nariz e boca do monstro…, mas não era sangue: era água.

     Ele tentou gritar, mas o som saiu sufocado, como se estivesse se afogando por dentro. Seus membros se debatiam em espasmos irregulares, e seus olhos se reviraram, o brilho de sua fome insaciável finalmente se apagando.

    — Mal… di… ta.

    Seu corpo tombou para frente com um baque pesado. Tudo ficou em silêncio.

     Meu peito subia e descia de forma irregular enquanto eu observava a criatura caída diante de mim. O cheiro metálico de sangue ainda impregnava o ar, misturando-se ao pó e ao suor que colavam à minha pele.

     O silêncio parecia se arrastar, denso como neblina, sufocante. Minhas mãos ainda tremiam, mas eu não sabia dizer se era pelo cansaço ou pelo que acabou de acontecer. O monstro estava morto. Tinha que estar.

     Virei-me, e meu olhar encontrou o da mãe e do garoto encolhidos no canto da sala. O menino soluçava alto, a respiração engasgada em meio ao choro descontrolado, os pequenos braços agarrando-se à mãe como se ele mesmo fosse se desfazer a qualquer momento. A mulher tentava contê-lo, murmurando palavras trêmulas, mas suas próprias lágrimas escorriam na mesma medida.

     Abaixei os ombros, sentindo um peso imenso se dissolver aos poucos dentro de mim.

    — Agora vai ficar tudo bem. — Minhas palavras soaram mais suaves do que eu esperava, como se fossem frágeis demais para suportar a gravidade da situação. — Precisamos sair daqui.

     Soltei um suspiro pesado, o corpo começando a ceder à exaustão. Talvez… apenas talvez… o pior já tivesse passado. Então eu vi.

     O rosto da mulher empalideceu subitamente, seus olhos se arregalando em um terror mudo. Seus lábios se entreabriram, mas nenhum som escapou. Ela não precisava dizer nada. Meu corpo soube antes de mim.

     Um arrepio gélido percorreu minha espinha, e um instinto primitivo gritou dentro de mim antes mesmo que eu pudesse reagir. Virei-me num impulso, o coração subindo à garganta.

     A criatura estava de pé. Seus ferimentos haviam desaparecido, a pele grotesca se regenerando como se eu nunca tivesse feito nada. Seus olhos brilhavam com uma fome enlouquecida, e o bafo quente de sua respiração pútrida condensava no ar frio da noite. Seu peito inflava, e dentro de sua boca escancarada, a mesma energia laranja fervilhava como um prenúncio de destruição.

     O tempo pareceu desacelerar. Não havia espaço para um plano, para qualquer estratégia. Eu nem sequer podia me defender por completo.

     Minha energia reagiu antes mesmo que minha mente compreendesse. O brilho azul serpenteou por minhas roupas, envolvendo o tecido como uma camada fluida no exato instante em que a explosão foi disparada.

     O impacto foi arrasador. O mundo ao meu redor se distorceu num clarão alaranjado, e então fui lançada para trás com uma força esmagadora. O vidro da janela se despedaçou ao meu redor, estilhaços cortando minha pele enquanto meu corpo atravessava o vazio, projetado para fora da casa como um mero farrapo ao vento.

    No breve instante que fui lançada pela janela, eu a vi.

    Selene.

     Ela estava ali, parada do lado de fora, e seu olhar encontrou o meu no meio do caos. Mas não era o olhar afiado e implacável de sempre. Não era o semblante indiferente que tantas vezes carregava.

     Seus olhos, tão intensos quanto uma fogueira em chamas, estavam arregalados em um terror absoluto. Sua boca entreaberta, o corpo tensionado como se tivesse presenciado um pesadelo do qual não podia despertar.

    O chão me acolheu com brutalidade, e a dor explodiu por todo o meu corpo, no segundo seguinte tudo ficou escuro, minha consciência se esvaia e a noite parecia não ter fim.

    Fim do Capítulo 14 – A Determinação de uma Desbotada.

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