Capítulo 23: Decisão de Mãe
“Sangue rubro e branco! Eis a festa da morte.”
Izandi, a Oniromante

— Permitam, Açaril, Menoril e Alharil, minhas eternas Senhoras do Mar, que uma senhora, esposa, mãe, avó e rainha retorne sua solene carne ao cálice de toda a vida que vem de vós e seu ventre azul.
Mirta tomou um cálice de prata velho e derramou seu liquor no féretro de Auta, feito como um curto nau de proa acentuada, com uma vela de couro mal costurada. A sacerdotisa se ajoelhou e tirou uma das amarras que o prendia no grande pedaço de gelo que flutuava além da praia nas Bello Ystéa. À Faina parecia que as ondas puxavam o féretro…
“O que farei quando encontrar o corpo do meu pai?”
— Permitam, Éçéia, Lhena e Mare Eça, minhas eternas Senhoras das Ondas, que uma senhora, esposa, mãe, avó e rainha compartilhem do gozo eterno com seu partido rei.
A Esposa de Deus tomou um pequeno pote com um óleo e cingiu o corpo pálido e negro de Auta, do pescoço ao ventre. Ajoelhou e tirou outra amarra, e as ondas levaram o nau-fúnebre, como se a espuma fria fosse dedos. Faina, com os olhos vermelhos e pesados e cabelos despenteados ajoelhou-se, tocando o rastro de frágeis cascos da camada de gelo.
— Permitam, Ó, Vinte Damas do Mar, Quarenta Consortes Divinas e Mil e Mil Esposas do grande Mar que é o céu, que minha senhora, rainha e mãe tenha paz — continuou a filha. Fitou o barco ir embora, levado pelas ondas. Se ainda restasse alguma lágrima nos olhos secos, choraria. “Mãe…”
O chefe Vladein ergueu uma flecha recém-acendida, mas a Rieq impediu.
— Deixe que a mulher de água, a oceano do meu mar, tenha um final com a água. Ela odiaria saber que foi queimada, mesmo morta!
Queria rir da piada, mas sua barriga se contorceu e seus olhos ficaram pesados como o Portão.
Faina se levantaria quando sentiu a pesada pelagem de orca-dentuça que sua mãe se recusava a usar. Segurou os penduricalhos de dentes e ficou de joelhos mais uma vez, sem olhar para Mirta detrás de si. “Meu último momento de luto”, ela decidiu. “Ainda tenho este direito.” Ordenou que todos menos Mirta a deixassem a só, e então não fez mais nada. Fitou a Noite pesada no céu.
O Pai-da-Neve estava certo. Não houve mais nevascas assim que saíram da Boca do Leão. Não houve impedimento; nada. “Os Luas estão me guiando ou caçoando de mim…?”, perguntou-se, observando as espumas tão distantes no céu, moverem-se como capas vagarosas entre Viynezir e Sajanter. “Então peço que riam de mim levando-me até meu filho.”
O féretro da sua mãe já estava longe.
— Mirta — fungou e tocou a mão da sacerdotisa. “Macia…”, pensou, deixando os dedos entre os dela. — Quantos homens nós temos?
— Toda Norq’Ric, do Ferrão do Norte até as tribos perdidas nas Agulhas.
— Norq’Ric? — Levantou-se do gelo. — É assim que nos chamam lá fora? “Terra de Vândalos”?
Mirta exibiu um sorrisinho falso.
— Segundo os registros das Esposas, que tive acesso ainda nas Ilhas, foram vocês que deram esse nome para si.
Faina suspirou pelo nariz. Gostava do som das ondas farfalhando e se chocando contra os pedaços de gelo. “Mamãe também se sentia assim?” Uma vez, quando era mais nova, Auta lhe contou que vivia numa casa do tamanho da vila onde estava agora, e que as ondas que se chocavam contra as escarpas eram tão altas que um dos muros estava constantemente respingado de água, e o cheiro de sal permeava a salas como um perfume.
“É possível algo ser tão violento e grande assim?”, ela questionou à mãe, sua bela e árdua fonte de toda sabedoria do mundo de fora… E agora tão distante, levada pelas águas e quase invisível no horizonte escuro… Auta respondera-lhe saltando da cama, tomando-a pelas axilas e a pondo no postigo do castelo, apontando para as menores montanhas que cercavam a única cidade de Norq’Riq. “Tão iguais quanto elas!”, respondera Auta.
“É cruel que me lembrem disso agora, Deuses…”
— Combina. — Espreguiçou-se. — E é bem justo esse nome.
