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    O mundo ao meu redor parecia distante. O cheiro de sangue, a brisa cortante da noite, os destroços espalhados pelo chão… nada importava. Tudo o que eu via era Ashley, caída, Inerte.

    Meu coração martelava dentro do peito, um eco ensurdecedor que fazia o silêncio ao redor parecer ainda mais cruel. Eu queria ouvir sua voz, qualquer som, qualquer sinal de que ela ainda estava aqui. Mas tudo que recebi foi o vazio.

    Ajoelhei-me ao lado dela, os dedos trêmulos hesitando antes de tocá-la. Meu corpo sempre soube o que fazer em uma luta. Cada golpe, cada movimento, tudo vinha com precisão instintiva. Mas agora? Agora eu não sabia como mover as mãos sem o medo sufocante de que ela… não abrisse os olhos.

    — Ashley…? — Minha voz soou estranha, como se pertencesse a outra pessoa.

    Nenhuma resposta. Apenas o peso esmagador da incerteza.

     Engoli em seco. O calor da batalha ainda pulsava em minhas veias, mas era um calor frágil, inútil. Eu podia rasgar demônios, enfrentar qualquer maldito inimigo que cruzasse meu caminho, mas… e se dessa vez eu tivesse chegado tarde demais?

     O ar ainda pesava com o cheiro metálico de sangue e madeira queimada. Meus dedos estavam cerrados, os nós brancos, o corpo pronto para continuar lutando se fosse necessário…, mas naquele momento, tudo em mim estava focado nela.

    Ashley continuava imóvel, pálida sob a luz da lua. Minhas mãos pairavam sobre seus ombros, o peito apertado em uma angústia sufocante. Então, quando eu já começava a sentir o desespero crescer, algo mudou.

    Uma mecha azul.

    Minha respiração travou. Meus olhos desceram, absorvendo a cor fria que agora tingia os fios de seu cabelo. Azul? Isso… isso não era normal. Eu deveria ter notado antes, mas minha mente ainda estava um caos de adrenalina e medo.

    Antes que eu pudesse processar completamente o que aquilo significava, os dedos de Ashley se moveram. Um movimento sutil, quase imperceptível, mas o suficiente para fazer algo dentro de mim explodir em esperança.

    — Ashley!

    Me inclinei sobre ela, sacudindo seu ombro de leve. Aos poucos, sua respiração pareceu se tornar mais estável, e então, com um súbito arfar, ela abriu os olhos.

    Seu olhar estava perdido, piscando algumas vezes como se a realidade ao seu redor estivesse distorcida. Quando seus olhos encontraram os meus, o alívio foi instantâneo.

    — Ainda bem… — Minha voz saiu mais fraca do que eu gostaria. Eu podia sentir meu coração batendo na garganta. — Você está viva.

    Ela piscou de novo, como se precisasse de mais tempo para entender o que estava acontecendo.

    — Você… — Continuei, deixando escapar um riso nervoso. — Você coresceu.

    Ashley franziu a testa, confusa. Então, como se a última peça de um quebra-cabeça invisível tivesse se encaixado, sua expressão mudou. Seus olhos se arregalaram.

    — O demônio da gula — ela disse, o tom afiado, repentino. — Você não pode baixar a guarda!

     O arrepio percorreu minha espinha antes mesmo de eu me virar. Meu corpo reagiu por instinto, os sentidos afiados pela batalha. Olhei para trás no mesmo instante, e o mundo pareceu desacelerar ao redor de mim.

     A silhueta grotesca emergia das sombras, ossos estalando como galhos secos, carne retorcendo-se em uma dança macabra de regeneração. O pescoço que eu havia quebrado retornou ao seu lugar com um estalo arrepiante, os olhos inumanos brilhando em um ódio sem fim.

    O maldito ainda estava de pé.

    Havia algo de patético no jeito como ele se reerguia. Como se acreditasse que ainda tinha alguma chance. Meu sangue já fervia antes mesmo de eu terminar de me virar, mas agora era puro fogo.

    — Você realmente quer tentar de novo?

    Meus pés se moveram antes que ele pudesse reagir. Em um piscar de olhos, o espaço entre nós se reduziu a nada. O demônio arregalou os olhos, talvez percebendo tarde demais o erro que havia cometido ao continuar vivo.

    Eu o atingi com força suficiente para fazer o solo tremer.

