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    O Nokia seguiu sua rota pelas águas frias que Nekop decidiu, como um velho cão que insiste em caminhar mesmo com as patas partidas. O casco estava cravejado de buracos, cicatrizes negras onde os projéteis haviam cravado a madeira grossa, e ainda se podia ouvir o som inquietante da água batendo contra as tábuas soltas, como dedos tamborilando num caixão.

    As velas, antes brancas como o linho novo, agora eram panos chamuscados, pendendo das vergas como estandartes esfarrapados de um exército derrotado. Parte do mastro principal tinha sido reduzida a um toco lascado, um dente quebrado no sorriso mutilado do navio. Mesmo assim, ele seguia em frente, balançando pesado no oceano, como se desafiando as próprias leis dos homens e dos deuses. Três dias havia que escaparam do cerco de Bastardo. Três dias desde que perderam Bulianto.

    Dante permaneceu junto a Miatamo e Guaca, os dois veteranos que agora carregavam o peso de manter aquela embarcação flutuando, mesmo com tantos buracos na madeira… e na tripulação. Estavam sentados no refeitório, embora aquele espaço pouco lembrasse um local de conforto agora. Os bancos estavam cheios dos últimos membros da vanguarda, aqueles que ainda respiravam.

    Não havia sorrisos ali, nem vozes erguidas em conversa banal. O silêncio parecia um véu espesso, e todos os sons vinham pesados: o estalar de um punho fechado sobre a mesa, o arrastar do metal das armaduras, o som do vento chorando nas frestas das paredes.

    Lamentavam a morte do Capitão Bulianto, mas Dante percebeu que o lamento não era tanto pela ausência dele no convés do Nokia, e sim pelo que sua queda representava em terra firme. Onde um rei morre, outros corvos pousam.

    — O Bastardo vai querer os territórios — disse Guaca, sua voz rouca, como se algo tivesse queimado suas cordas vocais. Ele desenrolou o mapa sobre a mesa central com dedos firmes, mesmo que sujos de sangue seco. O couro do mapa rangeu enquanto era esticado. Em sua superfície, pequenas ilhas e cidades se espalhavam como manchas de mofo, cada uma sob a bandeira que antes pertencera ao Rei do Leste. — Não temos como defender todas elas. Mas podemos ficar com uma… uma que ele não possa alcançar tão facilmente.

    Miatamo tamborilou os dedos grossos sobre a borda da mesa, os nós dos seus dedos pareciam pedras polidas.

    — Truman — disse ele, após um instante de pausa.

    Houve uma espécie de assentimento mútuo, sem necessidade de palavras. Os outros vanguardistas inclinaram as cabeças em concordância. A decisão parecia já ter sido tomada antes mesmo de ser proferida.

    Dante soltou a fumaça do charuto devagar, observando a serpente cinzenta se desfazer no ar, como as cinzas do funeral de um rei. Ele estava com a perna cruzada sobre o banco estreito, o cotovelo apoiado no joelho, um contrapeso descontraído diante das posturas tensas à sua volta. Observou o mapa, os pontos riscados em vermelho e azul, as rotas traçadas com uma precisão de quem sabe que a própria vida depende da exatidão daqueles traços.

    — E o que tem essa cidade? — perguntou ele, sem pressa, como quem desenrola um novelo de lã enquanto espera o inverno chegar. Segurava o charuto entre os dedos, como um general segura a pena antes de assinar uma sentença de morte. — Por que defender só ela?

    Guaca coçou a barba cerrada, lançando um olhar para Miatamo, como se pedisse permissão para contar a verdade.

    — Truman é uma cidade-estado. Não pertence a ninguém além de si mesma. Foi a única que nos recebeu antes de Bulianto conquistar seu título. Quando ninguém nos queria, eles abriram os portões. Todo negócio que temos com as outras ilhas… começa e termina lá. Sem Truman, não há comércio. E sem comércio… — ele deu de ombros, como se a conclusão fosse evidente.

    Dante entendeu o que ele não disse. Sem comércio, não há moeda, e sem moeda, não há soldados. E sem soldados, não há rei.

    Ele respirou fundo. A fumaça do charuto o fazia lembrar dos campos queimados que vira no norte, quando homens e mulheres jaziam sob a cinza, como raízes expostas.

    — Não conheço os negócios de vocês — admitiu ele. — Nem como essas ilhas se sustentam. Sequer conheço direito essas águas. Mas sei que quando alguém quer tomar o que é seu, ou você briga por isso ou perde tudo.

    Os olhares se voltaram para ele. Eram olhares de marinheiros, endurecidos pelo sal e pelo sangue, acostumados a perder irmãos no mar. Mas havia algo mais neles agora: um brilho de dúvida, de esperança ou desespero, era difícil dizer. Dante deu um sorriso torto, um caco de vidro quebrado refletindo um raio de sol.

    — E como posso ajudar? — disse, soprando um último sopro de fumaça. — Se vamos segurar a cidade, vamos segurar a cidade. Não entendo a surpresa de vocês.

    Guaca franziu a testa, seus olhos eram duas brasas enterradas em carvão.

    — Ajudar?

    — Claro — Dante ergueu os ombros num gesto simples. — Vamos manter a cidade. O Bastardo quer tomar o lugar de vocês, certo? Então, vamos defender. Não é assim que fazemos?

