Capítulo 81 - Episódio de Praia
O vento frio que corria entre as nuvens atacava nossos rostos enquanto caíamos. Logo abaixo, depois de cerca de 2 quilômetros em queda livre, pude ver uma enorme fenda espacial, tal como as feitas por Jörmungandr.
Eu não sabia o que esta por vir e aparentemente, meus companheiros compartilhavam do mesmo sentimento.
— Que porra é essa? — gritei.
— Se minha teoria estiver certa- — Noelle tentou explicar em pleno ar.
— A GENTE NÃO TEM TEMPO PRA TEORIA! — o homem mais másculo de todos, berrou como uma garotinha.
Nós atravessamos a fenda, temendo o que encontraríamos em seguida, mas felizmente, nos deparamos apenas com ainda mais nuvens. Naquelas condições, tudo que podíamos fazer era agradecer.
Ao passar das nuvens amareladas pelo pôr do sol, me deparei com a segunda vista mais bonita que já vi na minha vida, um vasto e rico mundo mágico.
Dali de cima, pude ver quase que aquele planeta inteiro, O Éden. Um mundo mágico dividido em diversos continentes e ilhas, com um enorme mar azul e belo. A geografia estranha do lugar era confusa e sem sentido, mas tinha sua beleza. As montanhas gélidas que se encontravam com o deserto árido logo ao lado da floresta tropical, e as grandes capitais se destacando em seus continentes. Bem ao centro do horizonte que meus olhos podiam alcançar, havia um lugar interessante flutuando a altura das nuvens. Um brilho chamativo o destacava no ar, fazendo-me perguntar como nunca havia o notado antes.
Ao seu redor, bestas voadores o cercavam, como se protegessem o lugar. A medida que me aproximava do solo, eu via mais criaturas enormes ao redor do mundo. Gigantes que caminhavam pelo oceano, dragões que dormiam nas montanhas e até mesmo a silhueta de um monstro marinho que eu preferia não pensar muito sobre.
Infelizmente, apesar da bela vista, meu corpo não parou de cair e eu estava cada vez mais perto do chão. A terra abaixo de mim não era tão bela quanto o resto do mundo, era possível sentir o clima mórbido e sofrido do lugar, com a vegetação morta e uma atmosfera densa. Era como se estivesse voltando para a Ilha de Raven.
No momento crucial da queda, Akira enfim tirou sua expressão apavorada de seu rosto e tomou sua postura no ar. Seus pés entraram em combustão, o desacelerando lentamente.
Noelle murmurava para si mesma, com suas mãos coladas uma na outra, para, enfim, lançar para frente uma rede raios, algo que não a via fazer há muito tempo. Ao atravessar a primeira rede, ela lançou mais uma, uma atrás da outra, desacelerando sua queda com os pequenos impactos de cada rede.
Por outro lado, eu não tinha escolha. O chão te aproximava cada vez mais e eu não podia fazer nada, a não ser… aceitar o desafio. Eu envolvi meu corpo em mana caótica, ativando a primeira instância. Meus membros fortalecidos era tudo que eu podia usar, então, eu me projetei de cabeça, com um sorriso confiante. Chegando a poucos metros do chão, recuei meu rosto para trás dos meus punhos e soquei a terra com toda a minha força.
Pude sentir o chão estremecer, assim como algumas árvores que caíram e pedras que se quebraram. Quando abri meus olhos e ergui minha cabeça pronta para a aventura, me vi dentro de uma enorme cratera.
— Precisava disso tudo? — Akira descia lentamente, impulsionando seu corpo com chamas nos pés e nas mãos — Tá querendo se aparecer, é?
— Acho que isso chamou muito atenção pra gente — disse Noelle, aparecendo apenas com sua cabeça no topo da cratera.
— Vão se fuder, os dois! — respondi grosseiramente, saltando para fora do buraco — Onde é que a gente tá?
— Depois que passamos daquela fenda gigante, vi o formato do continente Brasslyn bem abaixo de nós.
— Parece que vamos continuar de onde paramos — comentou, Noelle.
— Como é que você sabe tanto sobre isso? — desde a primeira vez que nos encontramos, Akira já demonstrava um vasto conhecimento geográfico, o que me deixava com certa curiosidade.
— Meu pai era pesquisador e minha mãe era cartografa — respondeu enquanto andávamos pela terra morta do continente — então eu acabei aprendendo bastante com eles.