“É bom vê-la assim, sem lágrimas nos olhos”, refletira Mirta, com um semblante contemplativo ao mar. A fonte de toda vida é a fonte de toda esperança, era um dos ditados das Esposas de Deus, e não queria desistir das suas. “Espero que isso permaneça para sempre.” Sabia que não continuaria assim, porém. As ações da Primeira já eram claras.
Assim que saíram da Boca do Leão, Faina mandou meia centena de batedores e patrulheiros para avisarem os Chefes distantes e suas tribos. “Levem todos os que puderem para o sul. Batam em todas as portas! Me tragam meu filho!”
Chegavam aos seus ouvidos os rumores de batalhas. Diziam que Rayko Sonechny entrou em combate com Bárbaros e passou uma vila inteira à espada, sem poupar nem as crianças e mulheres.
Mirta notou os dedos de Faina tremulando em sua mão, a mesma que tirara a vida da Mãe-da-Neve, sua própria arenta. Já era inevitável vê-la coberta de sangue mais uma vez, sangue de qualquer Cara-Queimada que aparecesse em sua frente, ou de seus homens…
Somente não queria que Faina não estivesse coberta pelo próprio sangue — e principalmente do de Krazdoro. Decidiu tomar os três lados do seu dever quando Auta morrera. Compartilharem os prantos, os prazeres, as dores e o luto — ser sua serva-calente. Foram criadas quase como irmãs. “Sou praticamente a tia do menino”, pensara. “Tenho todo dever com ele…’
‘Seu caminho será de infelicidade, minha senhora.”
— Ei, Mirta.
— Sim?
— Quando salvarmos meu Krazhii, vamos para as Ilhas Coral. — Levantou o rosto, ainda que de cócoras e descalça sobre a neve e gelo. — Ele vai ser criado no verão. Vai ser um menino do verão!
Mirta sorriu.
— O que você quiser, Ay riq. Tenho certeza de que sua tia e primos amarão conhecê-la.
As duas abandonaram o bloco de gelo que dançava sobre as pequenas ondas e voltaram ao barquinho, onde repousava um remo. A fumaça dos moinhos estava forte e escalando ao céu estrelado, as ondas estavam fracas e as finas peles de gelo eram quebradas pelo remar de Faina, que o fazia com toda a paciência do mundo.
Ao menos até chegarem na praia e ouvirem gritos vindo de longe.
O sangue de Mirta congelou. Zunidos foram ouvidos, e de longe conseguia ver vultos negros e finos; setas letais atravessando as paliçadas e vertendo os habitantes dos Vladein. A ventania do mar espalhava o odor de sangue para longe, mas o sal não conseguia calar o barulho de morte — gritos, um alarido de ferro e a cor vermelha espirrando ao longe.
Faina de imediato tomou a dianteira, saltando do barquinho.
— Ay rieq! — gritara Mirta, agarrando o longo braço da mestra. — Pare!
— Me solte! — Tocou a mão morena da amiga e serva sem fazer força. Seus olhos estavam abertos como os de uma coruja da noite e sentia o coração pungir. — Tenho que saber o que tá acontecendo! Meus filhos estão morrendo!
Mirta apertou o braço de Faina, mas viu lágrimas escorrendo dos olhos da Primeira. De repente sua força acabou, e Faina então correu pela única via, de onde crianças e mulheres corriam em direção de suas casas e homens iam com suas lanças para a paliçada, com pouco menos que três metros de altura.
— O que está havendo? — gritou, mas não fora ouvida. Cavesões grunhiam, homens grunhiam e os zunidos vinham do céu como uma esparsa chuva de granizo. Não faltava muito de uma muralha para a outra.
Uma flecha silvou do alto e caiu na pata de um gato, que miou auto como se estivesse cozinhando vivo, e seu miado levou a Primeira a percebê-lo. Atravessou o caminho entre duas casas, mas já era tarde; uma segunda flecha perdida o atacou. “Bastardos”, gritou ao notar que ali não era somente o gato quem morrera.
Tomou uma lança, pequena demais para o tamanho da Arrundria, e voltou a correr em direção da muralha. “Bastardos! Mil vezes bastardos!” Gritos e maldições de morte atroaram, bravados e crocitares: as portas entre a paliçada foram arrombadas, e quase uma dezena de homens e mulheres da pele do azul quase roxo e rosto queimado invadiram.