    Meu punho afundou em seu rosto como uma lâmina atravessando carne podre, esmagando ossos e lançando-o para trás como uma boneca de trapos. O impacto o jogou contra os destroços da casa, madeira e pedras explodindo ao redor dele. Mas não importava o quão fundo ele fosse enterrado… eu não daria tempo para respirar.

    Antes que o pó assentasse, já estava sobre ele.

     Minhas mãos o agarraram pelo pescoço e o puxaram para cima apenas para jogá-lo de volta ao chão com uma força que rachou a terra. O desgraçado rugiu, as garras tentando encontrar meu corpo, mas eu apenas desviei, sem esforço. Sua desesperada tentativa de luta só tornava isso ainda mais ridículo.

    Ele tentou conjurar magia novamente, a mesma luz alaranjada crescendo em sua garganta.

     Minha perna subiu em um arco veloz e afundou contra sua mandíbula. O estalo veio como um trovão, e o brilho de magia morreu antes mesmo de nascer. Ele se contorceu, tentando escapar, mas eu já havia decidido que essa noite maldita terminava agora.

    Minha mão brilhou, calor escaldante se concentrando na ponta dos meus dedos.

    — Fique morto dessa vez demônio imundo.

     A energia explodiu. O chão se iluminou com o clarão do meu golpe, e o corpo do demônio foi consumido no impacto, rachaduras de luz se espalhando por sua pele antes que ele explodisse em um borrão de carne e chamas. O ar estalou ao redor, resquícios de sua existência dissipando-se como cinzas ao vento.

    Eu fiquei ali, imóvel por um instante, sentindo minha respiração pesada. A adrenalina ainda pulsava, mas algo estava errado.

    Ele demorou mais para cair dessa vez. Minhas sobrancelhas se franziram. Esse desgraçado… estava mais resistente?

    Minha expressão se fechou ao ver as sombras torcendo-se no chão… Os restos do demônio não se dissiparam.

     Eles rastejaram, se reunindo como sangue coagulando sobre uma ferida aberta. Primeiro vieram os ossos, estalando ao se encaixar. Depois, a carne se reformando como a sua própria essência. A criatura voltou à vida diante dos meus olhos, mas… diferente.

    Ele estava menor. Mais magro. Sua pele parecia mais tensionada, suas garras mais afiadas. Os olhos, no entanto, eram os mesmos: cheios de fome.

    Ele rugiu, a voz carregada de frustração e fúria.

    — Maldita… você me fez perder toda a gordura que acumulei!

    Ele estalou o maxilar e rosnou, arqueando o corpo para frente como um animal selvagem. Sua boca se abriu em um sorriso distorcido.

    — Estou faminto novamente.

    Antes que eu pudesse reagir, ele veio. Dessa vez, mais rápido.

    Meu corpo se moveu no último instante, desviando por centímetros de suas garras, que passaram cortando o ar como lâminas. Meus pés deslizaram pelo solo, e antes que ele pudesse atacar de novo, disparei um soco direto.

    Ele desviou… Meus olhos se arregalaram. Antes, ele nem ao menos tentava se esquivar. Agora, era diferente. Mais magro. Mais ágil. Mais difícil de matar.

    — Tsc… — Cerrei os dentes.

    Ele não era mais um alvo parado. Agora, eu teria que caçá-lo.

     Avancei contra ele, uma troca de golpes furiosa se iniciando. Meus punhos rasgavam o ar, cada impacto vibrando contra a criatura. Mas ele revidava, seus golpes eram mais coordenados, menos desesperados. O chão rachava sob nossos pés a cada colisão, faíscas de magia explodindo no ar.

    O combate durou mais do que deveria. Eu sentia. Cada segundo que passava, meu corpo reclamava mais.

    A exaustão se arrastava em mim como uma sombra. A noite inteira havia sido uma sequência de batalhas, correria, tensão. E agora, depois de tanto tempo sem descanso adequado, eu sentia o peso disso tudo.

    O demônio também percebeu. Ele rosnou algo ininteligível antes de desaparecer em um borrão.

    Não consegui acompanhar. Foi um instante. Um único vacilo.

    Tarde demais. O ar ao meu redor se deslocou. O corte vindo na minha direção.

    Mas antes que o golpe me atingisse…, senti algo gelado envolvendo meus pés.

    Meus pés foram puxados para trás, umidade envolvendo minhas botas, arrastando-me para longe do perigo. Rolei no chão, meu olhar indo direto para Ashley.