— Faz sentido…
— É, mas tem uma coisa que não faz sentido nenhum.
— Se tá falando do cheiro de enxofre, não fui eu!
Noelle apertava seu nariz, com uma expressão de nojo e repulsa
— Tudo aqui parece… morto.
— Não é tão diferente de quando estávamos em Raven.
— Na verdade, é bem diferente. Raven era uma ilha que estava claramente deteriorada com o tempo, isso aqui… não é nada natural.
Um calafrio na espinha me assombrava a medida que caminhávamos por uma trilha, cercados por uma vegetação morta e pedaços de esqueletos jogados aqui e ali.
— Falando em Raven — disse Noelle, ainda com a mão em seu nariz — Lá de cima eu pude ver todo o mundo, mas eu não consegui encontrar a ilha de jeito nenhum.
— A névoa se dissipou, não foi? Pode ser que agora ela se pareça com uma ilha normal e deve ter se camuflado em meio as outras ilhas — abri uma possibilidade.
— Ela se destacava nos vários mapas que minha mãe fazia. Chega a ser estranho o quão pouco as pessoas falavam sobre a ilha.
Nós nos aventuramos por dentro de uma fenda aberta em uma montanha ali perto que impedia nossa passagem, ainda curiosos com a situação do lugar. Nos esgueiramos por alguns cantos vendo um cenário destruído, como se estivéssemos caminhando por trincheiras criadas ao longo da montanha.
Alguns minutos depois, começamos a corpos espalhados pelas trincheiras, que apesar da carne e do osso, tinham uma aparência cadavérica.
— Estão por todos os cantos — Akira comentou.
— São muitas baixas! Pensei que ainda tínhamos tempo, por quê esses demônios estão atacando? — eu me revoltava com a cena, encarando as mentiras nas palavras de Lilith.
— Será que o tempo não passa diferente no Jardim?
— Não — Noelle interviu — o tempo é igual. Se contarmos o tempo total desde aquele dia, se passaram apenas dois anos!
— Não faz sentido! O que está acontecendo?
— Finalmente! — minhas dúvidas forem interrompidas por gritos desconhecidos.
Um pouco a nossa frente, logo após uma curva na fenda da montanha, pessoas gritavam. Umas comemoravam, outras lamentavam, tudo meio bagunçado em diversas vozes.
Eu olhei para meus companheiros logo atrás de mim e ambos assentiram com a cabeça. Nós nos escoramos mais rapidamente pela fenda, até encontrar um bando de pessoas fardadas, com suas roupas surradas dentro das trincheiras destruídas.
Ao nos verem, todos se calaram, amedrontados. A maioria deles tremiam, outros, apenas já haviam desistido.
“CLINK!” o som de uma arma sendo engatilhada ecoou no vão de terra acinzentada.
— Q-Quem são vocês! — um soldado, alguns metros atrás dos demais, apontava um rifle em nossa direção.
— Calma aí! — eu levantava minhas mãos, rendida — Não tamo procurando briga! — afirmei, dando um passo a frente.
— PARADO AÍ, DEMÔNIO! — ele ameaçou disparar.
Eu parei imediatamente, não tão nervosa quanto os outros soldados ali.
— A gente tem cara de demônio pra você? — a voz de Akira soou, ironicamente, atrás de mim.
— Disseram que demônios podem se parecer com humanos às vezes! Vocês não estão usando nenhum brasão ou uniforme! SE IDENTIFIQUEM! — apesar de sua postura rígida e fria, suas mãos tremiam, assim como a de seus companheiros.
— A rainha Melissa nos enviou — Noelle tomou a voz.
— Provem! — ordenou, firmando ainda mais seu capacete.
— Esse cara tá começando a ficar chato… — cochichei para trás brevemente.
— Não temos nenhuma identificação, mas…
“BANG!” seu rifle disparou um projétil gélido em nossa direção,
Eu fechei os braços na minha frente assim que ouvi o disparo, nos protegendo. O projétil, ao me acertar, explodiu em uma névoa de gelo. Os passos do atirador corriam até mim, lento. A névoa congelante se dissipou, revelando o soldado acima de mim, desferindo um golpe com seu rifle.
Sem muita disposição, segurei a coronha de sua arma, o parando próximo ao chão.
— Já acabou com o showzinho? — ainda o mantendo no ar.
O soldado largou a arma, a deixando em minha mão e deu um salto para trás, voltando para os seus companheiros. Dava para ver o desespero em seus olhos, pensando em como resolver aquela situação.