— Sewar! Hassi! — gritou aquele que vestia uma couraça de um animal que Faina nunca viu. No entanto, ele a viu e apontou sua lâmina lisa e cinzenta em direção dela.
Preparou-se para atacar, erguendo a lança e mirando — e implorando que alguém surgisse para ajudá-la. Os Caras-Queimada invadiram mais profundamente em sua direção. Ela sentiu seu corpo ardendo. Cerrou os dentes e abriu bem os olhos. Havia pouco mais que vinte metros dentre eles, mais de onze inimigos e nenhum aliado que percebeu.
— Devolvam meu filho! — gritara, mas nenhum deles ouviu. Sua mão fraquejou assim que notou um deles preparar uma flecha na sua direção.
Mas ele parou. Uma lança furou o peito do líder, fundo o suficiente para que esguichasse sangue pela boca. Uma mulher Cara-Queimada caiu de joelhos e tomou, chorando, o homem entre os braços; porém os outros avançaram sem darem luto. Faina saltou para trás e correu, mas não mais do que dois passos antes de os ouvirem gritar de dor e de morte.
O novo chefe da Tribo Vladein, Razin Vladein, montado em um cavesão, atendeu as súplicas de Faina e atravessou um machado na mulher em pranto. Seus aliados se viraram para atacá-lo e projetaram as lâminas, porém Razin não se importou. As espadas furaram o animal em suas escápulas, mas o animal ainda conseguiu se vingar, perfurando dois Caras-Queimada com os chifres, um no coração e outro no estômago.
Vladein saltou e cravou o machado no peito de outro, então girou seu corpo para arrancá-lo e cortar a barriga de mais um.
— HASSI! — bravejou um cara queimada, que brandiu a espada cinzenta contra a garganta de Razin.
O Chefe provocou, fazendo barulhos que pareciam ser a língua deles enquanto revolvia seus ombros para aparar a espada com o cabo do machado. Houve o clangor, e enquanto outros Cara-Queimada moveram suas lâminas para ferir Razin, ele chutou a barriga do inimigo, desequilibrando-o, e girou-se com força. Cortou-o pela garganta e livrou-se do corte de dois homens, que saltaram para trás, porém um mais baixo perfurou seu ombro com a espada.
— HASSER!
— Não! — gritou Faina, e Razin ainda arrancou a cabeça do inimigo antes de receber uma espada batendo na brigantina de couros do seu peito.
Estava pronta para fugir mais uma vez, porém Razin se levantou e arrancou a perna de uma mulher e foi esfaqueado na perna direita, pegou a espada que lhe cortou e a enfiou da ponta da lâmina ao guarda-mão na garganta do atacante enquanto ele tentava arrancar a lâmina. Só um restou contra o loiro.
— Hassiiiiii! — ele gritou, gesticulando com a boca branca, sem pele e irregular. Apontou a espada para Razin e falou algo que Faina não entendeu, e que de nada adiantou: Tihimil o acertou com seu martelo de guerra; Faina ouviu todos os ossos das costas do Cara-Queimada quebrarem enquanto voava em direção de Razin, que o matou transpassando a espada inteira no seu cérebro.
— Fraco — desdenhou e caiu, enquanto murmurava “sou imatável!”
Faina nunca viu tanta virilidade transbordando de um homem que mal tinha pelos no queixo. Anotou em sua mente que deveria agradecê-lo no futuro, caso sobrevivesse. Saiu de onde se escondia poucos segundos depois, quando seus vassalos saíram da muralha. “Vencemos?”
O velho Tihimil ergueu seu martelo de guerra e urrou alto como um Dia de Fogo. Homens entraram pela paliçada, cobertos de sangue das armas até os cabelos, mas gritando palavras sujas e com o rosto em êxtase de vitória. Faina suspirou e caiu de joelhos no chão.
Assim que desceu do seu cavesão, o Chefe Tihimil Valke ordenou que resgatassem Razin e todos os feridos. Os sacerdotes e o povão, escondidos nas casas, saíram assim que ouviram Tihimil gritar “Vencemos!”, e os feridos foram socorridos. E os mortos passaram a ser contados.
No final daquela tarde, Faina devolveu aos seus maridos trinta e nove esposas e quase setenta escravas. Seu coração de mãe estava no limite. Mirta a socorreu, enrolando suas mãos com faixas molhadas em um unguento — mas doíam tanto que não aguentava mais segurar a pesada espada dos Arrundria.