    Ela estava com uma das mãos estendidas, sua respiração ofegante, mas seus olhos brilhavam com determinação.

    Ela usou… magia? Minha mente ainda tentava processar, mas não havia tempo para isso agora.

    O demônio me encarava, rosnando. Sua fome ainda não havia sido saciada. Mas agora… agora ele teria que lidar com nós duas ao mesmo tempo.

     Meus pés deslizaram pelo solo quando aterrissei após a esquiva forçada. Meu coração batia contra o peito como um tambor de guerra. O Demônio não perdeu tempo. Ele se lançou contra mim outra vez, as garras cortando o ar em golpes frenéticos.

    Mas agora, eu não estava sozinha.

     Gotas de água dançaram no ar, interceptando as investidas da criatura. O Demônio rosnou quando uma lâmina líquida deslizou entre seus ataques, forçando-o a se mover de forma errática. O olhar dele se fixou em Ashley, a irritação crescendo em seus olhos famintos.

    — Tsc… já está me dando trabalho?

     Ele disparou contra ela, mas eu o interceptei. Minha espada cortou o espaço entre nós, aço envolto em chamas.  Ele saltou para trás, mas antes que pudesse se recuperar, girei a lâmina no ar. Uma linha carmesim riscou a noite, um arco flamejante sendo lançado em sua direção.

    O Demônio explodiu para o lado, escapando por pouco, mas não sem consequências. As chamas roçaram sua pele, queimando o tecido retorcido de seu corpo. Ele rosnou, mas não havia tempo para ele processar a dor.

    Ashley agiu.

     Os pedaços de vidro espalhados pelo chão se ergueram, envoltos pela água. Eles brilharam sob a luz da lua, afiados como navalhas. Ashley gesticulou, e os fragmentos foram lançados como uma tempestade cortante. O Demônio girou o corpo, desviando de alguns, mas os cacos restantes o atingiram, rasgando sua pele.

    Ele urrou, a raiva fervilhando.

    — Sua maldita…

    Ele abriu a boca. O brilho laranja começou a se formar no fundo de sua garganta. Mas eu não o daria tempo.

    — Inferno Carmesim!

     Minha lâmina brilhou em um tom escarlate, e num corte ascendente, uma coluna de fogo explodiu do chão, consumindo o monstro antes que ele pudesse cuspir seu ataque. O ar vibrou com a onda de calor, e o corpo do Demônio foi lançado para trás, a carne chamuscada.

    Ele caiu de joelhos, arfando, sua respiração pesada. Mas mesmo assim, mesmo com o corpo queimado, os olhos dele ainda brilhavam com aquela fome insaciável.

    — Como diabos ele ainda está de pé…?

    O Demônio se moveu.

    Ele desapareceu da vista por um instante e reapareceu diante de mim. Meu corpo estava lento, cansado, não tive tempo para reagir.

    As garras dele me agarraram, e em um instante, fui jogada ao chão com força. A terra rachou sob o impacto, e antes que eu pudesse me levantar, senti um peso esmagador me prendendo.

    — Eu não suporto comida que resiste demais.

    A boca do monstro se abriu, a saliva escorrendo por suas presas afiadas. Eu me debati, tentando reunir forças, mas meu corpo estava pesado. A exaustão me alcançou.

                                          ***

    O tempo pareceu desacelerar… Selene estava caída. O Demônio a segurava contra o chão, seu rosto contorcido em um sorriso faminto. Eu vi o brilho de suas presas, a forma como a saliva escorria de sua boca aberta. Ele ia devorá-la.

     Meu corpo tremeu. Não por medo, mas por frustração. Como nós iríamos derrotá-lo? Já o tínhamos destruído antes, e ele sempre voltava. Não importava quantas vezes o reduzíssemos a pedaços, ele se reconstituía, mais magro, mais faminto, mas ainda ali.

    Foi então que algo surgiu na minha mente como um lampejo. Uma lembrança: Um livro.

     Eu não tinha lido ele inteiro. Havia algo nele que me incomodava, algo que me fazia querer fechá-lo sempre que meus olhos percorriam suas páginas. Mas agora, uma única informação emergia de suas palavras e queimava dentro da minha mente.

    O ponto fraco dos Demônios do Pecado: Cada um tinha um órgão especial que lhe concedia poder.