— Eu já disse — lancei seu rifle de volta para ele — não somos seus inimigos.
— Cesar… — um soldado, com cabelos negros abaixo do capacete, tocou seu ombro — Vamos ouvir o que eles têm a dizer.
— Jenny… certo! — o soldado desistiu.
A mulher andou até nós, seu rosto apresentava um certo nervosismo, era como se estivesse escondendo seu medo.
— Sou Jenny! Cabo pelo exército de Torquiese — Disse firmemente, batendo continência.
— Sou Saki! — me apresentei, em seguida, apontando para meus amigos — esses são Noelle e Akira — ambos os cumprimentaram distantes.
— Então… Saki! O que querem aqui?
— A rainha Melissa nos enviou.
— São os reforços que pedimos? Estão atrasados! — disse com certa revolta.
— O que aconteceu aqui, exatamente?
Jenny suspirou, cansada, afrouxando seus ombros.
— Essa maldita guerra… Estamos há dias combatendo os demônios, lutando por nossos lares… sei que fomos um dos poucos que conseguiram vencer, mas ainda assim, parece que perdemos…
— Sinto muito…
— Não sinta, chegando antes ou depois, provavelmente não mudaria muita coisa.
— Tsc! — estava sem palavras, me culpando pelo resultado.
— Estamos procurando uma pessoa! — Noelle, de forma insensível, passou a minha frente, perguntando diretamente — Um homem grande com um bigode. Já o viu em algum lugar?
— N-Noelle? — fiquei levemente chocada com sua atitude.
— Não. Além das pessoas desse batalhão, não vemos ninguém há dias.
— Há quantos dias estão aqui? — perguntei.
— Já perdi a conta… — ela virou sua cabeça por cima dos ombros, perguntando aos seus aliados — quanto tempo? Algumas semanas?
— 10 dias — o soldado anterior, Cesar, confirmou.
— Deve ter sido difícil, como podemos ajudar?
— Saki! — Noelle reclamou.
— Não podemos só deixar tudo do jeito que está! Deve ter alguma coisa que possamos fazer!
— Mas o Galliard…
— Vamos procurá-lo no caminho. Eu prometo!
Minha amiga, angustiada, batia seus dedos ansiosamente na bolsa.
— Relatamos nossa vitória há algumas horas, em breve devemos ser designados para outra batalha. Sua ajuda seria bem-vinda.
— Já estão indo?
— O mundo inteiro está sofrendo com ataques, não deve haver um único lugar em paz nesse momento! Vamos lutar o quanto for preciso!
— Fale por você… — Cesar resmungou ao fundo.
Jenny nos levou rapidamente até um acampamento ali perto, onde se encontrariam com um mensageiro. Ela nos apresentou aos outros soldados e todos, sem exceção, nos cumprimentaram com rostos cansados e abatidos.
— Eles estão destruídos — comentei com meu amigo.
— Nem me fale… mas acho que posso ajudar.
Akira se aproximou do centro do acampamento, onde todos reuniam ao redor de uma pilha de madeira, aplicando curativo, limpando suas armas, lamentando suas perdas. Ao o verem andando lentamente, seus olhos se arregalaram de medo, até mesmo alguns se abraçaram assustados, aceitando seu fim.
— Espere! O que est- — Jenny gritou, quase que implorando para Akira parar.
— Brasas do Jardim! — Akira juntou a palma de suas mãos, deixando seu corpo ser tomado pela chama.
Os cotovelos e ombros do meu amigo exalavam labaredas de fogo e a ponta de seu cabelo balançava assim como as chamas de uma fogueira. Uma onda de calor viajou pelo acampamento, aquecendo gentilmente os soldados.
— O que é isso? Meus ferimentos… — eles murmuravam entre si, perplexos.
Os hematomas e cortes leves sumiam de suas peles pouco a pouco, enquanto isso, Akira voltava em minha direção, trazendo seu calor consigo.
— “Brasas do Jardim”? — perguntei, com um sorriso debochado.
— Wukong me disse que cada técnica e habilidade deveriam ter um nome, então inventei alguns.
— Entendi… fiz isso algumas vezes, mas só parecia ridículo…
— Nomes são essenciais para feitiços e encantamentos, os potencializa — Noelle entrou na conversa — é quase como uma regra.
— Bom, acho que vou continuar desse jeito. Não sou muito boa com nomes.