Não sabia dizer se ainda era dia ou se era noite, mas não sentia sono vendo o campo de batalha por cima. Sentia somente seu coração batendo devagar… cheio de dor. Como daria uma segunda chance para o povo que fez isso? “Eu deveria me acostumar com isso?! Meu Krazhii deve estar com fome… Se não tiverem uma mulher entre os seus, ele…”
Agarrou o punho e apertou.
Sangue estava espalhado como flocos de neve por toda a entrada. Havia sangue pintando a neve no talude e escorrendo até mais corpos caídos na paliçada — poucos metros ao lado de Faina, um dos seus estava atravessado inteiro por um tronco afiado — , e talvez houvesse mais mortos entre o Povo das Tribos dentro da cidade sem que estivessem sido achados.
A Noite tinha deixado tudo escuro.
— Não tinha como prever, Ay rieq — falou o velho Tihimil, movendo os dedos grossos, doloridos de artrite. Faina abriu a boca por um instante e impediu-se de falar. — Os Caras-Queimada são mais astutos no escuro do que imaginamos. Se tivéssemos luz, teríamos os visto e os pegado no caminho! Os desgraçados foram astutos e ocultaram o rastro. Poderíamos ter cruzado com eles há horas e os matado lá mesmo, mas fugiram e atacaram as Ilhas Brancas! São idiotas!
— Velho Tihimil — forçou um sorriso —, você é um guerreiro e tanto, não?
— Sou só um Chefe velho, Ay rieq. — Apoiou-se no martelo. — Alguma notícia de seu pai ou do filho, Ay rieq?
— Não…
Faina virou-se para ele. Sua barba longa estava com sangue congelado, suas roupas estavam em um estado de desastre e Faina reconhecia muito bem que ele estava se forçando a ficar de pé: os olhos pesavam, os dedos tremiam e as pernas pareciam estar prestes a se desfazer. Parecia que tinha passado por um parto.
— Vá descansar, meu bom servo — ela se corrigiu, mas a voz não era a que estava acostumada a usar. — Uma vez meu tio Draziz me disse que uma estratégia era separar homens. Quando todos acordarem, quero que um terço dos que ainda podem lutar partam para as outras Ilhas Brancas e os notifiquem, que um terço fortifique este lugar e outro um quarto vá a meu castelo.
“Tornou-se régia como o bisavô”, pensou Tihimil, piscando com força. Em qualquer outra situação, comemoraria, todavia não tinha muitas forças restando para isso.
— E quando a hora chegar, quero que me diga absolutamente tudo que viu na sua viagem para o sul— ordenou Faina com voz enregelante que fez o velho sentir gelo no seu peito.
Ele deu um passo pesado e cansado para trás, porém meneou a cabeça e disse:
— É o que farei. Tome cuidado, Ay rieq…
— Eu só quero meu filho de volta, tio Tihimil — cedeu; de repente caiu de bunda no chão, com as pernas estiradas como num parto. Faina fungou profundamente, como se tivesse alguma outra doença além da tristeza. — O que eu fiz de errado pra isso? Veja meu peito: está pesando… Deveria ter saciado meu Krazhii, ele deveria estar dormindo agora, ou sorrindo no meu braço…
O velho Chefe soltou seu martelo e sentou na neve branca. Seus dentes rangeram e tremeram, mas ele se conteve da dor nos suas articulações. Faina fungou, mas o velho passou o dedo por uma das lágrimas da mãe.
— Faina, minha querida. Amanhã cedo, mandarei toda minha Tribo sair de casa e rumar às Agulhas, se assim quiser.
Faina escorou a cabeça no peito gordo do velho.
— …Sim, por favor…
Chefe Tihimil deu as costas educadamente, dando as mãos para que Faina se levantasse. Então a escoltou até a casa de Razin, onde ela recebeu estadia: caibros e madeiros envernizados estruturavam paredes cobertas por couro de baleia, várias cadeiras e mesas, machados expostos em paredes, tapeçarias de couro nas cores dos Vladein recebiam a luz de castiçais de metal de vulcão e diversas chaminés pulsavam calor.
Seu quarto não era menos luxuoso. As paredes de nevadeira tinham castiçais e a cada três metros, uma fina chaminé pulsante para iluminar com fogo e calor; almofadas cobriam o chão e uma cama com espaço para ao menos vinte pessoas jazia com peles de cavesões, lobos-do-mar e doninhas, ao lado de um barril de metal de vulcão, esquentado, cheio de água e hidromel.
Não se trocou, apenas desabou na cama. “Mãe…”, ela pensou. “Pai…’
‘Como o bisavô agiria nessa situação?”