    Se conseguíssemos destruí-lo…

     Minhas mãos se fecharam em punhos. Eu não podia hesitar. Meus olhos pousaram na espada caída de Selene. Meu corpo ainda doía da luta, cada músculo implorando por descanso. Reuni toda a força que ainda tinha e avancei, meus dedos envolvendo o cabo da lâmina.

    A energia dentro de mim respondeu de imediato.

     Senti a água se mover, se fundir ao aço da espada. Um brilho azul intenso tomou conta da lâmina, como se um pedaço do oceano tivesse sido moldado em metal. Meu cabelo e olhos começaram a brilhar, pulsando com aquela energia.

    O Demônio ainda estava focado em Selene. Isso me deu tempo suficiente para pensar. Qual órgão poderia ser o núcleo da Gula?

    Mas a resposta veio clara como o dia… O estômago.

    Eu não hesitei. Com um único movimento, cravei a espada no abdômen da criatura. O grito dele perfurou o ar.

     O brilho alaranjado de seu corpo começou a desaparecer, drenado da mesma forma que sua vitalidade. Seus membros tremeram, sua forma começou a desmoronar. Aquele corpo grotesco e faminto se retorceu, como se tentasse se agarrar a algo que já não existia mais.

    Até que, por fim… Tudo o que restou foram cinzas.

    O silêncio que se seguiu foi quase ensurdecedor. O cheiro de cinzas e sangue ainda pairava no ar, mas a ameaça havia sumido. Finalmente. Alguns fios de energia azul e verde saíram do corpo do demônio, dançaram em volta do vilarejo e sumiram no ar.

    Meu corpo pesava como se eu tivesse atravessado uma tempestade inteira sem descanso. Meus joelhos cederam, e eu caí sentada no chão, sentindo a adrenalina se dissipar.

    — Eu não acredito… — Selene arfou, ainda deitada no chão, o peito subindo e descendo conforme recuperava o fôlego. — Eu fui salva… por uma criança.

    Olhei para ela com uma sobrancelha arqueada.

    — Isso foi um agradecimento ou uma provocação? — Deixei um leve riso escapar.

    Ela soltou uma risada fraca, virando o rosto para mim.

    — Pode ser os dois. Mas… não posso reclamar dessa vez.

    Eu suspirei e olhei para cima. O céu ainda estava escuro, mas um tom alaranjado começava a surgir no horizonte, como um lembrete de que aquela noite infernal estava finalmente chegando ao fim.

    — Se você não queria ser salva, devia ter feito um trabalho melhor — provoquei, um leve sorriso nos lábios.

    Selene riu e fechou os olhos por um momento.

    — Ei, eu fiz o trabalho pesado! Você só veio e pegou o mérito no final.

    — Claro, porque lutar três vezes contra a mesma criatura foi puro entretenimento pra você.

    — Ah, sem dúvidas. Eu me diverti tanto que agora estou morrendo de exaustão.

    Dei um leve empurrão em seu braço, e ela riu novamente. Mas logo o tom de sua voz suavizou.

    — Falando sério… você está bem?

    A pergunta veio simples, mas carregada de significado.

    Fiquei em silêncio por um momento, sentindo o peso de tudo que tinha acontecido. Eu estava bem?

    Havia uma exaustão esmagadora, sim. Meu corpo doía, minha mente parecia um emaranhado de pensamentos confusos. Mas… eu estava viva.

    — Sim — respondi, olhando para minhas mãos, ainda manchadas com um resquício de magia azul. — Eu acho que sim.

    Selene soltou um suspiro, rolando para o lado até ficar de barriga para cima, encarando o céu.

    — Que bom. Porque eu realmente não teria paciência pra lidar com mais tragédias hoje.

    Revirei os olhos, mas não pude evitar outro pequeno sorriso.

    A brisa matinal começou a soprar, carregando consigo o cheiro da terra agora úmida e da madeira queimada. O sol, finalmente, começou a emergir, tingindo o céu de tons dourados e alaranjados.

     Observei o horizonte e senti um aperto estranho no peito. Não era medo. Nem preocupação. Era algo diferente. Como se, de alguma forma, algo dentro de mim tivesse mudado junto com aquela noite. Como se eu não fosse mais a mesma pessoa que entrou nesse vilarejo horas atrás.

    O mundo diante de mim parecia mais vasto, mais incerto…, mas também cheio de possibilidades.

    E dessa vez, eu não pretendia ficar para trás.

    Fim do Capítulo 15 – Uma Noite Infernal.

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