Interrompendo nossa conversa, os passos pesados e barulhentos da armadura de Jenny chamavam nossa atenção. Ela se aproximou, apressadamente, de uma cabana mais ao fundo do acampamento, perto de algumas árvores que davam para um bosque.
Camuflado entre algumas folhas e galhos, havia alguém com quem Jenny falava. Curiosa e um pouco preocupada, andei sutilmente para o lado, buscando um visão mais clara da figura misteriosa.
Eu pude ver perfeitamente e o analisei da cabeça aos pés. Seu cabelo loiro e esvoaçado pareciam como chamas sobre sua cabeça. Suas pupilas, tão amarelas quanto os fios de cabelo, contrastavam com sua pele marrom e destacavam os anéis de ouro que envolviam ambos os braços, mais precisamente, três em cada (um no bíceps, um pouco abaixo do cotovelo e um no pulso).
Suas roupas pareciam ser feitas de um tecido leve e arejado, em um tom bege. Amarradas em um cinto por cima do ombro, ele deixava mais da metade do seu peitoral exposto e prendia sua larga calça com cordões de ouro em seu tornozelo.
“Deve ser o tal mensageiro” pensei brevemente.
Ele falava alegremente com Jenny, risonho, como uma pessoa sem preocupações. A soldado deu as costas para o rapaz, que não parecia ter notado minha presença, mas de repente, seu semblante se fechou e seus olhos afiados apontaram diretamente para mim.
Eu pisquei meus olhos, descrente da sua percepção aguçada, o que foi suficiente para perdê-lo de vista.
— Estranho… — comentei.
— O que ela tava fazendo? — perguntou Akira.
— Conversando com alguém, mas não fui muito com a cara dele…
— Ela tinha dito que alguém viria, talvez não seja nada de mais — Noelle pontuou.
— Provavelmente.
Novamente, a armadura de Jenny nos alertou.
— Já temos o local da próxima batalha!
— Aquele era o mensageiro?
— Sim… seu nome é Hermes.
— Ele não dá nem um bom dia pra galera?
— Hermes só fala com o soldado com a patente mais alta do batalhão, nesse caso, eu.
— Entendi… enfim! Onde vai ser?
— Logo atrás dos Alpes Nebulosos, em uma enorme praia.
Jenny mobilizou rapidamente os demais soldados, nos levando através dos Alpes Nebulosos, uma cadeia de montanhas belas e perigosas. Todos marchavam em direção à batalha, ainda temerosos quanto aos seus destinos, arrastando os pés e armas como uma horda de zumbis. Nós os acompanhávamos logo atrás.
— Disse que Hermes só fala com a patente mais alta do batalhão — falei próxima a Jenny, em meios aos murmúrios — Esse não deveria seu capitão ou general?
— Bem… — ela desviou o olhar, um tanto quanto triste — Você estaria certa se ele estivesse aqui.
— Ué, e por que não tá?
— Ele se sacrificou para derrotar o chefe da horda de demônios! — Cesar afirmou, antes mesmo que Jenny pudesse responder.
— Vish…
— Pera aí! — Akira interrompeu — E ainda assim vocês estão indo em direção a outra luta?
— Sei que nossas chances de vitória são baixas, mas o capitão se sacrificou para que pudéssemos seguir em frente! — Jenny olhava para cima, com seus cabelos ondulados voando por cima de seus olhos azuis, batendo com o punho cerrado no peito — “Ainda que as chances sejam de uma em um milhão, eu estarei lutando!”
Apesar da situação de seus companheiros, Jenny ainda olhava para nós, com um sorriso confiante e esperançoso.
— Ele sempre dizia isso antes de uma luta… — Cesar, melancolicamente, comentou — Vou levar suas palavras adiante!
O barulho do metal sendo arrastado na terra desapareceu, os resmungos em meio aos soldados também sumiram, como se enfim, ao escutarem seus companheiros, ficaram motivados.
Cerca de uma hora se passou e nós já podíamos escutar o som da batalha. Os gritos, os cortes, os disparos, o fogo, a água, as explosões e o sangue, tudo a alguns metros. Ao subirmos um pequeno aclive, logo após os alpes, vimos o campo de batalha, uma praia de areia vermelha roxa, onde aço e vísceras se tornavam um com a areia.
Os demônios surgiam incessantemente pela água, avançando pelo vasto litoral, criando uma cena que eu jamais esqueceria.
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