Era como se a força do seu corpo estivesse se desfazendo, derretendo para fora de si de tanta melancolia. Mirta chegou pouco depois. “Esqueci de você? Como pude…” Preferiu não olhar para ela. Enfiou a face nas pelagens e esperou o sono chegar, no que pareceram horas. “Ah…” Chorou mais uma vez, todavia, em silêncio.
— Está bem, Faina? — questionou a Esposa de Deus com uma voz sedosa e suave.
— …Sim. — Riu amarelamente. — Estou sem sono, somente isso.
Os braços magros da amiga tomaram-na, seus dedos macios meneando as costas de Faina.
O que lhe pareceu um ato sujo em um momento pior ainda foi doce. Nos últimos dias, o colo da Esposa de Deus fora a única fonte de felicidade. “É meu último lugar seguro, minha amiga”, ela lhe disse quando perdeu Auta. Estava feliz por isso. “Você e meu Krazhii são minha última fonte de felicidade, meus deuses; não a tirem de mim como fizeram com minha mãe. Não tirem meu filho de mim…”
Assim que acordou, Mirta já estava ao seu lado, ajeitando seu uniforme de sacerdotisa. Faina escolheu um vestido de liéve e couro escuro e usou os braceletes e penduricalhos da mãe. Desjejuaram pães e queijo congelado e, ao sair da casa de Vladein, Chefe Tihimil Valko já estava presente, ao lado da esposa de Razin e homens de confiança, munidos de lanças e prestando ajoelhamento.
— Ay rieq!
Faina observou todos com o peito erguido e olhos escalando aos céus. “Pai ficaria feliz com isso.”
— …Tinha pedido para que fosse descansar, velho Tihimil.
— Estou velho demais para isso, Ay rieq — disse. — Já cumpri suas ordens, e parte dos homens que ordenou já partiram. Outros mandei para chamar minha tribo para o Sul.
Quis cair em lágrimas e beijar a testa do Chefe, mas se conteve.
— …Começarei egoistamente — disse a Primeira. “Costas eretas.” Um vento congelante soprou por entre eles. Muitos tremeram, mas a Arrundria não esboçou nenhum sinal de frio, e nem seus cabelos balançaram. — Onde está meu pai, Chefe da Tribo Valko? Fui informada que perseguiu os invasores da minha casa.
Chefe Tihomil Valko deu um longo passo à frente. Molhou seus secos e sisudos lábios e respondeu:
— Ay rieq, os persegui sim — ergueu as costas pesadas; sua voz soava com confiança de um ancião que vivera muitas batalhas. — Enquanto fugiam no rápido e magro animal, fui escondido em seu rastro com meu cavesão de confiança. Os segui sem dificuldades até a Muralha do Leão, onde consegui aliados e rastreamos o primeiro acampamento deles, e lá vi nosso Ey rasse…
— Então meu pai está vivo?! — gritou a Primeira, como se o coração saltasse pela boca.
— Estava. Planejei atacá-los com meus homens, mas outros deles chegaram e os números ficaram péssimos.
Faina escorou-se na parede cerrando dentes, batendo os pés descalços contra a neve. Encontrou a mão de Mirta e a segurou.
— Os seguimos ainda até o Sopé do Leão, onde desviei para uma possível armadilha, e muitas coisas descobri, Ay rieq.
— Como? — Tateou o antebraço com os dedos.
— As vilas no Sopé, a Tribo Ryba, estão vivas, sem mortos.
“Temos homens!”
— Já os recrutou?
— Não somente como os pus para rastreá-los! São ótimos caçadores os Ryba, e conhecem as florestas melhor do que eu. — Ajoelhou-se. — O vi ainda mais uma vez, vivo, então vim para cá, e de imediato mandei homens dos Ryba para avisarem todas as outras tribos, Ay rieq, mas então começou a nevasca. Fiquei dias pensando que morreria congelado.
A Primeira sorriu como não fazia há dias. Foi à frente de Tihimil e deu-o um beijo na testa enrugada.
— Obrigado, meu bom servo! Que teus filhos cresçam em força e tua tribo enumere-se como os grãos de neve!
— Os bons deuses garantirão isso, Ay rieq.
Faina riu e voltou para o frontão da casa de Vladein. “Não é matança por matança. Isto é bom, eles querem algo”, deduziu, segurando a macia mão de Mirta. “Tiraram a vida de muitos e me fizeram matar ainda mais, mas não me importo. Se querem perdão, será dado!”
