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    No caminho para o cemitério, Irina permaneceu em silêncio. Sentada ao lado de Renato, ela olhava a estrada passar através dos vidros do furgão.

    Aquele silêncio era barulhento demais. Desconfortável. Mas ninguém ali ousou quebrá-lo.

    Todas sabiam que era um momento delicado e que Renato, apesar de demonstrar estar melhor, ainda sofria por dentro.

    Irina estava num tipo de negação interna. A sensação era de estar sonhando. Talvez estivesse num pesadelo terrível. Não do tipo com monstros sanguinários e bestas terríveis, mas do tipo que deixa um aperto no coração. Uma sensação ruim; algo como uma queimação no peito.

    Ela fechou os olhos. Os apertou. “Quero acordar agora!”

    Mas ainda estava lá. A situação não tinha mudado.

    Ela olhou para seu irmão adotivo buscando respostas. E olhá-lo doeu ainda mais. O rosto dele dizia que tudo aquilo era verdade. Ele também estava sofrendo.

    Irina engoliu o choro e tentou sorrir.

    — Renato… eu senti mesmo muita saudade. Saudades de você e de todo mundo. Da irmã Clarisse, da irmã… — Parou de falar no meio da frase. As palavras entalaram na garganta. — Fala que é mentira! Fala que nós não estamos mesmo indo para…

    — Irina… — Renato passou os braços em volta dela e a apertou contra seu peito.


    Finalmente chegaram.

    Havia muitas pessoas, tanto na frente do cemitério, quanto na entrada e, pelo que puderam ver, lá dentro também. Parecia algum evento grande, como um show nacional, mas ao invés de alegria, era outro sentimento que pairava no ar.

    Uma equipe de reportagem entrevistava um homem.

    Tinha até uma barraquinha de venda de cachorro quente.

    Todas essas pessoas, pensou Renato, eram apenas curiosos. Não se importam de verdade.

    Mas Irina segurou sua mão. Apertou forte e sorriu.

    — Toda essa gente…  eles vieram dar aos nossos irmãos uma despedida incrível. Isso me deixa feliz.

    Renato a olhou por um tempo sem saber como responder. Apenas sorriu de volta.

    — Sim. Você está certa.

    Lá dentro, a multidão era ainda maior.

    Um memorial tinha sido montado, onde as fotos de todas as crianças estavam expostas, junto de seus nomes e uma breve explicação.

    “Raí, 7 anos. Sonhava em ser astronauta ou um super-herói para proteger a irmã.”

    “Ana Alice, 6 anos, amava seu irmão mais do que tudo. Queria ser médica.”

    “Yuri, 15 anos. Apaixonado por jogos e animes. Adorava Yu-Gi-Oh, pokémon e League of Legends. Sonhava em ser jogador profissional de e-sports”

    Tantos sonhos roubados! Tirados à força violentamente e estraçalhados!

    Um amargor entalou na garganta de Renato. Ele tossiu, engasgado. 

    Foi tomado por uma sensação de desespero. Sua visão se anuviou, e a tontura quase o fez cair.

    Irina o segurou.

    — Eu sei. Também tô sentindo.

    A garota o abraçou.

    — Isso não devia acontecer, droga! Esse tipo de coisa! Isso é cruel demais! Essas crianças eram inocentes!

    — Eram sim! — Irina chorou. — Não mereciam isso! Eu queria…. Queria ter atendido aquela ligação! Por que eu não atendi? Eu queria poder ouvir a voz deles mais uma vez! Mas eu não pude! Por que eu não pude, Renato? Quando eu me tornei essa pessoa que sequer atende as ligações da família e só lamenta quanto perde?

    — Não tinha como saber…

    — Mas eu deveria…

    — Irina! Não é culpa sua!

    A menina desmoronou, e caiu com um dos joelhos no chão.

    — Então de quem é? Não acha que eu engoli essa história de vazamento de gás, acha? Me diz quem foi, Renato! Pensa que eu não percebi que você tá escondendo alguma coisa? Eu te conheço! Me diz quem foi o desgraçado… — A voz dela vacilou. Os punhos cerrados tremiam. — Eu vou… eu vou garantir que morra gritando!

    — Não precisa.

    — Preciso sim!

    — Não! Não precisa. Eu já resolvi.

    — Resolveu?

    — Sim.

    — Como? Resolveu como?

    — E como acha que foi? Acha que eu teria piedade do desgraçado que fez isso? Resolvi do jeito da nossa família.

    Irina abaixou o rosto.

    Assentiu. Sabia o que significava.

    Hiro o viu de longe.

    Se aproximou, mas não teve coragem de interromper os dois irmãos. Aquele momento deveria ser só deles.


    — E aí, como você está? — perguntou Renato, finalmente se aproximando de Hiro.

    — Melhor. Mas ainda dói um pouco. — Ele moveu o braço, mostrando a tala e o gesso que o envolvia, feito um canudo branco. Uma das pernas também estava engessada, e ele andava com o auxílio de uma muleta.

    Sobre o gesso do braço, tinha alguns nomes escritos à caneta.