    Miatamo cruzou os braços. A cicatriz em seu maxilar parecia um rio seco atravessando um deserto.

    — Sim… é assim que fazemos — disse ele, embora a voz soasse menos como convicção e mais como alguém que relembra algo há muito esquecido.

    Dante se inclinou para frente, batendo levemente as cinzas do charuto na borda da mesa. As brasas caíram sobre o mapa, apagando um nome que já não importava mais.

    — Vamos fazer o que tem que ser feito. Bulianto não está mais aqui, e sim, isso é uma merda. Mas homens morrem todos os dias, e o mundo não para de girar por causa disso. Vamos dar a ele um funeral digno, cantaremos músicas que façam as velas se erguerem de novo e o vento soprar a nosso favor. Mas não vamos deixar o Bastardo nos tirar o que vocês construíram com tanto custo.

    As palavras pesaram sobre a mesa como pedras de moinho. Houve um silêncio longo, quebrado apenas pelo ranger do navio e o distante bater das ondas contra o casco.

    — E se o Bastardo quiser Truman… — Dante continuou, a voz baixa e certa, como o som de uma lâmina sendo afiada na pedra — …ele vai ter que vir até a gente.

    E dessa vez, ninguém contestou.

    — Sei que precisam de um plano — disse Dante. Ele arrastou o olhar pelos rostos na mesa, um por um, como se os pesasse antes de continuar. — Vamos até Truman. Lá, conversamos com quem manda de verdade naquele lugar e vemos como podemos reconstruir essa ligação com as outras ilhas.

    Falava com um tom tranquilo, como se sugerisse reparar uma cerca caída depois de uma tempestade. Mas todos ali sabiam que estavam lidando com muito mais do que uma cerca… e a tempestade estava longe de ter terminado.

    Ele deu uma longa tragada em seu charuto antes de continuar, a brasa na ponta iluminando brevemente seu rosto endurecido.

    — Nekop tem uma habilidade de comunicação, não tem? Aquela… peculiaridade que permite mandar mensagens mesmo quando o mar vira inimigo?

    Miatamo coçou o queixo com os nós dos dedos, seus olhos escuros atentos. Era um homem grande, mas havia algo na forma como seus ombros caíam que o fazia parecer menor do que antes.

    — Tem. Nekop sempre foi um… elo. Consegue ouvir e responder pelo ar, até quando a tempestade grita mais alto que homem.

    — E vocês pegaram Sinora — continuou Dante, soprando uma espiral de fumaça no ar espesso do refeitório. A fumaça pairou por um momento no ar. — O que ela faz mesmo?

    Foi Porto quem respondeu, sua voz soando mais como um eco, como se ele falasse de longe, ainda que estivesse a poucos metros, encostado no portal de carvalho reforçado que dava para o corredor. Seus olhos, vermelhos como brasas mortas, fitaram a mesa com uma expressão dura.

    — É a única que consegue criar papel indestrutível. Papel de verdade, não essas porcarias que viram pasta com o primeiro pingo d’água. Ela quem recebia as cartas que Nekop enviava. E quem as passava adiante para as frotas.

    Houve um momento de silêncio após suas palavras, pesado, denso, como se algo invisível pressionasse o ar ali dentro. Falar das frotas era como cutucar uma ferida que ainda sangrava. Eles tinham perdido dois navios. Dois. Perder navios era como perder membros — você podia sobreviver, mas jamais seria inteiro outra vez.

    E Bulianto… Bulianto não era só um capitão. Era uma bandeira erguida contra o vento. Um nome sussurrado com respeito nas tavernas e portos. Ele era o peso na balança que mantinha os aliados fiéis e os inimigos à distância. Agora estava morto, seu corpo alimentando os vermes ou lançado às profundezas, quem sabe. E Sinora, a mulher que carregava a confiança das cartas, estava desacordada, os olhos fechados como uma porta trancada. A moral dos homens pendia por um fio tão tênue quanto a vela que tremulava sobre a mesa.

    O Bastardo tinha dado um golpe fundo. Não com um punhal enfiado às escondidas, mas com um machado, como quem corta a perna de um cavalo de guerra e o deixa a sangrar até não poder mais correr.

    Dante sabia que, mais cedo ou mais tarde, teriam que falar do que ninguém queria dizer em voz alta: que precisavam de um novo capitão. Alguém que sentasse no trono do morto e segurasse o leme, mesmo que com as mãos trêmulas. Mas não ali. Não naquela noite. Talvez em Truman, quando estivessem no chão firme de novo e com vinho o bastante para aliviar a garganta seca de medo.

    Ele tragou mais uma vez e soltou o ar devagar, olhando para o mapa estendido sobre a mesa como se tentasse ver através dele.

    — Não precisamos resolver tudo hoje — disse, enfim, num tom que era quase gentil. — Vamos chegar a Truman primeiro. Depois… fazemos o que for preciso.

    A madeira gemeu sob seus coturnos quando ele se levantou. E os demais o seguiram, cansados, amargurados, mas ainda vivos.

    Era apenas isso que importava.

    — Irei encontrar com Nekop — avisou Miatamo. — Ele foi quem mais foi afetado. Sempre foi colado com o capitão. Deve estar arrasado.

    Todos acordaram o deixando partir.

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