— Mas, Ay rieq, o que vamos fazer sobre as armas deles? — questionou uma voz feminina e sedosa, a ex-esposa virgem de Skjá Vladein. Não deveria ter mais do que vinte e cinco anos, e suas feições eram belas e suntuosas; lembrou Faina de Auta e Mirta, e trajava uma grande quantidade de pelagens. Loira como espigas de trigo do Ferrão do Norte. Uma Bárbaro. — Eu vi elas partindo as nossas no castelo, e vi aqui de novo.
— Yereverna, não?
— Sim, Ay rieq — se ajoelhou.
— Como está Razin?
— Os deuses foram bons para ele — disse ela, sorrindo. — Acordou hoje mesmo e tirou minha virgindade, mesmo ferido!
A Rieq permitiu que se levantasse, dizendo “Que boa notícia.”, e logo centrou-se na questão dela. Agora, além de Razin, tinha mais um Vladein a agradecer — “Levantastes uma pergunta importante.” Sabia que quanto mais ao sul, não era incomum mulheres brandindo machados, e ela parecia musculosa por trás dos couros envernizados.
— …Quando no castelo, fui resgata por meu tio Draziz, que usava uma delas. Se bem me lembro, não era somente uma. — Deu os olhos à Mirta, que devolveu o olhar com atenção. — O que acha disso?
— Eu… — ela disse, virando o rosto para baixo com desgosto por ouvir o nome dele. — Eu não saberia dizer até ver uma delas e falar com Draziz.
“Mas eu o mandei para o sul, cheia de ódio e de desejo”, lamentou Faina.
Enquanto pensava, um homem trouxe uma espada manejada pelos Cara-Queimada à sacerdotisa do Deus-Azul. Mirta a pegou pelas lâminas com a palma das mãos, tateando-a com leves dores de frio. Nunca tinha visto uma tão próxima. Nos conventos das Esposas de Deus antes do seu naufrágio, foi ensinada em diversos saberes, mas metalurgia nunca foi um deles, e menos vezes ainda teve uma espada em mãos. Os guardas dos conventos eram eunucos, e mesmo assim tinham ordens claras de nunca se aproximarem delas se não recebessem ordens diretas.
“Não é de metal de vulcão. Me parece muito liso… e puro.”
— Alguém me dê uma lâmina qualquer — ela pediu. A esposa de Razin rapidamente tirou uma adaga de suas roupas e entregou à Mirta. “Ainda, ao menos, consigo comparar as coisas”, suspirou. O sentimento de inutilidade era pesado. “Aprendi tanto e não sei de nada…’
‘É muito mais pesado do que as do metal de vulcão. Nos textos erifios, Norq’Ric tomava metal apenas dos vulcões, pois era o que seus deuses lhes davam, o Deus Gritante…”
Uma péssima sensação empalidecia Mirta do centro do peito ao resto do corpo. Faina arregalou os olhos e tomou a adaga, devolvendo-a, e puxou a Esposa de Deus para mais perto de si.
— Não precisa me dizer o que sentiu — sussurrou. Fitou o velho Chefe e disse: — O senhor sabe mais de metal do que eu, Chefe Valke. O que acha?
— Não sei o que dizer, mas ver meu rosto numa lâmina me dá medo — meneou os ombros. — É como se fosse a Carruagem de Vymya vindo me buscar. Não gosto disso.
— Ay rieq! Ay rieq! Ay rieq! — bramiu alguém, correndo em direção deles.
Faina deu um passo para fora da casa dos Vladein e virou-se para o homem — corria com neve salpicada nos pelos da sua roupa e na touca, arfando como se estivesse prestes a cair morto; e caiu, mas não morto. A Primeira o ofereceu a mão para que se levantasse, porém, conforme arfava, dava sinais de que não conseguiria ficar de pé tão cedo.
— Ah! — urrou Chefe Tihimil. — É você, aquele garoto que mandei pelos Ryba… Raios, por que voltou tão cedo?!
— Eu vi, eu vi um monte deles! — Apoiou a mão nos joelhos. — Vi um montão de Caras-Queimada!
Faina segurou as bochechas do batedor como a viseira de um cavesão.
— VIU UMA CRIANÇA COM ELES? UM BEBÊ?!
Ele tossiu e respirou fundo, respingando lufadas brancas como uma nuvem pesada em Dia.
— Eu vi, Ay rieq! Eles tinham uma bebê chorando entre eles… E consegui contar ao menos uns cem antes deles me capturarem e falarem comigo.
Então neve começou a cair do céu.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.