    Mical puxou a manga da camiseta de Renato.

    — Eu acho que consigo curar ele — falou baixinho.

    Renato lhe presenteou com um sorriso terno.

    — Vamos tentar então.

    — Ela pode o quê? — Hiro se aproximou, andando de um jeito desengonçado, usando a muleta como apoio.

    — Nada, Hiro. Depois eu te explico.

    Nessa hora, Lírica, que estava meio afastada, franziu o cenho. Fez uma careta confusa; então se eriçou e mostrou os dentes como um gato encurralado.

    Jéssica e Mical se entreolharam, e ambas deram um passo para trás, pressentindo alguma coisa estranha no ar. Era como uma sombra que crescia sobre eles, quase engolindo-os.

    Até Clara percebeu aquela sensação de perigo contaminando a atmosfera. Ficou atenta, usando seus sentidos apurados para detectar qualquer anormalidade.

    Isso aconteceu instantes antes dele se aproximar. O bilionário Emannuel Messias, que estendeu a mão para Renato.

    — Meus pêsames, garoto. Você é um dos meninos que cresceu no orfanato, não é?

    Renato apertou sua mão.

    — Sou sim. E você é famoso.

    O bilionário riu.

    — A fama é o preço que a gente paga por fazer o bem. Sou apenas um filantropo.

    — Sei…

    Olhando nos olhos dele tão de perto, Renato finalmente entendeu a desconfiança de Clara. Tinha algo de estranho nesse cara. Quase imperceptível. Sutil e ao mesmo tempo tão gritante! Ele parecia perfeito demais. Dentes alinhados, sorriso bonito, olhar confiante. Uma voz agradável e eloquente. O tipo de pessoa que poderia falar às multidões e deixá-las emocionadas.

    Por um instante, Renato teve a sensação de que aquele homem não piscava. Seu sorriso, por mais perfeito que fosse, parecia… de plástico.

    O garoto apertou a mão do homem com firmeza.

    — É um prazer conhecê-lo.

    — Oh, o prazer é todo meu. O que aconteceu foi uma tragédia sem precedentes. Vou me pôr à disposição para ajudar com o que for necessário. Quero reabrir o orfanato! Manter vivo o legado que aquelas mulheres criaram. O que acha, Renato?

    — Parece algo bom. Isso pode ajudar ainda mais gente.

    — Poderíamos falar sobre isso mais tarde. O que acha? Eu tenho os recursos, mas só você conhece o orfanato no âmago. Preciso de você para conseguir manter a essência original dele. Preservar o legado das irmãs Clarisse e Dulce.

    — Certo.

    — Aqui, pegue meu número. Vamos nos ver em breve. Muito em breve.

    O garoto percebeu o segurança o encarando de longe. Era um homem de terno marrom, cuja cor lembrava terra, e era possível ver o volume de uma pistola na cintura dele, debaixo do paletó. Diferentemente do bilionário, o olhar dele não era tão amigável.

    — Claro — respondeu. — Agora, se me dá licença, eu tenho um velório para chorar.

    Ele segurou sua irmã, apoiando-a em seu abraço, e juntos foram até os caixões. A despedida final seria a mais dolorosa.

    Mais adiante, os caixões estavam dispostos um ao lado do outro.

    Renato e Irina passaram por cada um deles. Olhando as expressões, as linhas do rosto. Tocando as superfícies geladas das peles. Sentindo o cheiro do crisântemo, da margarida e dos vários tipos de flores.

    Compartilharam lembranças. Choraram. Até riram num momento, lembrando-se de uma das travessuras que fizeram e que deixou irmã Dulce e irmã Clarice de cabelos em pé.

    Parecia o fim cinza e triste de algo que, outrora, tinha sido colorido e belo.

    Era um fim injusto. Trágico. Traumático.

    Os dois ali eram os únicos que sabiam como aquele orfanato tinha sido incrível! Como aquelas duas irmãs católicas tornaram o lugar um lar de verdade.

    Todas as crianças eram feridas, traumatizadas por seus passados, assim como o próprio Renato. E mesmo ele pôde experimentar alguma felicidade debaixo daquele teto.

    Os brinquedos, o parquinho, o sabor do cachorro quente. Tudo tinha se perdido.

    O sabor doce do suco de caju que a irmã Clarisse fazia com tanto amor…

    As amarelinhas pintadas no chão com giz…

    Os rabiscos de giz de cera e lápis de cor nas paredes…

    Renato ficou indignado. Como podia ser possível? Mesmo lidando com tantos monstros, demônios e anjos, a criatura que mais lhe feriu, que mais tirou dele, tinha sido uma pessoa humana.

    Ele odiava Kath com todas as forças!

    Irina, chorando, o abraçou.

    — Preciso de você! Nunca suma! Nunca morra! Nunca me deixe!

    Renato acariciou sua cabeça.

    — Estarei sempre ao seu lado.

    Ao direcionar o olhar para o horizonte, ele viu a figura de Belfegor e Abigor, ao longe, olhando-o. Pareciam esperar alguma coisa.

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